*por Raphael Vidigal
“Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos,
minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,
e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.” Carlos Drummond de Andrade
O circo é uma das manifestações culturais mais antigas da Humanidade, presente entre gregos, chineses, egípcios e indianos. No Brasil, o circo chegou através de companhias europeias, e tem o seu dia celebrado em 27 de março, uma homenagem à data de aniversário do palhaço brasileiro Abelardo Pinto, conhecido como Piolin, que nasceu em 1897. Durante a Semana de Arte Moderna de 1922, o circo foi saudado por Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Anita Malfatti. A música, claro, não poderia ficar de fora. Monte-se o picadeiro, abra-se a lona, que o respeitável público se prepare, pois vão entrar em cena as 35 melhores músicas de Circo do Brasil, de 1930 até hoje!
“E De Trampolim…” (marcha, 1932) – Joubert de Carvalho
Mineiro de Uberaba, o médico Joubert de Carvalho ganhou fama graças a composições como “Taí (Pra Você Gostar de Mim)”, “Maringá”, “De Papo Pro Ar” e “Zíngara”, até hoje presentes no imaginário popular. Em 1932, ele compôs “E de Trampolim…”, uma marcha circense para a principal cantora da época: Carmen Miranda. Com seus habilidosos dotes vocais e performáticos, a Pequena Notável encarou com requebrados o desafio, e mandou: “Que sou de circo e de trampolim…”. Silvio Caldas participou do coro da gravação, editada em um compacto que trazia no lado B outra composição de Joubert: “Se Você Quer”.
“Prato Fundo” (marcha, 1933) – Noel Rosa e Braguinha
O pitoresco da situação é o que confere traços circenses à parceria entre Noel Rosa e Braguinha, dois dos nossos maiores compositores, na marcha “Prato Fundo”, lançada em 1933 na voz de Almirante, colega da dupla no Bando de Tangarás. Na música, que ficou pouco conhecida, os compositores falam sobre os hábitos alimentares de uma família, onde todos comem tanto que não há o que lhes sacie o apetite. É nessa hora que entra o circo: “A minha mana/ Para esperar o almoço/ Come casca de banana/ Depois engole o caroço/ E o meu titio/ Faz vergonha a todo instante/ Foi ao circo com fastio/ E engoliu o elefante”.
“Cansei de Implorar” (samba, 1935) – Noel Rosa e Arnold Glückmann
Noel Rosa contribuiu com outra canção que só ganhou ares circenses graças à interpretação de Grande Otelo, para muitos, o maior comediante do Brasil. Nascido em Uberlândia, o humorista mineiro tirou um sonho do papel em 1985, quando protagonizou, com Marília Pêra e o grupo Coisas Nossas, a opereta “A Noiva do Condutor”, escrita por Noel e musicada pelo maestro e arranjador húngaro Arnold Glückmann, em 1935. Noel morreu em 1937, aos 26 anos, vítima de tuberculose, e não pôde ver o projeto realizado. O empreendimento só logrou sucesso graças à participação decisiva do jornalista João Máximo. Inicialmente, o papel interpretado por Marília Pêra havia sido destinado para Isaurinha Garcia. “Cansei de Implorar” está presente no roteiro, e traz um Grande Otelo hilariante.
“O Palhaço, o Que É?” (marchinha, 1936) – Bide e Paulo Barbosa
Embora tenha ficado conhecido pelo epíteto de “Rei da Valsa”, Carlos Galhardo foi também um habilidoso intérprete de marchinhas, o que justificava seu outro apelido: “O Cantor Que Dispensa Adjetivos”. Em 1936, foi ele o responsável por lançar uma das mais populares marchinhas de todos os tempos. Composta por Bide e Paulo Barbosa, a música “O Palhaço, o Que É?” trazia os versos que atualmente se confundem com o domínio público: “Hoje tem marmelada?/ Tem, sim senhor!/ Hoje tem goiabada?/ Tem, sim senhor!/ O palhaço, o que é?/ É ladrão de mulher!”. E a canção foi um sucesso instantâneo do Carnaval de 1936.
