*por Raphael Vidigal Aroeira
“Loucura é loucura, não me compreenda
Loucura é loucura, pior é a emenda
Loucura é loucura, não me repreenda
Eu amei demais…” Angela Ro Ro
Ângela Maria Diniz Gonçalves, a popular Angela Ro Ro, ganhou o apelido ainda na infância, devido à gravidade de sua risada rouca. Inicialmente, ela não gostou do apelido, mas logo acabou adotando-o em sua carreira artística. Ela nasceu no Rio de Janeiro, no dia 5 de dezembro de 1949. Sagitariana, ficou conhecida pelo temperamento explosivo e passional na década de 1980, protagonizando algumas das confusões mais conhecidos da música brasileira.
Após um longo período de sofrimento devido aos abusos etílicos e às decepções amorosas, Angela, homossexual assumida, largou o álcool e todas as outras drogas, incluindo o cigarro, e emagreceu mais de 50 quilos. Em 1979, Angela Ro Ro gravou o seu primeiro LP, em que já apareciam sucessos como “Gota de Sangue”, “Tola Foi Você”, “Não Há Cabeça”, “Cheirando a Amor” e “Amor, Meu Grande Amor”, parceria com Ana Terra, que foi seu maior sucesso.
“Você Não Sabe Amar” (samba-canção, 1950) – Dorival Caymmi, Carlos Guinle e Hugo Lima
Em 2017, o jornalista Zuza Homem de Mello lançou “Copacabana: A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958)”, que, em mais de 500 páginas discorre sobre a formação e a influência do gênero no qual se consagraram Maysa, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran, Nora Ney, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Dick Farney e tantos outros. “A própria música ‘Lígia’, do Tom Jobim, é um samba-canção. João Bosco e Aldir Blanc, assim como Abel Silva e Sueli Costa, compuseram vários. Na obra da Angela Ro Ro está cheio de samba-canção, ouso dizer que até na Rita Lee a gente encontra alguns”, enumera. Em 1984, Ro Ro gravou “Você Não Sabe Amar”, samba-canção de Dorival Caymmi, Carlos Guinle, Hugo Lima, lançado por Dick Farney em 1950.
“Fim de Comédia” (samba, 1952) – Ataulfo Alves
O conjunto idealizado por Ataulfo Alves era formado inicialmente por Olga, Marilu e Alda, o trio vocal que recebeu o nome de “Pastoras”, por sugestão de Pedro Caetano, compositor de sucessos carnavalescos. Veio da festa profana a inspiração para o nome, num misto de atribuição religiosa. A denominação era como se chamava o coro feminino que acompanha o cantor principal, também conhecidas como cabrochas, muito presentes nas festas de Natal no Nordeste brasileiro.
E assim, Ataulfo foi feliz em sua escolha tanto quanto a interpretação de outra mulher gloriosa, a passional Dalva de Oliveira, que cantou de sua autoria em 1952, o samba doloroso “Fim de comédia”, lamentando ou celebrando, essa sim, com facadas agudas no peito como sua voz, o triste fim do casamento tortuoso com o compositor Herivelto Martins. Um marco revivido por vozes de firme intensidade, a exemplo de Elizeth Cardoso e Angela Ro Ro: “Este amor quase tragédia, que me fez um grande mal/ Felizmente essa comédia, vai chegando ao seu final”.
“Risque” (samba-canção, 1952) – Ary Barroso
Ary Barroso era árduo partidarista da música brasileira, do samba na sua essência. Recusava candidatos que se atravessem a cantar músicas estrangeiras em seus programas e não hesitava em espinafrá-los publicamente. Em 1952, resolveu criar um samba-canção a despeito de provar que era capaz de compor naquele gênero considerado mais elevado. Para ele, o samba sempre foi a menina dos olhos, e por isso brigou com autoridade para que sua música não fosse gravada em ritmo de bolero. “Risque” foi lançada por Aurora Miranda e virou clássico a partir da gravação de Linda Batista em 1953. O cronista irônico desfiava seu olhar sobre os relacionamentos dramáticos: “Risque, seu nome do meu caderno, já não suporto o inferno, do nosso amor fracassado…”. A música ganhou uma interpretação vigorosa de Angela Ro Ro.
