*por Raphael Vidigal
“O mistério do destino humano é que somos fatais, mas temos a liberdade de cumprir ou não o nosso fatal: de nós depende realizarmos o nosso destino fatal.” Clarice Lispector
Um acidente de avião matou, no auge do sucesso e no esplendor da beleza, a atriz Leila Diniz, que, no dia 14 de junho de 1972, perdeu a vida aos 27 anos. Leila voltava da Índia para o Brasil, após divulgar o seu novo filme na Austrália. Entre os tripulantes estava o cantor Agostinho dos Santos, que também morreu. Antes de viajar, Leila deixara com o ex-marido, o cineasta Ruy Guerra, a filha do casal, Janaína, com menos de dois anos de idade. A tragédia comoveu o Brasil, não apenas por seus contornos explícitos, mas pelo que Leila representava. Desbocada, irreverente e, acima de tudo, libertária, ela foi a primeira a posar de biquíni e com seu barrigão de grávida nas praias cariocas.
A imagem confrontava o ideal de maternidade pintado pelos conservadores. Era uma mãe plena em sua sexualidade. Leila se guiava pelo desejo, essa palavra sinônimo de pecado. “Você pode amar muito uma pessoa e ir para a cama com outra”, declarou ela numa explosiva entrevista ao “Pasquim”, em 1969, que resultou, meses depois, no que ficou ironicamente conhecido como “Decreto Leila Diniz”, quando a ditadura instituiu a censura prévia. Leila não se curvava às convenções, e agia como feminista sem utilizar o termo. Não era a primeira vez que o Brasil perdia uma estrela dramaticamente. Em 1966, um acidente de carro matou a cantora Sylvinha Telles, aos 32 anos, musa da bossa nova, artífice da modernidade e sofisticação que o movimento propunha.
A filha, Cláudia Telles, futura intérprete, ainda não tinha dez anos de idade. De alguma maneira, a morte de Marília Mendonça traz à tona essas lembranças. Há diferenças e similaridades, como em qualquer história – que é única. Jovem, mãe, morta num acidente no auge do sucesso e no esplendor da beleza, Marília também confrontou, a seu modo, pensamentos vigentes e valores extremamente arraigados, sob a perspectiva de uma mulher dona de suas vontades – o que deveria ser o mínimo em sociedades igualitárias. Em 2018, por exemplo, aderiu ao movimento “Ele Não” e posicionou-se contra a eleição de Jair Bolsonaro. Foi covardemente atacada, inclusive por aqueles que idolatravam sua música, como se, nesse caso, houvesse distinção possível entre o discurso falado e o discurso cantado da artista. Não era possível alguém partidário das causas das mulheres se associar a um sujeito misógino.
Inserida em um meio que galgou posições cada vez mais lucrativas na indústria do entretenimento – o chamado “sertanejo universitário” – Marília foi uma das raras compositoras com reconhecido destaque entre seus pares, o que, na música brasileira, sempre representou uma árdua luta que reproduz nosso machismo estrutural. Pioneiras, Dolores Duran, Maysa e Dona Ivone Lara muitas vezes se colocaram a partir da perspectiva masculina. As desbravadoras Rita Lee, Fátima Guedes, Joyce, Angela Ro Ro, Ana Terra, Marina Lima, dentre outras, deram esse salto adiante, que culminou em presenças como as de Adriana Calcanhotto, Karina Buhr, Ana Cañas, Zélia Duncan, etc. etc. Sem mencionar a maestrina Chiquinha Gonzaga, um brasão.
Marília reafirma esse discurso autônomo para um país amplo. Como bem apontou Caetano Veloso, ao se apoiar nas questões comezinhas das atribulações sofridas dos relacionamentos, o que remonta ao nosso samba-canção pré-bossa nova, a artista inseria elementos concernentes ao seu próprio tempo, em uma atualização intuitivamente espontânea. O resultado era a identificação por camadas de todos os matizes da sociedade brasileira, com uma característica que as unia no quesito popularidade. Marília falou para muita gente: porque a linguagem era simples, porque os temas eram comuns, porque tinha o suporte de uma indústria poderosa, interessada nesse tipo de difusão, e porque, de certo modo, ela trazia junto a originalidade e a novidade, ainda que os arranjos caminhassem na direção dessa uniformidade industrial.
Com seu estilo de pronunciar as palavras e enunciar os casos, a mulher sofrida das canções de Marília se posicionava de outro modo. A culpa já não pertencia à fêmea, uma verdade que, desde a maçã de Eva, nos parecia incontornável.
Foto: Redes sociais/Divulgação.