‘A Noite do Triunfo’ mostra história de presos que fizeram sucesso no teatro

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Nada tenho para dizer, mas somente eu sei como dizer isto.” Samuel Beckett

A ideia é inusitada: juntar um bando heterogêneo de detentos para montar uma das peças mais controversas da história do teatro. Isso é o que propõe o diretor teatral do filme “A Noite do Triunfo”, baseado em uma história real. Claro que a empreitada sofre adaptações na tela, a começar pela geografia. Ela passa da Suécia original dos anos 1980 para a França de hoje, o que agrega elementos bastante interessantes à trama, por exemplo a presença de árabes e africanos, e o fato de que Samuel Beckett (1906-1989), o autor de “Esperando Godot”, já está morto há mais de 30 anos, ao contrário de quando tais fatos aconteceram.

Para dar vida a essa aventura, o diretor teatral Etienne, vivido com galhardia por Kad Merad, terá inúmeros desafios, a começar pelos próprios presos, passando pela diretora do presídio e uma severa juíza. É preciso convencer a todos de que a ideia é factível. Etienne tem uma certeza inabalável de seu propósito. Ator experiente, ele está há três anos sem pisar no palco, e não esconde os ressentimentos e frustrações dessa situação que o levou a um trabalho, à primeira vista, pouco atrativo, do qual ele consegue tirar uma motivação para sua vida, tão estagnada quanto a própria carreira. Divorciado, ele também sofre com o desprezo da filha. E a necessidade de atenção é clara.

Após algumas oficinas e montagens de fábulas que trazem a velha moral da história, Etienne percebe que “Esperando Godot” é a peça perfeita para aquelas pessoas que passam a vida esperando. Confinados em celas individuais, só resta a eles o passar das horas e a estranha constatação de que, mesmo nesse cenário, a esperança se impõe. Se ela se realizará é outra questão. Sabemos que Beckett está bem longe de ser um otimista, muito ao contrário, mas é a travessia que interessa. A esperança não se realiza, ela é, justamente, uma iminência, uma expectativa, o momento anterior ao desfecho.

Durante o processo, haverá conflitos. Etienne não está lidando com atores profissionais, e por isso procura uma essência e uma verdade que talvez já esteja perdida para ele e seus pares. Os detentos preferem montar um stand-up, se consideram engraçados. Todos terão que abandonar o medo do ridículo. A trupe está formada, e Etienne é o chefe, mas não é tarefa simples dar ordens a sujeitos que cometeram os mais variados delitos. Aos poucos, cada um revela a sua própria personalidade. Esse movimento é filmado com fluidez por Emmanuel Courcol, diretor do longa-metragem. Os personagens são cativantes. Temos o marrento Kamel, o atabalhoado Jordan, o apaixonado Patrick, o sensível Moussa e o infantil Alex. A eles se junta Bojko, um siberiano soturno, de poucas palavras, forte presença, que encarnará o mistério da peça.

Para preencher as quase duas horas de projeção, haverá situações de desentendimentos entre os atores-detentos e com Etienne, momentos de tensão aqui e acolá, respiros cômicos, e etc., tudo de forma leve, harmônica, mas que, de fato, não acrescenta lá muita coisa ao enredo. O essencial está na relação de Etienne com os presos, que o servem quase como espelho. Desde o princípio, ele se esforça por apagar as barreiras entre eles, e o que os une é essa maneira temperamental de lidar com a vida. São excessivos, destemperados, cometem erros. Enfim, entre a romantização e o moralismo, o roteiro pende mais para a primeira alternativa, mas não se entrega totalmente a ela. A bondade convive com o mal. Todos têm momentos de irracionalidade, violência e infantilização. A barbárie é humana. E a solidão, aqui, é ainda mais. Como adianta o título, em “A Noite do Triunfo” haverá consagração. Mas não somente. Pois, como se presume, para Beckett, já nascemos todos derrotados.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]