“Demais” (samba-canção, 1959) – Tom Jobim e Aloysio de Oliveira
O encontro entre o paulistano Adoniran Barbosa e o carioquíssimo Vinicius de Moraes rendeu “Bom Dia, Tristeza”, cantada por Maysa, que encarnou como ninguém o espírito da cantora de fossa e deu voz a esses versos lancinantes: “Bom dia, tristeza/ Que tarde, tristeza/ Você veio hoje me ver/ Já estava ficando até meio triste/ De estar tanto tempo longe de você”. A mesma Maysa empregou contornos definitivos a “Demais”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira: “Ninguém sabe é que isso acontece por que/ Vou passar minha vida esquecendo você/ E a razão por que vivo esses dias banais/ É porque ando triste, ando triste demais”. A música foi regravada com competência por Angela Ro Ro.
“Fica Comigo Esta Noite” (samba-canção, 1961) – Adelino Moreira e Nelson Gonçalves
Angela Maria, Núbia Lafayette, Maria Bethânia, Angela Ro Ro, Tetê Espíndola e até o grupo punk Camisa de Vênus gravaram suas canções, mas é impossível dissociar o nome de Adelino Moreira da voz de Nelson Gonçalves. Tanto que o cantor gaúcho ganhou o epíteto de “O Boêmio”, após o estrondoso sucesso de “A Volta do Boêmio”, música de Adelino lançada por Nelson em 1957. Além de intérprete principal de Adelino Moreira, Nelson Gonçalves é seu parceiro em mais de vinte composições. A mais conhecida certamente é “Fica Comigo Esta Noite”, que virou tema de musical e título de filme erótico. Em 1980, Angela Ro Ro sublinhou a sensualidade da canção ao reforçar os tons de bolero contidos em seu ritmo. Outros artistas deram a sua versão para essa história, como Agnaldo Timóteo, Simone, Núbia Lafayette e o cantor Fábio Jr.
“Bárbara” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem notícia a abordar o amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta com Ruy Guerra, para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos morais e preconceitos. Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras. Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem numa tensão que é repetida no discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua/ Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva/ Acumulando de prazeres teu leito de viúva…”, diz a mulher.
“Joana Francesa” (MPB, 1973) – Chico Buarque
Dando um salto temporal na história, Chico Buarque provou a sua exímia habilidade poética com “Joana Francesa”, canção de 1973 feita sob encomenda para o filme de mesmo nome dirigido por Cacá Diegues e protagonizado pela estrela francesa Jeanne Moreau. A trilha ainda conta com interpretações de Fagner e Nara Leão. A narrativa passional da letra entremeia prazer e dor da mesma forma com que amalgama o português ao francês, em versos preciosos. Elis Regina a cantou em disco lançado em 1979, à sua revelia, pela Polygram, após uma saída conturbada da gravadora. Alcione e Angela Ro Ro a regravaram.
“Opus 2” (samba-canção, 1977) – Antônio Carlos e Jocafi
Maria Creuza conheceu Antônio Carlos na Bahia, e com ele estabeleceu casamento que ultrapassou as convicções musicais. Os dois tiveram três filhos e vários sucessos nas rádios do Brasil e do mundo, principalmente depois que migraram para o Rio de Janeiro. O primeiro grande êxito foi “Você Abusou”, que Antônio Carlos compôs com Jocafi em 1971. O canto de Maria Creuza explicitava a beleza da composição que se esvairia de aspirações intelectuais. Ia direto ao coração. Lançada em 1977 pela dupla Antônio Carlos & Jocafi com versos que rebobinavam “Você Abusou”, a música “Opus 2” recebeu uma versão dilacerante de Angela Ro Ro em 1984, no LP “A Vida É Mesmo Assim”.
“Cheirando a Amor” (balada, 1979) – Angela Ro Ro
“Mulato Bamba”, samba de 1931, é a primeira música de relevante importância para a música popular brasileira no que diz respeito à representação do homossexual. Noel Rosa a compôs como forma de homenagem a Madame Satã, famoso capoeirista e malandro homossexual da Lapa. Como já foi dito, a canção é uma homenagem e retrata o homossexual de maneira respeitosa e até com certa admiração. Em 1979, Angela Ro Ro foi a primeira cantora da MPB a declarar-se homossexual, lançando a balada romântica “Cheirando a amor”, de tom confessional gay, num disco de estreia recheado de futuros hits.
