Aos 80 anos, Chico Buarque tem a obra revista e analisada em livros

*por Raphael Vidigal Aroeira

“É assim como se o ritmo do nada
Fosse, sim, todos os ritmos por dentro” Chico Buarque

O jornalista Hugo Sukman avalia que, “por mero acaso, Chico se tornou inimigo público nº 1 da ditadura”. A pendenga começou quando ele compôs “Tamandaré”, numa ironia à desvalorização da nota de cinco cruzeiros que estampava o rosto do almirante, entendida pela Marinha como um ataque direto a seu patrono. Ao invés de recuar diante da censura, Chico, então dedicado a remodelar o samba tradicional na linhagem de Noel Rosa, Ataulfo Alves, Wilson Batista e Ismael Silva, investiu em canções de conotação política, em um revide camuflado por metáforas que não abafavam a contundência lírica do discurso.

O tema embasa o livro “O Que Não Tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar”, publicado pelo jornalista Márcio Pinheiro. “Optei por fazer um recorte que, aproximadamente, vai de 1966 a 1989, tratando a ideia central de que Chico foi o artista brasileiro mais visado pela censura, e de como ele soube enfrentá-la com inteligência e criatividade”, sustenta Pinheiro, cuja “principal descoberta” nesse longo processo de pesquisa foi a de que “muitos censores se portavam como popstars, gostavam da função que desempenhavam, faziam com gosto, diria até que sentiam um certo orgulho”.

Entrevista com Márcio Pinheiro, autor do livro “O Que Não Tem Censura nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar”

1 – Como surgiu o interesse em pesquisar as canções censuradas de Chico Buarque e o que você descobriu de mais revelador nesse percurso?
Esse livro – de certa maneira – é uma continuação de “Rato de Redação – Sig e a História do Pasquim”, meu livro anterior. O principal vínculo é repetir o meu interesse pelo período da vida brasileira que vai do final dos anos 60 à metade dos anos 80. Cada vez me convenço mais que a década de 70 – meio que perdida ali entre as tão exaltadas décadas de 60 e 80 – foi um período interessantíssimo ainda pouco explorado. É uma década subestimada. Além disso, Chico era uma obsessão intelectual mais antiga do que o Pasquim.

Ao me dar conta que ele completaria 80 anos em 2024, fiquei com a certeza de que era uma ótima data para juntar dois desses meus interesses: o personagem e o período. Assim, me pareceu natural escrever sobre ele – faltava achar um foco, já que uma biografia completa de um personagem vivo e ativo me parecia ser impossível de ser feita nesse momento e nessas condições. Dessa maneira, optei por fazer um recorte que, aproximadamente, vai de 1966 a 1989 tratando a ideia central de que Chico foi o artista brasileiro mais visado pela Censura – e de como ele soube enfrentá-la com inteligência e criatividade. Entre tantas coisas, acredito que uma das maiores descobertas que tive foi notar como muitos censores se portavam como popstars. Gostavam da função que desempenhavam, faziam com gosto. Diria até que sentiam um certo orgulho.

2 – De que maneira a censura e a ditadura militar impactaram na produção musical do Chico?
Completamente. Quando a ditadura se declarou vitoriosa, ele não havia completado 20 anos. Quando o AI-5 foi decretado, Chico recém fizera 24 e era um veterano, com seu nome já inscrito na história da MPB: compusera clássicos atemporais como “Olé, Olá”, “Pedro Pedreiro”, “Morena dos olhos d’água” e, principalmente, “A banda”. E já era visado pela Censura. A partir de então, Chico não teve descanso. Foi perseguido, censurado, vetado, exilado, cortado e até, de forma temporária, calado.

3 – Que papel Chico Buarque desempenhou durante a ditadura militar e de que maneira aquele período e a histórica postura política do compositor conversam com os tempos atuais, 60 anos após o golpe?
Inteligente e sagaz, Chico criou as mais belas metáforas que viabilizaram a divulgação da sua produção artística. Nesse período, marcou um golaço em matéria de ousadia e audácia ao criar Julinho da Adelaide, um compositor fictício que até ser descoberto pela Censura fez os censores de bobos. Acredito que não há comparação direta. Por mais que se analise os dias atuais é possível notar que não há uma censura como houve naquela época – nem aos artistas, nem aos jornais. Também não há perseguições como naquele tempo. Hoje, acredito, não existe nenhum compositor que de cada quatro músicas compostas tenha três proibidas.

4 – Quais as canções mais expressivas de Chico nesse contexto que você destacaria e o que elas falam de mais forte para os tempos atuais?
Vamos ficar em uma só? “Apesar de você”. Este samba composto em 1970 e lançado como compacto simples naquele mesmo ano era, para Chico, um teste: o de como seria seu relacionamento com a censura nessa nova fase. De volta ao Brasil depois de um período na Itália, Chico encontraria em seu retorno um país que se dividia entre o ufanismo (presente em adesivos de carros, como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Ninguém segura esse país”, e em algumas canções populares, como “Pra frente, Brasil” e “Eu te amo, meu Brasil”) e as primeiras notícias sobre perseguições políticas, tortura e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime.

