*por Raphael Vidigal Aroeira
“Será que essa gente percebeu
Que essa morena desse amigo meu
Tá me dando bola tão descontraída
Só que eu não vou em bola dividida” Luiz Ayrão
“Imagina um sujeito advogado, circunspecto, sério, de repente está no programa do Chacrinha?”. O questionamento de Luiz Ayrão é seguido por uma gargalhada. A história aconteceu com ele, que acaba de completar 80 anos – Carioca da gema, o músico, cantor e compositor nasceu no dia 19 de janeiro de 1942. Entre seus maiores sucessos estão “Nossa Canção” e “Porta Aberta”.
“Nunca me senti tocado pela idade. Com 60, 70 anos, não senti muito, mas 80 é um número expressivo. Claro que há limitações físicas, o joelho, o equilíbrio, mas ainda faço minha musculação e vou me segurando porque Deus é maior e está no controle. Lido bem com a idade”, garante Luiz Ayrão. Além da forma física, um bom indicativo é a cabeça do compositor, que segue a mil por hora. “Estou há quase dois anos trancado em casa, claro que saio, mas a maior parte do tempo é em frente ao computador, com o piano ou o violão”, diz, em referência à pandemia que levou o mundo a medidas de isolamento social.
Novidades. Entre os projetos que Ayrão prepara para lançar ainda em 2022 estão músicas para a América Latina (composta em espanhol), o Cristo Redentor, a Copa do Mundo de 2022 – em 1982, ele compôs “Meu Canarinho”, feita para ser hino da Seleção Brasileira – e a cereja do bolo: um monólogo sobre a sua trajetória.
“São 80 anos de vida que não caberiam nem um samba-enredo”, diverte-se. “Pretendo gravar o monólogo em vídeo, estamos só esperando a (variante da Covid-19) Ômicron passar”, revela. “Você é parente do compositor?”. “Não, sou eu mesmo”. Esse diálogo era comum na vida de Luiz Ayrão, em qualquer lugar em que ele chegava e pediam para ler o seu documento de identidade. “O Roberto Carlos era os Beatles da época, tocava de domingo a domingo nas estações de rádio”, observa.
Sucesso. O então advogado passou do anonimato para o estrelato quando o Rei Roberto Carlos decidiu gravar “Nossa Canção”, em 1966, que Luiz Ayrão havia composto. O sucesso atingiu proporções inimagináveis para o entrevistado. “As rádios falavam o nome do compositor. O Roberto Carlos acabava de cantar e o locutor dizia: Ouvimos ‘Nossa Canção’, de Luiz Ayrão”, recorda.
“Essa música abriu todas as portas pra mim, inclusive na minha vida profissional de advogado. Foi ela que me fez ver a cor do dinheiro. Eu era muito jovem ainda, tinha 24 anos, e consegui dar entrada em um apartamento com os direitos autorais. Comecei a gravar músicas com outros artistas”.
A música foi tão importante na trajetória de Luiz Ayrão que ele ganhou de presente um quadro de um amigo com a partitura de “Nossa Canção”, já gravada por Maria Bethânia, Vanessa da Mata, Nana Caymmi, Sérgio Reis, Mallu Magalhães, Zé Renato, Paula Fernandes e pelo próprio compositor.
Acaso. Depois de ficar conhecido como compositor foi que Luiz Ayrão conheceu a fama no papel de cantor. “Eu não decidi ser cantor, foi por acaso”, revela, em uma história que também deve constar no seu monólogo. Criador de versões e composições autorais, Romeu Nunes tinha se amigado de Luiz Ayrão desde o tempo em que ambos estavam na RCA Victor. “Naquela época eu era apenas um cantor amador, tinha gravado quatro disquinhos, mas sem dar muita importância. A gravadora também não me dava bola”, diz Ayrão.
Quando Romeu Nunes foi para a Odeon, os pedidos para Luiz Ayrão enviar músicas para ele apresentar a Clara Nunes, Wilson Simonal, Agnaldo Timóteo, se intensificaram. Um dia, convidado a se dirigir à gravadora para assinar um contrato de autor, Luiz Ayrão teve uma surpresa.
Reviravolta. “O Romeu Nunes falou comigo assim: ‘Não leva a mal, não fica zangado, entra no estúdio e põe a voz’. E eu respondi: ‘Que voz?’”. Resumindo a história, Luiz Ayrão conta que, apesar de ter achado “o arranjo estranho”, topou a parada. Bastou um mês para que o compacto com “Porta Aberta”, composta por ele em homenagem à Portela, estivesse em primeiro lugar nas rádios de todo o país.
“Minha vida deu uma reviravolta”, admite. O sucesso, intensificado com “Bola Dividida” (de 1975, regravada por Zeca Baleiro), impagável história do sujeito em dilema sobre ficar com a mulher do amigo para ela não pensar que ele “se androginou”, o levou a conhecer todo país, do Oiapoque ao Chuí, literalmente.
Foram mais de cinco mil shows, percorrendo todos os Estados da federação e quase a totalidade de seus municípios. Luiz Ayrão lista com orgulho, por exemplo, as 62 cidades do Amazonas, no Norte do Brasil. “Essa experiência me ajudou muito nas minhas composições, conhecer cada tipo de brasileiro, saber sua inclinação”, salienta o cantor dos hits “Os Amantes” e “O Lencinho”.
Tempos modernos. “Um traço que une todos os brasileiros é o sentimento de fraternidade e alegria”. Apesar de ele mesmo ter sido um artista popular, de massa, Luiz Ayrão não vê com bons olhos a música que faz a cabeça dos brasileiros atualmente. Ironia do destino, em seu auge, alas da chamada MPB e da bossa nova torciam o nariz para o samba que ele, Benito Di Paula e Wando faziam, taxados de música meramente comercial.
“Não chamo isso aí que toca nas rádios hoje de sertanejo universitário, porque dizer que o universitário, que já fez muitos anos de estudo, gosta desse tipo de música, é complicado. Isso aí pra curso primário do meu tempo…”, critica. “A letra é muito ruim, dirigida para um sucesso efêmero, os caras estão doidos pra aparecer, claro que tem alguma coisa boa, mas nada comparável às canções de vinte, trinta anos atrás”, sustenta.
Mas, como bom brasileiro, Luiz Ayrão não perde a esperança. “Não é saudosismo, é que não tem qualidade. É tudo sempre igual: os arranjos, o refrão, o apelo. Inclusive no samba é muita repetição, está difícil. Mas, vamos ver, vai ter uma reviravolta. Quando chega lá no fundo do poço, aí alguém vem à tona com uma novidade”. Em 2019, após ficar dez anos sem gravar inéditas, Luiz Ayrão colocou na praça seu disco mais recente: “Um Samba de Respeito”.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.