“Circo de Cavalinhos” (marcha, 1938) – Ary Barroso
Ary Barroso, natural de Ubá, no interior de Minas Gerais, já era um compositor consagrado no Rio de Janeiro graças a canções como “Faceira”, “No Tabuleiro da Baiana”, “Na Batucada da Vida”, “No Rancho Fundo” e “Na Baixa do Sapateiro”, quando compôs, em 1938, a marcha “Circo de Cavalinhos”. Lançada por Almirante, com acompanhamento da Orquestra Odeon, dizia: “A vida é um circo/ Um circo de cavalinhos/ O palhaço, quem é?/ É o coração da gente/ Que faz pirueta/ Pelo amor de uma mulher…”. A canção não obteve o mesmo sucesso das demais, porém, em 1952, a dupla Serrinha e Caboclinho colocou na praça uma homônima, com letra e melodia completamente diversas da original de Ary.
“O Circo Vem Aí” (marcha, 1949) – Haroldo Lobo, Milton Oliveira e Carvalhinho
Aracy de Almeida tornou-se conhecida de toda uma geração como a jurada mal-humorada de programas de calouros comandados por Silvio Santos e Chacrinha. A pecha, no entanto, não faz justiça à sua história. “Araca”, apelido que ganhou do cronista e compositor Antônio Maria, era a cantora predileta de Noel Rosa, e uma das mais requisitadas na Era de Ouro do Rádio. Foi nesse período que ela deu voz à marcha “O Circo Vem Aí”, composta pelo trio Haroldo Lobo, Milton Oliveira e Carvalhinho para animar o Carnaval de 1949. “Ai, o circo vem aí/ Quem chora tem que rir/ Com tanta palhaçada/ Tem hindu que come fogo/ Faquir que come prego/ Mulher que come espada”, canta Aracy. Em 2017, Aracy recebeu merecida homenagem com o musical “A Rainha dos Parangolés”.
“O Circo Chegou” (marcha, 1949) – Braguinha, Alberto Ribeiro e Antônio Almeida
Criadores das clássicas “Balancê”, “Chiquita Bacana”, “Copacabana”, “Fim de Semana em Paquetá”, “Noites de Junho”, “Yes, Nós Temos Bananas” e outras, Braguinha e Alberto Ribeiro acolheram Antônio Almeida para compor “O Circo Chegou”, uma marcha de 1949, lançada pela voz de Sílvio Caldas com o acompanhamento luxuoso da Orquestra Tabajara de Severino Araújo. Sílvio já era, então, um cantor reconhecido por seus dotes vocais, e ficou conhecido como o “Caboclinho Querido” e o “Rei da Seresta”. Apesar de “O Circo Chegou” não ter passado à posteridade com a mesma força das demais, Sílvio não decepciona e manda brasa: “Tem leão que não quer nada/ E foge do domador…”.
“Vida de Circo” (dobrado, 1956) – Ângelo Reale, Adinaldo Rodrigues e Francisco Formaggi
Nascido no Rio de Janeiro, José Bispo Clementino dos Santos ganhou o apelido de uma fruta nativa da Índia, de coloração escura. Como Jamelão, ele se consagrou na música brasileira e viveu até os 95 anos. A voz poderosa se destacaria em sambas da Estação Primeira de Mangueira, e também com um repertório de primeira qualidade fornecido por bambas como Zé Kéti, Ary Barroso e Lupicínio Rodrigues. Jamelão manejou a força de sua voz entre o romantismo magoado da dor de cotovelo e a agitação dos sambas de avenida. Em 1956, ele provou essa vitalidade rítmica e interpretativa com o dobrado “Vida de Circo”, parceria do acordeonista Ângelo Reale com Adinaldo Rodrigues e Francisco Formaggi, que atendiam pelo nome de Dois Coringas. Uma preciosidade única!