Com “Apesar de você”, Chico comentava o clima reinante, sem citar nomes, tratando um episódio político como se fosse uma desavença entre namorados. Deve ter sido essa, inclusive, a sensação dos censores, já que de início a canção foi liberada pelo Departamento de Censura. A censura de “Apesar de você” colocou Chico Buarque num novo patamar na sua relação com o governo militar. Ele agora era o principal inimigo a ser observado por quem estava no poder. A partir de então, Chico seria o alvo preferido, marcado de forma implacável pelos censores e tendo muitas de suas letras rejeitadas pelas mais absurdas justificativas – isso quando os censores se davam o trabalho de justificar.

5 – O que torna essa produção de Chico, localizada no tempo e, portanto, tendente a se tornar datada, em algo atemporal, que continua tendo sua vitalidade atualizada?
Agora, neste primeiro semestre de 2024, a poucos dias dos 80 anos, Chico permanece sendo uma figura imprescindível, seja na atuação artística, seja no debate sobre o futuro do Brasil. Mesmo o Chico recolhido ainda é uma das vozes mais lúcidas de sua geração. Se hoje ele se espanta em ver as redes sociais tomadas pelo ódio – muitas vezes inclusive contra ele –, Chico se mostra ainda melhor. É, creio, uma figura mais abrangente do que no tempo em que até chegou a ser apontado como uma das poucas unanimidades nacionais. Chico – com sua arte – conseguiu criar uma trincheira e dali enfrentou a ditadura. E o mais relevante: suas composições não ficaram datadas e/ou velhas. Podem ser ouvidas com o mesmo prazer 40, 50 anos depois.

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1 – Como começou a sua relação com a música do Chico Buarque? Qual a primeira música dele que você se lembra de ter ouvido e que impacto você sentiu nesse primeiro contato?
Minha relação com a música do Chico Buarque começou desde muito jovem, através da influência do meu pai, quando ouvi suas canções pela primeira vez. A primeira música que me lembro de ter ouvido dele foi “Construção”, e o impacto foi imenso, pois sua poesia e musicalidade me tocaram profundamente desde o início até a última nota.

2 – O que significou para você e como aconteceu o convite para tocar bandolim em “Que Tal Um Samba?”, a música mais recente do Chico?
O convite para tocar bandolim em “Que Tal Um Samba?” foi uma honra incrível. Aconteceu de forma natural, pois admiro muito o trabalho do Chico e estávamos conectados pela música há algum tempo. Foi uma grande felicidade gravar essa música com ele.

3 – Qual a importância dessa canção, na sua opinião, no atual contexto político do Brasil e no momento em que ela foi escrita?
“Que Tal Um Samba?” tem uma importância enorme no contexto político do Brasil, especialmente no momento em que foi escrita. Ela reflete questões sociais e políticas de forma poética e crítica, com uma inteligência aguda, mostrando a sensibilidade única do Chico para capturar a essência do momento. E tendo o samba como território para transformações sociais.

4 – Da lavra de choros do Chico Buarque, qual o seu predileto?
Entre os Choros do Chico Buarque, meu predileto é “Falando de Amor” que ele fez com Tom Jobim, Meu caro amigo, com Francis Hime também é muito especial, combinam melodia cativante e letra instigante dentro de uma linguagem muito bonita que é o Choro Canção.

5 – Qual a principal contribuição do Chico Buarque para a música brasileira?
Com sua habilidade em unir poesia e música de forma única, Chico Buarque é um dos pilares de nossa MPB. Suas letras profundas e suas melodias envolventes marcaram gerações, ele criou muitas crônicas musicais de valor incalculável inspirando outros artistas e deixando um legado duradouro dentro da história artística, política e social do Brasil.

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1 – Como começou a sua relação com a música do Chico Buarque? Qual foi a primeira música dele que se lembra de ter ouvido e que impacto sentiu naquele momento?
Meu contato com Chico Buarque vem de muito pequeno, porque ele era ídolo de minha irmã 13 anos mais velha, então fez parte da minha paisagem desde sempre. Quando eu nasci ele tinha acabado de arrebentar no festival com “Roda Viva”, então não me lembro de um mundo sem Chico Buarque. Por isso não tenho a menor ideia de qual música ouvi primeiro. Só sei que o primeiro disco dele que comprei (e que tinha ouvido antes na casa dessa mesma irmã que então morava em outra cidade) foi “Os Saltimbancos”. Esse disco infantil é influente na minha vida desde quando eu tinha 9 anos até hoje, aos 55.