“Gota de Sangue” (canção, 1979) – Angela Ro Ro
A interpretação de “Carcará”, em 1965, é um marco na carreira de Maria Bethânia. Contemporânea da irmã de Caetano, Angela Ro Ro sacou a qualidade da intérprete antes mesmo de assistir ao espetáculo “Opinião”, no qual Bethânia cantava a música de João do Vale e José Cândido. A admiração surgiu quando Angela escutou o compacto triplo em que Bethânia cantava apenas o repertório de Noel Rosa. Anos depois, em 1979, foi a vez de a admiradora ser gravada por seu ídolo, quando Bethânia deu voz a “Gota de Sangue”, no álbum “Mel”, que vendeu mais de 1 milhão de cópias. “A Bethânia gravou comigo no estúdio, participei dessa faixa tocando piano”, conta Angela.
“Tola Foi Você” (samba-canção, 1979) – Angela Ro Ro
“Quando vi aquela imensidão de gente, fiquei muito nervosa, era eu e um pianinho acústico, e eu errava o pedal, me atrapalhava. Então, comecei a levar um som e explicar a história das músicas”, relembra Angela Ro Ro, sobre seus primeiros shows. A reação da plateia foi novamente inesperada. “Falava das minhas tristezas, eram músicas feitas com 20 anos, e nessa época você exagera no sofrimento que vai vir depois. Só que as pessoas gargalhavam, a minha vida escancarada e todo mundo morrendo de rir”, recorda-se, com bom humor. Entre elas estava “Tola Foi Você”, um samba-canção gravado em 1979.
“Não Há Cabeça” (balada, 1979) – Angela Ro Ro
O fato de ter sido uma das pioneiras a adentrar o terreno prioritariamente masculino da composição musical é visto por Marina Lima com tranquilidade. “Na verdade, não me lembrava disso quando surgi, depois foi que me atentaram”. No LP de estreia, Marina gravou Dolores Duran, em polêmica versão funk do clássico “Solidão”, e Angela Ro Ro, ao colocar voz em “Não Há Cabeça”. “Gravei Dolores por sugestão do André Midani, um homem muito inteligente, que era o presidente da gravadora Warner, e a Ro Ro foi porque me apaixonei por aquela música”. E não se faz de rogada quanto à importância da intervenção: “Hoje há ótimas compositoras, abrimos caminhos”. Como diz o verso da música de Ro Ro: “Que bom que nunca vai haver talvez/ Pra quem tudo na vida/ Amou, disse e fez”. As duas interpretaram a balada em um dueto.
“Amor, Meu Grande Amor” (balada, 1979) – Angela Ro Ro e Ana Terra
“Essa música tem 40 anos de sucesso, é impressionante. Sempre falo para a Ana (Terra) que a culpa é dela; ela ri e diz que é minha. Já até tocaram ela sem letra, no Faustão, para os convidados adivinharem, e com menos de dois segundos todo mundo bateu a campainha porque já sabia qual era a música”, confirma Angela Ro Ro, em referência a “Amor, Meu Grande Amor”. Por sinal, a cantora pôde sentir essa perenidade na própria pele quando, em 2018, estreou o show “Pilotando o Piano”, basicamente dedicado ao seu primeiro LP.
“Agito e Uso” (rock, 1979) – Angela Ro Ro
Angela Ro Ro sempre conciliou o teor confessional a um distanciamento propício ao deboche em suas composições, sem nunca abrir mão da veia autobiográfica. Polêmica, perspicaz, piadista e homossexual assumida, foi uma das compositoras que melhor representaram a estética do blues no Brasil, e por isso se tornou admirada por artistas como Cássia Eller e Cazuza. Logo em seu disco de estreia, em 1979, Angela desafiava padrões, convenções e até a polícia. É o que fica explícito no rock “Agito e Uso”, de 1979, em que ela manda as regrinhas do bom comportamento para as cucuias, como a mulher corajosa que sempre foi. “Sou uma moça sem recato”, elabora nos versos iniciais.
