A voz que clama

*por Raphael Vidigal Aroeira

“A perda é um dado antropológico universal: desde o nascimento, irremediavelmente e sem esperança de domesticá-la, todo ser humano faz dela sua companhia obrigatória, abandonando sucessivamente a juventude, a saúde, os amigos, os pais, os amores, as ilusões e ambições, antes de perder-se a si próprio” Joël Candau

Tenho o que tenho, mas tenho, principalmente, o que perdi. O vestido preto é, agora, a minha única morada. Carrego no pulso um anacrônico relógio de ponteiros, muito antigo. Mas não está ali. Onde ficou esse pulso? Parado no tempo, congelado pela doença? Ou terá sido cortado, interrompido pela ação de uma lâmina fria? Cuidadosamente deixada, e pressionada, contra as veias azuladas, que latejavam como se fossem as ramificações de um rio? O tempo continua quando a morte se apossa do que era vivo? E esse pulso, onde fica? Pulso que não pulsa é só uma barriga vazia. Sem fome, vesícula, baço, estômago, intestino, fígado. Olho pra frente como quem enxerga algo que está além, e não a objetiva “realidade” de uma fotografia. Sou praticamente uma ausência. Dentro do abandono de um mundo carente de sentido, tão impessoal quanto uma pessoa morta para aqueles que a colocam na cova. O mundo parece assim tão assustador desde quando nascemos? Ou vai, aos poucos, revelando a sua “realidade”, tirando lentamente as camadas de desejo que nos fazem acreditar que haverá alguma clemência? Numa espécie de strip-tease que, naquilo que nos promete de erótico, revela de masoquismo? Como se o gesto sexual voltasse a ser tão primitivo que só mostrasse o ridículo? O céu parece inchado, prestes a se abrir. É preciso coragem para admitir que estamos largados nesse mundo sem clemência. Embora importe, isto não modifica nada. Passam as horas neste lugar inconsolável. Os dedos doem. Testículos inchados prendendo a explosão da euforia latente, lactante o seio das grávidas. Por saber que o durar será de um segundo, e o sofrimento, e o cansaço, e a procura, e o destino, e a sombra neste sol áspero, eternos. Por saber que o alívio existe não crer em redenção. Definho-me debaixo deste costumeiro sol ou voo em direção às chuvosas nuvens e negras? O velho é a certeza de dias piores à espreita, sóis. O novo é a insegurança, caule à mesa. Promessas de vida? Ou de morte, apenas. Eu falei que não te procurava. Estou de frente para um touro que dorme. Um touro que dorme, por estar espalhado, é ainda mais gigantesco e monstruoso. Uma couraça preta, chifres duros. E o constante e quente bafo que sai por suas narinas. A expectativa tonitruante de que ele acorde a qualquer momento e me despedace. Durante a nossa vida iremos conspirar contra o governo. E ter sonhos de que um dia venceremos. Durante a nossa vida vamos avistar a mulher amada. E acreditar até o fim que ela é perfeita. Durante a nossa vida, mais que tudo perderemos nossos ganhos. Uns amigos, pais e mães, e as namoradas. Durante a nossa vida talvez o tempo nos escape sem alarde. Já que as máquinas abafam o som dos pássaros. Durante a nossa vida nenhum dia terá fim e nem começo. Será tudo a espera doce e triste do milagre. Eu nunca desisto, apenas sou salva. Salva do cansaço, do desespero. Da solidão. Salva de tudo o que sou, quando baixo a guarda, desço a vigília e me entrego a esse enorme e monstruoso touro que dorme. Quem dera o homem pudesse viver como o animal. Matar sem nenhum pecado, morrer sem nenhuma prece. Comer na hora da fome, dormir na hora do sono. Ser súdito da vontade, só conversar o essencial. Morrer sem nenhum pecado, matar sem nenhuma prece. E se o nosso desaparecimento for algo insuportável, e não esse descanso que nos prometem? Vocês estão vendo que eu estou cada vez mais parecida com ela? Ela, que deveria envelhecer e ficar parecida comigo. Tão jovem, tão moça, tão fresca. Sem sofrimentos causados na pele. E na alma. Alguém? Alguém me acode? Alguém acode alguém que perdeu o que foi? Eu era mãe. E agora, o que sou? O que eu sou? Quando tudo desaparecer ainda restará a palavra socorro…

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]