*por Raphael Vidigal
“Sonhos de vida roceira me vêm; suposições do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. Índios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores – tudo isso me acode à vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.” Lima Barreto
A exemplo de “Árido Movie” (2006), a morte dá a partida na história. No filme anterior, o personagem de Guilherme Weber, um repórter do tempo que vive em São Paulo, retorna à Rocha, sua cidade natal, no interior de Pernambuco, para o enterro do pai assassinado. Em “Acqua Movie”, continuação da saga do diretor Lírio Ferreira, exibido pela primeira vez na 9ª Mostra Ecofalante, disponível online e gratuitamente, é Weber quem morre durante o banho, e seu filho, vivido por Antonio Haddad, decide levar suas cinzas para a mesma Rocha – ou quase. A antiga localidade agora está submersa e ali perto foi erguida Nova Rocha. O simbolismo da água não é casual e rende belas imagens, dando inclusive maior fluidez à história.
Como se diz, “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”. A constância da mudança é confrontada com a permanência de velhas práticas, caso do coronelato político. A questão do tempo, seja do ponto de vista metafísico ou pragmático, está em discussão tanto quanto a relação dos homens com o espaço, e aqui há uma diferença que dita a trama: o mundo urbano lida com o meio ambiente e a natureza de maneira oposta à dos indígenas, fato este que dispara inúmeras tensões. A disputa territorial gera conflitos, mas o que o invasor não compreende é que essa devastação do planeta pode virar-se contra ele mesmo. “Quando perceberem que não se come petróleo e não há mais ar puro para respirar, talvez seja tarde”, afirma Zé Caboclo, interpretado por Aury Porto.
Augusto Madeira, versado na comédia, surge confortável no papel do prefeito criminoso, e tem o mérito de expor o ridículo de sua personagem, o que compensa a atuação irregular de Alessandra Negrini, que tende a colocar sua personalidade à frente. Documentarista de causas indígenas, ela é a mãe de Cícero que o leva àquele fim de mundo para espalhar as cinzas do pai. Nesse ínterim, Marcélia Cartaxo e Zezita Matos comparecem em momentos pontuais, suficientes para abrilhantar o filme. Há similaridades com “Piedade”, de Cláudio Assis, que faz uma ponta como governador. Uma delas é o uso da tecnologia para distrair os jovens da realidade e a sedução através do poderio econômico.
Cícero é quem realiza a travessia que conduz o longa. Os preconceitos e as mesquinharias são, aos poucos, mitigados pelo encontro com o diferente. As desventuras um bocado tronchas que o roteiro cria, para injetar alguma ação e suspense, não chegam a comprometer o conjunto da obra. O que se depreende de mais importante em “Acqua Movie” é a reflexão que propõe acerca das violências de toda ordem, amparadas por uma política de exploração sem folga, que mira os mais vulneráveis, porém, como ficamos sabendo mais do que nunca, no meio de uma pandemia que vitimou mais de 100 mil brasileiros em menos de seis meses, atinge a todos, porque direcionada contra o lugar aonde vivemos.
Fotos: Fred Jordão/Divulgação.