“Mares da Espanha” (samba-canção, 1979) – Angela Ro Ro
“A música não me pertence, eu que pertenço a ela. Não sou de ficar elaborando, o meu processo é visceral”, define Angela Ro Ro, que coloca na conta da identificação a força das canções. “É uma coisa meio absurda, porque as pessoas morrem de rir quando eu conto que fui traída por uma namorada, e então elas entendem que aqueles versos são literais, foram vividos, e isso mexe com a cabeça delas”, completa a entrevistada. Um bom exemplo é a dilacerante composição “Mares da Espanha”, também lançada no ano de 1979.
“Balada da Arrasada” (balada, 1979) – Angela Ro Ro
Definida por Antônio Carlos Miguel como “herdeira de Maysa e tutora de Cazuza”, para ele a cantora deixou sua marca no cancioneiro nacional ao “fazer uma fusão orgânica do blues e da música pop com a brasileira”. “Ela adorava Janis Joplin, Billie Holliday e antecipou o que o Cazuza ia fazer em termos de poética, com aquela dor de cotovelo rascante e rasgada”, avalia o crítico, que aproveita para lembrar um episódio curioso. “Na década de 80 tentaram fazer um filme com a Ro Ro interpretando a Maysa, porém a família da homenageada não autorizou”, revela. “Os paralelos são sempre reducionistas, mas bote uma Maysa ainda mais doidona e você vai ter a Ro Ro”, afirma Carlos Miguel. “Balada da Arrasada” vai bem nessa linha descrita.
“Preciso Tanto!!!” (blues, 1980) – Angela Ro Ro
Especialista em unir a lamentação amorosa ao deboche desinibido, Angela Ro Ro sempre se destacou entre as compositoras nacionais, sobretudo, pela postura aguerrida, caracterizada por um senso de humor inteligente. Em 1980, no álbum “Só Nos Resta Viver”, Ro Ro distribuiu mais algumas dessas pérolas, dentre elas “Preciso Tanto!!!”, com todas as exclamações a que tinha direito, em que, sem ser totalmente explícita, convida a companheira ao sexo, certa de lhe tirar os bodes da cabeça com promessas do tipo: “Eu faço gostoso e com jeito, pra você não botar defeito, no meu amar…”. A música foi interpretada num dueto descontraído por Cazuza e Angela Ro Ro, no Morro da Urca, em 1989. Já debilitado pela Aids, Cazuza invadiu o show de Ro Ro e soltou a voz com gana.
“Tango da Bronquite” (tango, 1980) – Angela Ro Ro
“Pessoalmente, eu só berraria os blues do Cazuza pedindo ajuda aos céus nesta homenagem, porque sou completamente ateia”, declara Angela Ro Ro, em referência à letra inédita que ele deixou com a amiga, “Ajudai Senhor”. “Cobaias de Deus”, a outra parceria com o amigo que morreu vitimado pela Aids, e de temática parecida, ganhou a voz de Angela em 1993, no disco “Nosso Amor ao Armagedon”. Mas olhar para o passado não é com ela, ao menos à primeira vista. “Pula pra frente, já foi o tempo do ‘Tango da Bronquite’”, provoca, em alusão à faixa do seu segundo disco, paródia ao sucesso “Fumando Espero”, de Carlos Gardel. Já o tango de Angela é de 1981.
“Escândalo” (balada, 1981) – Caetano Veloso
As manchetes de jornal estampavam, em letras garrafais, a palavra “Escândalo”, com uma fotografia de Angela Ro Ro embaixo. O mesmo título e imagem seriam utilizados no terceiro LP da cantora, lançado em 1981, com música de Caetano Veloso inspirada pelo episódio. Na ocasião, Angela era acusada de agredir a ex-namorada, a também cantora Zizi Possi, fato que sempre negou. Primeira artista de prestígio da música brasileira a assumir publicamente a homossexualidade, ela colocaria na conta do preconceito e do ressentimento da antiga amante toda a polêmica. Na versão de Angela, Zizi resolvera se vingar com mentiras e armações depois de ser traída conjugalmente. Ro Ro ainda aprontaria bem mais.
“Fraca e Abusada” (samba, 1981) – Angela Ro Ro
Desde que o samba é samba e a música brasileira se entende por si, desavenças entre seus integrantes renderam hits e até incidentes mais graves, com direito a ações na Justiça e agressões físicas. Angela Ro Ro e Zizi Possi formavam um casal até que o relacionamento terminou de maneira controversa. Zizi nunca se pronunciou sobre o assunto, enquanto Ro Ro afirmou em entrevistas que, por ciúmes, a ex-companheira armou uma cilada e chamou a polícia para ela. “Fraca e Abusada” foi composta por Ro Ro para alfinetar Zizi e lançada em 1981, ao ritmo de um irresistível e irônico samba.