“Pregão Circense” (baião, 1957) – Zé Dantas
Ivon Curi, mineiro de Caxambu, era o exemplo acabado do multiartista. Cantor, compositor, ator e dublador, ia da veia cômica ao romantismo sem o menor esforço, qualidades percebidas a olhos nus em sua música. A versatilidade de Ivon pode ser comprovada com o baião “Pregão Circense”, de Zé Dantas, de quem ele já havia gravado, com enorme sucesso, a divertida e maliciosa “Farinhada”. Em “Pregão Circense”, de 1957, Ivon combina as habilidades de ator e cantor na mesma medida: Oh! raia o sol/ Suspende a lua/ Olha o palhaço/ No meio da rua…”, interpreta ele, que incentiva a plateia a participar da cantoria. A música foi regravada pela cantora Claudya, em 1973, no LP “Deixa Eu Dizer”.
“O Circo Vem Aí” (marchinha, 1957) – Risadinha e José Roy
O paulistano Francisco Ferraz Neto, conhecido como Risadinha, foi um desses astros de outrora que a memória nacional apagou do cancioneiro popular. Cantor e compositor, ele morreu jovem, aos 55 anos, o que pode ter contribuído para o esquecimento. Parceiro de bambas como Haroldo Lobo e Wilson Batista, ele lançou, em 1957, a marchinha “O Circo Vem Aí”, que estouraria no Carnaval do ano seguinte. Feita com José Roy, era homônima àquela lançada por Aracy de Almeida, mas não guardava nenhuma outra semelhança além desta. A música foi interpretada pelo próprio Risadinha na chanchada “Vou Te Contá…”, de 1958, com Virgínia Lane, Jorge Veiga, Isaurinha Garcia e Ronald Golias no elenco. “Alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo”, diz Risadinha, que dá boas risadas!
“Alma de Palhaço” (modinha, 1958) – Carequinha e Fred Vilar
Além de apresentar programas infantis nas TVs Tupi, Rio e Manchete, e de ter participado da “Escolinha do Professor Raimundo”, na Rede Globo, Carequinha ainda foi capaz de conciliar a canção às suas atividades circenses. Como intérprete e compositor inspirado, ele foi de marchinhas debochadas e histriônicas a reflexões seresteiras sobre a “Alma de Palhaço”, que trazia os sensíveis versos: “De um circo eu sou palhaço/ No rosto levo este traço/ para alegrar a multidão/ Mas é tudo fantasia/ É falsa a minha alegria/ É tudo, tudo, ilusão…”. A parceria com Fred Vilar foi lançada por Carequinha no ano de 1958.
“O Circo” (cantiga de roda, 1967) – Sidney Miller
Nara Leão, em 1967, deu voz a uma das mais singelas músicas já feitas para o universo infantil. “O Circo”, de Sidney Miller, capta em forma e conteúdo o ambiente propício para que a fantasia, o lúdico e a magia conquistem o coração de adultos e crianças. As imagens do palhaço, do domador e da bailarina servem como a tríade que representa a vida em seu romance, sua comédia e o próprio drama. Sidney Miller embala os versos com a sutil delicadeza de quem compreende a vida em suas nuances simples e contraditórias. Ao final, a nostalgia acende no homem o instinto da infância, o sentido: “Foi-se embora e eu ainda era criança…”, sugere o autor, como quem joga confetes para o vento. A música foi lançada pelo próprio autor, em registro de voz igualmente delicado.
“A História do Circo” (marcha-rancho, 1972) – Batatinha
Gravado pela primeira vez, em 1954, por Jamelão, o compositor e cantor Oscar da Penha, conhecido como Batatinha, era também um melodista afiado, capaz de, com uma simples caixinha de fósforos, construir a forma perfeita para suas palavras se encaixarem. Lançada por Maria Bethânia, em 1972, “A História do Circo” dá uma pequena prova da capacidade de seu compositor. “Todo mundo vai ao circo/ Menos eu, menos eu/ Como pagar ingresso/ Se eu não tenho nada/ Fico de fora escutando a gargalhada…”. A segunda e última parte é ainda mais cortante: “A minha vida é um circo/ Sou acrobata na raça/ Só não posso é ser palhaço/ Porque eu vivo sem graça”. Ela foi regravada por Celso Sim, em 2017.