2 – Millôr dizia que Chico era “a única unanimidade nacional”. O que mudou do período em que a frase foi cunhada para hoje, e quais fatores foram responsáveis pela mudança de relação da opinião pública com Chico Buarque e a sua obra?
Acho que ele nunca foi verdadeiramente unânime, porque ninguém é, mas um mundo sem internet dificultava a percepção de que, por exemplo, a direita nunca gostou do que Chico fazia. Com a internet e, mais recentemente, a saída dos fascistas do armário, ficou mais evidente que há, sim, odiadores de Chico Buarque. De todo modo, no mundo como é hoje, eu diria que a impressão de unanimidade vinha do fato de que Chico era um homem branco heterossexual de olhos azuis e de família rica, o tipo exato de cidadão blindado pela sociedade inteira, da esquerda à direita. O desmoronamento dessa figura padrão nos últimos anos, via redes sociais, tirou a impressão de unanimidade do nosso maior herói musical, o que até acho saudável em grande medida. Se, como dizia Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra, não faria sentido um cara como Chico ser unânime. E, como sabemos, ele próprio tomou um susto quando viu sua unanimidade ruir, ou melhor, quando viu o ódio sair do armário no mundo virtual, depois também no mundo material.

3 – Você tem alguma canção predileta do Chico? E o que essa, ou essas canções, tem a dizer de mais forte, na sua opinião, para os dias atuais?
Repetindo resposta anterior, por razões totalmente circunstanciais, minhas canções prediletas dele são todas as do álbum infantil Os Saltimbancos. Demorei séculos para entender que foram elas que inocularam uma perspectiva marxista no meu modo de ver o mundo. Foram elas que me incitaram a querer combater os “barões” e a acreditar que “todos juntos somos fortes”, sendo esse todo mundo qualquer um que não seja, ao mesmo tempo, branco, homem e heterossexual. O amor que sinto até hoje pelos temas do jumento, do cachorro, da galinha e da gata, pelo “au au au hi-ho hi-ho, por “A Cidade Ideal” e por “Todos Juntos” mostra o impacto e o alcance daquela fábula na minha vida e, provavelmente na vida de muitos que estavam ouvindo “Os Saltimbancos” em 1977. Para não ficar só na música infantil e adaptada de dois autores estrangeiros, eu citaria também as canções desbocadas dos discos Ópera do Malandro, de 1979, Vida, de 1980, tipo “Geni é o Zepelim”, “O Casamento dos Pequenos Burgueses”, “Não Sonho Mais”, “Bye Bye Brasil”… Essas são Chico lutando para se libertar da pecha horrível de “bom moço”, o que acho bonito à beça.

4 – Qual o lugar de Chico Buarque na história da música popular brasileira? É o maior de todos? Se não como compositor ou músico, alguém se iguala a ele em termos de letrista?
Não sou muito adepto do raciocínio competitivo das listas de melhores, nem conseguiria cravar quem é o melhor deles todos. Meu predileto não é Chico, é Jorge Ben, que dificilmente seria considerado “o melhor” pela maioria, mas que no meu coração é o melhor e o que faz as letras mais sensacionais. Num panorama histórico, ele é inquestionavelmente um dos mais importantes de sua geração, lado a lado com Caetano Veloso, e tendo Gilberto Gil como o elemento de ponte e de desequilíbrio entre os dois. Era 100% um clube do Bolinha, inclusive. Chico seria o mais importante no front nacionalista/conservador, e Caetano e Gil, no front internacionalista/progressista. Mas as coisas são bem mais complexas e até contraditórias do que isso, porque Chico soa mais progressista em termos de conteúdo, enquanto os outros dois o são na forma. Dos três, Chico é o mais aristocrático, branco e heteronormativo, o que favorece uma unanimidade não total, mas localizada nas elites e nas classes médias intelectualizadas. Chico é o máximo, mas não acredito que ele jamais tenha sido unânime nas periferias, por exemplo.

5 – Hoje em dia seria a possível a construção de uma estrela do porte de Chico Buarque? Isso se deveu somente ao gênio do artista ou também às condições históricas do período?
Acho que nossa falta de perspectiva sobre o presente não deixa ver se o Chico do século 21 existe e está andando por aí ou se nunca foi nem nunca será suplantado. Não acho que a gente tenha distanciamento nem maturidade para medir com precisão qual é a grandeza real de Mano Brown, Russo Passapusso, Alice Caymmi, Criolo, Emicida, Filipe Catto e uma pá de gente ainda mais jovem que esses. A impressão de que não há nem nunca haverá outro Chico, Caetano, Elis, Gal etc. me parece conservadora e apegada demais em modelos antigos. Queremos que o novo Chico componha as mesmas canções que o Chico original compôs há 50 anos, e isso não vai acontecer. O gênio de Chico é nítido e notável, mas acredito que cultivamos uma romantização um pouco mórbida da ditadura de 1964 e dos heróis que pelejaram contra ela. Tudo está acontecendo outra vez agora, com os golpes dos anos 2000, a escalada fascista, o caos ambiental etc., e a falta de distanciamento e de proporção não deixa a gente ver com clareza o quanto o nosso presente é rico e complexo, talvez tanto quanto foi o passado romântico da ditadura passada. Chico em si é muito menos romântico e mais combativo que Roberto Carlos, mas tenho sérias dúvidas se os fãs dele também são.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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