“Vou Lá no Fundo” (foxtrote, 1981) – Naïla Skorpio e Sonia Burnier
Avessa a fotografias e sucinta em suas respostas, Naïla Skorpio é autora de canções propagadas pelo canto poderoso e grave de Angela Ro Ro, Maria Bethânia (“Vinho”) e Cazuza. Letrista de “Vou Lá No Fundo”, gravada por Angela Ro Ro no álbum “Escândalo!”, de 1981, Naïla enumera suas referências sem perder a verve iconoclasta. “João Gilberto, Billie Holiday, Ray Charles, Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Godard, Michael Jackson, Isadora Duncan”. Para quem começou a tocar bateria aos 6 anos, não há dúvidas. “Superar crise, só se for com a arte do ilusionismo”.
“Simples Carinho” (samba-canção, 1982) – João Donato e Abel Silva
Intérprete do sucesso “Simples Carinho” (parceria de João Donato e Abel Silva), Angela Ro Ro conta, aos risos, em seu documentário “Eu Sou Insana?”, que certa feita teve de “fugir de um João Donato excitado”. “Essa história é só brincadeira dela, Ro Ro é impossível”, garante o pai de Donatinho. A música foi lançada em 1982, no disco de mesmo nome, em que a cantora aparecia na colorida capa com um papagaio na mão e os cabelos e o corpo molhado pela água onde ela está imersa. “Simples Carinho” tornou-se um dos maiores sucessos da carreira de Angela Ro Ro e parte indispensável de seu repertório.
“Fogueira” (balada, 1983) – Angela Ro Ro
Angela Ro Ro conta que “chorava copiosamente”. “Chorei três vezes, molhei a letra toda, de tão emocionada”, recorda. Por falta de um piano no dia em que “Fogueira” passou por sua cabeça, a cantora agarrou “um violão velho e, com um pedaço de papel e caneta”, começou a compor a balada, que seria lançada por Maria Bethânia em 1983. Os doloridos versos “Por que queimar minha fogueira?/ E destruir a companheira/ Por que sangrar o meu amor assim?”, logo se eternizaram. Curiosamente, a música é, ao lado de “Cobaias de Deus” (parceria com Cazuza), uma exceção na carreira da artista, habituada a criar sempre ao piano. Aos 5 anos, ela ganhou um teclado, em que exercitava as escalas. Com 6 anos, passou para o acordeom, já estreando sua veia criativa.
“Hot Dog” (rock, 1984) – Leiber e Stoller em versão de Leo Jaime
“Hot Dog” foi um rock consagrado pelo rei do estilo, Elvis Presley, em solo americano. No Brasil, o irreverente Léo Jaime criou a sua própria versão da letra para a música da dupla Leiber e Stoller. E a interpretação de Angela Ro Ro no álbum “A Vida É Mesmo Assim”, de 1984, não deixou barato. Regravada por Cazuza e Léo Jaime em 1988, com a participação especial do cachorro de estimação do primeiro, conhecido como Wanderley, homenagem ao cantor da Jovem Guarda, de sobrenome Cardoso, a música utiliza o cenário de um amor desfeito para demonstrar o poder de vingança desse tal dinheiro. “Eu não te pago nem um hot-dog”, esnoba e ameaça o protagonista.
“Cobaias de Deus” (blues, 1989) – Angela Ro Ro e Cazuza
Cazuza era fã de Angela Ro Ro desde que se entendia por gente, e via nela uma referência comportamental e musical de rebeldia e transgressão. Para a musa, ele compôs, com Frejat, “Malandragem”, mas Ro Ro não negou a fama de impulsiva e renegou a canção, mais tarde gravada com enorme sucesso por Cássia Eller. Sem se dar por satisfeito, Cazuza propôs a Ro Ro uma parceria. Juntos, eles compuseram o lancinante blues “Cobaias de Deus”, que não fazia concessões às esperanças humanas. Inspirada no martírio que Cazuza enfrentava em decorrência da AIDS, ganhou interpretação pungente de Ro Ro.