“Mambembe” (MPB, 1972) – Chico Buarque
Cacá Diegues, casado à época com a cantora Nara Leão, dirigiu o filme “Quando o Carnaval Chegar”, a encomendou a trilha sonora a Chico Buarque, que também participou do roteiro com o cineasta e Hugo Carvana, protagonista da saga. Para completar, Chico foi convencido a vencer a histórica timidez e atuar ao lado de Nara e Maria Bethânia. A música que abre a trilha é justamente “Mambembe”, em uma versão instrumental de orquestra, para depois ser cantada pelo compositor. A letra retrata o cotidiano dos artistas mambembes, itinerantes que levavam a sua arte pelas cidadezinhas, enfrentando as inerentes dificuldades: “No palco, na praça, no circo, num banco de jardim/ Correndo no escuro, pichado no muro/ Você vai saber de mim/ Mambembe, cigano…”, canta.
“O Circo Chegou” (sambalanço, 1972) – Jorge Ben Jor
Jorge Ben Jor foi um verdadeiro aparecimento na música brasileira, que provocou rebuliços dos mais variados. Gilberto Gil cogitou, inclusive, abandonar a carreira, já que não havia mais nada a contribuir após Ben Jor. O seu estilo único, inconfundível, posteriormente batizado de sambalanço e samba-rock, dá o tom de “O Circo Chegou”, faixa editada no LP de 1972, aquele que trouxe sucessos do porte de “Fio Maravilha”, interpretada visceralmente por Maria Alcina no Festival Internacional da Canção, e “Taj Mahal”, onde ele revisitava, a seu modo, a história do mausoléu construído na Índia, considerado uma das sete maravilhas do mundo moderno. O circo de Jorge Ben Jor não é menos inventivo: “Tem um macaco cientista/ Um urubu que toca flauta e violão/ Uma orquestra de sapo/ A cabra ciclista/ A girafa seresteira/ Tem um anão gigante”, desfia o cantor.
“Contrastes” (samba, 1973) – Ismael Silva
Ismael Silva foi um bamba de primeira qualidade, fundador da primeira Escola de Samba do Brasil, a Deixa Falar, que incentivaria o surgimento das posteriores. Parceiro de Noel Rosa em “A Razão Dá-se a Quem Tem”, e de Nilton Bastos na clássica “Se Você Jurar”, autor da dolorida “Antonico”, gravada por Elza Soares e Gal Costa, ele compôs, em 1973, o samba “Contrastes”, uma preciosidade que seria resgatada pelo olhar atento do irrequieto Jards Macalé, no ano de 1977. A canção deu título ao álbum mais elogiado do artista, que recebeu a pecha de “maldito” da indústria fonográfica por seu comportamento independente. Com perspicácia, a letra de “Contrastes” é um apanhado das contradições do Brasil: “Existe muita tristeza/ Na rua da alegria/ Existe muita desordem/ Na rua da harmonia/ Analisando essa estória/ Cada vez mais me embaraço/ Quanto mais longe do circo, mais eu encontro palhaço…”. Ela foi regravada por Luiz Melodia.
“Circo Marimbondo” (samba, 1976) – Milton Nascimento e Ronaldo Bastos
Criado em Três Pontas, no interior de Minas, Milton Nascimento despontou como o principal nome do Clube da Esquina, movimento que provocou uma revolução na música brasileira, ao assimilar influências barrocas e da canção estrangeira. Ao lado do parceiro Ronaldo Bastos, Milton compôs, em 1976, o samba “Circo Marimbondo”, e convidou Clementina de Jesus para participar da faixa, incluída no histórico disco “Geraes”. “Circo Marimbondo/ Circo Marambaia/ Eu cheguei de longe/ Não me atrapáia”, canta a dupla. No repertório do álbum de Milton, ainda se destacava “O Que Será (À Flor da Pele)”, em dueto com Chico Buarque.
“O Circo Vem Aí” (toada, 1976) – Abílio Manoel
Abílio Manoel nasceu na capital Lisboa, em Portugal, mas cedo mudou-se para o Brasil. Em 1969, venceu o II Festival Universitário da TV Tupi, com “Pena Verde”, provavelmente o seu maior sucesso, que alcançou o topo das paradas de sucesso no ano seguinte. Antes, ele já havia concorrido em festivais com músicas como “Catavento” e “Quem Dera…”. No ano de 1976, dentro do álbum “América Morena”, apresentou ao mundo a delicada toada “O Circo Vem Aí”, que capta a preparação de uma cidadezinha para a chegada da atração principal, que mobiliza todos os habitantes. É uma dessas raridades a serem descobertas.
“Somos Todos Iguais Nesta Noite [É O Circo de Novo]” (MPB, 1977) – Ivan Lins e Vítor Martins
Ivan Lins aparece vestido de mágico na capa do LP lançado por ele em 1977, tirando um abacaxi da cartola, enquanto, ao fundo, há alusões a domadores, leões, acrobatas e equilibristas. Era uma crítica sutil e sagaz à ditadura militar brasileira, que obrigava os artistas a se virarem para sobreviver, lançando mão de metáforas e outras artimanhas verbais e físicas, a fim de preservarem alguma liberdade. Ao mesmo tempo, também era uma homenagem ao circo, como explicitava o subtítulo de “Somos Todos Iguais Nesta Noite”, também conhecida como “É O Circo de Novo”. Mais uma parceria de sucesso da dupla formada por Ivan Lins e Vítor Martins, a música se tornou um clássico popular.
“Artistas da Vida” (MPB, 1978) – Gonzaguinha
Gonzaguinha é um desses artistas que jamais descolou a preocupação social de sua obra, a exemplo de Sérgio Ricardo e Taiguara. Em 1978, ele já havia superado o estigma de “cantor rancor”, com os sucessos românticos do bolero “Começaria Tudo Outra Vez” e da intensa “Explode Coração”, espalhada Brasil afora pela voz de Maria Bethânia, quando colocou na praça “Artistas da Vida”, em que, de forma menos agressiva que em outros momentos, não deixava de tocar nas profundas feridas sociais do país advindas de sua imensa desigualdade social. Na visão de Gonzaguinha, todos entravam nesse circo e precisavam de malabares. Foi regravada por Emílio Santiago e Marília Barbosa.
“Alô, Judite!” (samba de gafieira, 1978) – Almir Guineto e Luverci
Com um instrumental de primeiríssima qualidade, com orquestra e tudo, Mussum registra em seu primeiro álbum, de 1978, a música “Alô, Judite!”, dos amigos Almir Guineto e Luverci. Ainda no campo do humor, só que de maneira menos debochada e mais suave, o artista faz uma brincadeira com o deslumbramento da Judite da letra, que adentrou ao “dog society”, “tratou da celulite” e “ofusca a luz da Light”, e, pasmem, quem diria, está até “usando modelos do Clodô”, referência bem humorada ao estilista, à época no auge, Clodovil. Esse samba de gafieira mostra não só a veia cômica de Mussum, mas também as qualidades do ator, músico, e até uma certa preocupação social, ainda que disfarçada sob a égide da ironia, talvez a melhor maneira de modificar o mundo sem cair no aborrecimento. Como bom palhaço de circo, Mussum leva o público a gargalhar.
“O Bêbado e a Equilibrista” (MPB, 1979) – João Bosco e Aldir Blanc
Outro compositor alçado à fama por Elis Regina foi o mineiro de Ponte Nova, João Bosco. Ele já havia se encontrado e mostrado músicas, inclusive, para Vinicius de Moraes, mas foi o poder de elevação do canto de Elis que o colocou, em definitivo, no panteão da música brasileira. Além disso, João formaria, no Rio de Janeiro, uma das mais frutíferas parcerias da nossa canção, ao lado do carioquíssimo Aldir Blanc. “O Bêbado e a Equilibrista” narra, com contundentes e líricas referências a vítimas da ditadura – como a viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e enforcado nas prisões do regime militar, e Herbert de Souza, o Betinho, identificado na letra como “o irmão do Henfil” – as asperezas e esperanças daquele período de chumbo. Ainda encontrava espaço para lembrar de Charlie Chaplin, o Carlitos, pobre vagabundo que amava toda a humanidade.