“Malandragem” (rock, 1994) – Cazuza e Roberto Frejat
A música “Malandragem” foi finalizada por Roberto Frejat e Cazuza em 1989, composta especialmente para Angela Ro Ro, um desejo íntimo do poeta exagerado, fã da cantora. Angela, porém, declinou do convite, ao não se identificar com os versos “quem sabe eu ainda sou uma garotinha”, nas portas de completar 40 anos e em meio à crise de envelhecimento. Em 1994, quatro anos após a morte de Cazuza, esse rock veio à luz na voz marcante de Cássia Eller, outra discípula do próprio autor e da cantora Ro Ro. A melodia de Frejat emoldura versos de rebeldia e transgressão, que refletem, nada mais, do que um grito de liberdade e desprendimento tão comuns à infância, e como a manutenção desta ingenuidade pode estar ligada a estas qualidades. “Eu só peço a Deus, um pouco de malandragem, pois sou criança, e não conheço a verdade…”. É, por fim, uma ode à irresponsabilidade e à delícia da brincadeira.
“Canção V” (MPB, 2005) – Hilda Hilst e Zeca Baleiro
Fã declarado da escritora Hilda Hilst (1930 – 2004), Zeca Baleiro provou sua idolatria ao produzir disco baseado no livro “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão”, lançado por ela em 1974. Como a inspiração da obra literária era o amor impossível do mito grego de Ariana e Dionísio, a menção aparece como epígrafe no título do álbum, que reúne poemas de Hilda musicados por Baleiro nas vozes de Angela Maria, Angela Ro Ro, Maria Bethânia, Zélia Duncan, entre outras. Em “Ode Descontínua e Remota para Flauta e Oboé”, coube a Angela Ro Ro emprestar voz à “Canção V” e se envolver pela refinada poesia de Hilda.
“Compasso” (balada, 2006) – Angela Ro Ro e Ricardo Mac Cord
Criado pelo educador Paulo Freire (1921-1997) na década de 70, o termo “empoderamento” voltou à baila nos anos 2000. De acordo com uma pesquisa do Google, o primeiro pico de buscas pela palavra aconteceu em junho de 2013, durante protestos que marcaram o Brasil. Em 2016, “empoderamento” ficou em primeiro lugar na lista das palavras mais procuradas. Na música brasileira, o empoderamento feminino não é novidade. Antes da expressão alcançar a fama atual, Rita Lee, Angela Ro Ro, Vanusa, Dona Ivone Lara e outras esbanjavam atitude e coragem. Em 2015, Zeca Baleiro uniu Ro Ro e Vanusa ao produzir o disco “Vanusa Santos Flores”, em que Vanusa regravava “Compasso”, música lançada por Ro Ro em 2006, feita com Ricardo Mac Cord.
“Beijos na Boca” (balada-blues, 2013) – Angela Ro Ro
“Feliz da Vida” dá nome ao disco que contém 13 canções inéditas de Angela Ro Ro, das 15 do repertório, e conta com a participação de Sandra de Sá (em “Beijos na Boca”), Jorge Vercilo (“Capital do Amor”), Diogo Nogueira (“Salve Jorge”), Ana Carolina (“Canto Livre”), Paulinho Moska (na canção título) e Roberto Frejat revisando os sucessos “Amor, Meu Grande Amor” e “Malandragem”. Sobre os convidados, Ro Ro é só elogios: “Sandra de Sá é um barato! Uma festa! A música é cheia de suingue!”. Angela Ro Ro e Sandra de Sá foram boas amigas de Cazuza durante a década de 1980, nos bares do Rio.
“Selvagem” (blues, 2017) – Angela Ro Ro
Quando Angela Ro Ro acerta, não há quem possa. Embora distante do brilhantismo de seus clássicos, como as doídas “Gota de Sangue” e “Fogueira”, a dilacerante “Mares da Espanha” ou a irresistível “Balada da Arrasada”, a faixa-título “Selvagem”, que abre os trabalhos do disco de inéditas lançado por ela em 2017, entra com calor no ponto nevrálgico de sua trajetória. “Sou livre e não adianta/ tentar me cortar a garganta/ selvagem, me sobra coragem/ pra traçar minha própria viagem”, entoa com a voz grave, propícia para esse blues rasgado que ganha pitadas de rock.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.