“Palhaço” (MPB, 1980) – Egberto Gismonti
Um dos mais renomados músicos do Brasil, o multi-instrumentista Egberto Gismonti resolveu dedicar, em 1980, todo um álbum à magia do circo. Intitulado “Circense”, o trabalho trazia uma capa marcante, com um palhaço entreabrindo a lona do circo, onde aparecia o sorridente rosto de Gismonti. Um dos temas instrumentais mais delicados e bonitos do disco é, justamente, “Palhaço”, que congrega risadas de crianças ao fundo. Com sua arte, Gismonti permite que penetremos, lentamente, num mundo de memórias da infância. Outras faixas, como “Cego Aderaldo”, “Mágico”, “Tá Boa, Santa?”, “Equilibrista” e “Ciranda” também são irresistíveis. Melancolia, solidão e leveza, são todas contempladas.
“A Foca” (infantil, 1980) – Toquinho e Vinicius de Moraes
Em 1980, os poemas de Vinicius de Moraes que abordavam a história bíblica da “Arca de Noé” ganharam a primeira versão em disco, com melodias de Toquinho. Vários artistas participaram desse trabalho – que teve a arte da capa feita por Elifas Andreato –, como Elis Regina, Milton Nascimento, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Marina Lima e o conjunto As Frenéticas. Ficou a cargo de Alceu Valença a divertida “A Foca”, que brinca sobre o fato de o animal ter habilidades circenses. Alceu encarna o apresentador do circo e conclama a criançada a conhecer um pouco mais sobre esse curioso e irrequieto ser do mundo aquático.
“Piruetas” (MPB, 1981) – Chico Buarque
A versão em português com músicas de Chico Buarque para o musical italiano “Os Saltimbancos”, serviu de base para o filme dos Trapalhões, de 1981, que também trazia Lucinha Lins no elenco. A versão italiana, por sua vez, era uma adaptação do conto dos Irmãos Grimm, “Os Músicos de Bremen”. Ao unir um universo fantástico, protagonizado por animais falantes, com a magia típica do mundo circense, Chico criou uma trilha sonora delicada, onde ele próprio interpretava a primeira faixa: “Uma pirueta/ Duas piruetas/ Bravo/ Bravo!”. O longa com os Trapalhões se tornou um dos maiores sucessos de bilheteria do quarteto formado por Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, fazendo história na telona.
“O Circo” (blues, 1982) – Rita Lee e Roberto de Carvalho
Quando integrava o trio Os Mutantes, com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, a irrequieta Rita Lee já havia adentrado o universo circense com o arranjo de Rogério Duprat para “Panis Et Circenses”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, cuja tradução do título era, justamente, “Pão e Circo”. Na irreverente “Jardins da Babilônia”, ela também tocou no tema: “Pegar fogo nunca foi atração de circo/ Mas de qualquer maneira pode ser um caloroso espetáculo”, ironizava. Em “O Circo”, do disco em que aparecia nua na capa com o marido Roberto de Carvalho em uma piscina de plástico, a pegada era outra. Desta vez, Rita subvertia a alegria geralmente associada ao circo, para contar a história de um palhaço que vivia chorando, de um engolidor de espadas que quer arrepiar o cabelo e de uma mulher barbada apaixonada pelo domador, entre outras peripécias de sua lavra.
“O Circo Místico” (MPB, 1983) – Chico Buarque e Edu Lobo
Em 1982, Chico Buarque e Edu Lobo receberam a incumbência de criar a trilha sonora para o balé “O Grande Circo Místico”, que Naum Alves de Souza criou em cima do poema homônimo do alagoano Jorge de Lima. O espetáculo deu vazão a um álbum lançado em 1983, com a nata da MPB: Milton Nascimento, Gal Costa, Gilberto Gil, Simone, Tim Maia e outros. Ficou a cargo de Zizi Possi dar voz à sofisticada “O Circo Místico”, que passava de soslaio sobre a morte: “Não sei se é nova ilusão/ Se após o salto mortal/ Existe outra encarnação”. A música possibilitou ao público a nova oportunidade de conhecer Jorge de Lima.
“Beatriz” (valsa, 1983) – Chico Buarque e Edu Lobo
Inspirado em uma história real passada na Áustria do século XIX, o escritor alagoano Jorge de Lima (1893-1953) criou, em 1938, o poema épico e surrealista “O Grande Circo Místico”. Transformado em balé, o espetáculo ganhou trilha musical de Chico Buarque e Edu Lobo no ano de 1983, quando a dupla compôs a belíssima “Beatriz”. Interpretada por Milton Nascimento, a valsa faz uma elegia para a personagem que dá nome à canção e, com igual sensibilidade nos versos e acordes, cria uma imagem fluida e apaixonante. “Olha, será que ela é moça? Será que ela é triste? Será que é o contrário…?”. A música ganhou regravações de Tom Jobim, Ana Carolina e do próprio Chico. A protagonista é toda circense.
“Ele Não Sabia de Nada” (picadilly rock, 1984) – Eduardo Dussek
Eduardo Dussek surgiu para a música brasileira carregando as influências do chamado Teatro Besteirol, que revelou nomes como Miguel Falabella, Pedro Cardoso, Vicente Pereira, Mauro Rasi, Guilherme Karan e seu parceiro Luiz Carlos Goés, dentre muitos outros. Com essa característica bastante peculiar, ele incorporou o humor em sua dramaturgia musical e se destacou entre os pares. “Ele Não Sabia de Nada” é um picadilly rock que bebe de todas essas referências e, inclusive, traz o gênero musical em seu subtítulo. O próprio Dussek conta que o circo e a Commedia dell’arte italiana o formaram. A versão de Dussek traz as participações de Júlio Barroso e Taciana Barros, egressos da banda Gang 90 e as Absurdettes. A música foi regravada por Silvia Machete. O universo circense aparece em todos os instantes dessa iluminada letra musical.
“O Palhaço” (infantil, 1991) – Cylene Peluso e Olívio Araújo
Mineiro do Vale do Jequitinhonha, Rubinho do Vale nasceu na pequena cidade de Rubim, no interior do Estado. Entre suas influências estão Elomar, Geraldo Vandré e Renato Andrade. Em 1991, o violeiro colocou na praça um dos discos mais emblemáticos de sua carreira. “Ser Criança” trazia, entre outras, a faixa “O Palhaço”, uma composição de Cylene Peluso e Olívio Araújo. Com versos simples e delicados, a cantiga logo se tornou um sucesso de Rubinho. “O palhaço é nossa alegria/ Qualquer hora de noite ou de dia / O palhaço vira cambalhota/ E sua bengala parece a letra J”, dizem os versos finais da canção…
“O Circo” (blues, 1996) – Orlando Morais e Antônio Cícero
Maria Bethânia voltou à temática circense em 1996, com o disco “Âmbar”, um dos mais bem-sucedidos de sua carreira, que faturou, inclusive, certificado de ouro pelas milhões de cópias vendidas. No repertório, ela revisitava a clássica “Chão de Estrelas”, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, e dava voz a novidades de Adriana Calcanhotto, Chico César, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e outros. Dentro dessa seleção luminosa, também constava “O Circo”, um blues de Orlando Morais e Antônio Cícero, envolvente e íntimo como pede a voz da intérprete: “Quando a noite vem/ Um verão assim/ Abrem-se cortinas, varandas”.
“Pequeno Circo Íntimo” (MPB, 1999) – Ivan Lins, Aldir Blanc e Paulo Emílio
Durante a ditadura militar, Ivan Lins e Aldir Blanc formaram, ao lado de Gonzaguinha, César Costa Filho e de outros colegas do ambiente estudantil, o MAU (Movimento Artístico Universitário). O grupo se reunia com frequência na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro para longas conversas e rodas de violão e pretendia, principalmente, ampliar o espaço para a música autoral no país. A amizade entre Ivan e Aldir perdurou até que, em 1996, eles criaram “Cegos de Luz”, gravada por Leila Pinheiro e regravada pelo próprio Ivan Lins. Juntos, Ivan e Aldir também criaram “Festas”, “Por Favor”, “Pequeno Circo Íntimo” e “Clareou”, esta última com a presença do sambista Moacyr Luz como parceiro. “Pequeno Circo Íntimo”, que congregava Paulo Emílio à parceria, foi lançada em 1999, no álbum de estreia da cantora Adriana Capparelli, que não decepcionou.
“De Normal Bastam os Outros” (rock, 2014) – Arnaldo Antunes
O exotismo musical de Maria Alcina, mineira de Cataguases, sempre teve em Carmen Miranda uma de suas principais referências. Por isso, não espanta que o universo teatral e circense a seduza. Em 2014, ao comemorar 40 anos de carreira, Maria Alcina ganhou de presente o álbum “De Normal Bastam os Outros”, com músicas compostas especialmente para ela por Zeca Baleiro, Péricles Cavalcanti, Karina Buhr, Anastácia e outros. A faixa-título ficou a cargo de Arnaldo Antunes, que ofereceu a Alcina um banquete para ela se deleitar com as patacoadas circenses típicas de sua personalidade artística: “De normal bastam os outros/ Vale a pena ver de novo/ Todo mundo vai ao circo/ Gente fina é outra coisa”, entoa Alcina, com a gravidade característica de sua voz singular.
“BABEBIBOBU” (tropicalista, 2014) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
Uma celebração do circo não pode deixar de fora a figura exuberante de Silvia Machete, sempre arteira com suas maracas e bambolês. A atividade circense formou a artista nas ruas da França e de Nova York. E Silvia não esqueceu essa escola, ao contrário. Depois de três discos com todas as plumas e paetês a que ela tem direito, a intérprete ofereceu ao público “Souvenir”, em 2014. No esperto repertório, músicas de Angela Ro Ro, Eduardo Dussek e da dupla Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que contribuiu com “BABEBIBOBU”, prenhe da Tropicália que os guia desde os anos 1970. Irreverente, lânguida, debochada, a canção traz ecos de Lamartine Babo, por meio de ditados reciclados pela transgressão.
“Anjo da Cena” (valsa, 2017) – Eduardo Dussek
Quando Eduardo Dussek elogia Silvia Machete na abertura do show, as cartas já estão na mesa: “Circense como Maria Bethânia”, compara. Nota-se, a partir daí, que o deboche será a tônica. Nenhuma novidade para quem conhece a trajetória do homenageado. Em “Dussek Veste Machete”, lançado em CD e DVD, Silvia dá voz, corpo e o que mais estiver ao alcance de pés ou mãos a nove canções da lavra do autor de “A Índia e o Traficante” e “Aventura” (parcerias de sucesso com Luiz Carlos Góes). Nos dois números finais do espetáculo, o compositor comparece para acompanhar Silvia ao piano. A então inédita “Anjo da Cena” poetiza com rara beleza: “Quem sabe um dia/ Alma pequenina/ O anjo da cena acorde essa menina/(…) Uma ribalta gigante e tão maneira/ Todos têm falta de teatro e brincadeira”. A cenografia delicada adensa a mensagem cujo referencial é o mundo criado por Charlie Chaplin, cineasta, compositor e palhaço.
*Bônus
“A Música e o Circo” (MPB, 2018) – Tavinho Moura, Fernando Brant e Beto Lopes
Nascido em Juiz de Fora, o mineiro Tavinho Moura integrou o Clube da Esquina com Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, Toninho Horta, Wagner Tiso e outros bambas da turma. Programando a continuação do álbum “Conspiração dos Poetas”, feito com Fernando Brant, ele começou a receber letras inéditas do parceiro, mas a partida precoce, em 2015, interrompeu o processo e deixou os planos em suspenso. Tavinho decidiu voltar aos escritos em 2017 e, no ano seguinte, colocou na praça “O Anjo na Varanda”, cuja delicada capa trazia desenhada uma lona de circo, referência à faixa “A Música e o Circo”, composição que ganhou o acréscimo de Beto Lopes. Na letra de Brant, ele compara a atividade musical de instrumentos aos corpos dos artistas circenses. A gravação trouxe as participações de Mariana Brant, sobrinha de Fernando, e Nelson Ângelo, outro participante do Clube da Esquina. É para acalentar a alma.
Foto: Murillo Meirelles/Divulgação.