*por Raphael Vidigal Aroeira
“Curiosidade da criança é nascente de água, parar é parar vento com a mão.” Boaventura Cardoso
É pena que, no sistema capitalista, tenhamos reduzido o sentido de herança à mera questão monetária. Não é disso que trata o conto “Pai Zé Canoa Miúdo no Mar”, publicado no livro O Fogo da Fala, de Boaventura Cardoso, que saiu pela União dos Escritores Angolanos, em 1980. Como prenuncia o título da coletânea, a narrativa se inicia com a famosa oralidade que, logo de cara, pega o leitor pela gola, obrigando-o a se aproximar da história a partir deste despojamento cuidadosamente erigido pelo autor, como peças que se encaixam num sistema novo, em que o ritmo comanda o todo.
“Canoa, parar nos pés ainda não está e já miúdo avançar mar dentro. No olhar, mais-velho tem receio no primeiro, no despois habituação e vê rindo neto é peixe no mar”, desta maneira o narrador nos apresenta à trama. A escolha da palavra “canoa” para disparar a narrativa já nos informa de seu papel preponderante, tanto quanto o avô e o neto que vêm logo em seguida, constituindo um núcleo uno e, ao mesmo tempo, tríplice, em que a perspectiva temporal é igualmente nuançada, conformando passado, presente e futuro num ciclo, em detrimento de uma concepção linear.
Afinal, no decorrer da história, habituados às linearidades cronológicas, iremos nos questionar se o que foi nos apresentado primeiro de fato ocupava esse lugar no espaço da história, ou se teria ocorrido lá na frente e trazido, pelo engenho do artista, para descerrar-nos olhos e cortinas. Certo é que, ainda nessa primeira página, são traçados aspectos que nos definem o avô como um ser indissociável de sua canoa, objeto de trabalho com quem mantém uma íntima relação de cumplicidade, tal qual com a natureza que o circunda.
“Cada manhã é assim. Velho vem vindo ximbicando musculosamente petu grande nas águas cada cadavez menos irrequietas sem longe da praia. Figura do pescador e da canoa é mais vista e movimento ritimado dele de se baixar e se levantar; cantiga no meio, também. Marulhar das ondas é vento quem põe nos ouvidos”, escreve, poeticamente, Boaventura Cardoso, que não deixa passar despercebido o fundamento do ritmo nesse labor da personagem, tanto quanto na fluidez da fala que o escritor carrega e retém no papel.
Outro detalhe é que o avô é referido como Pai Zé e também pescador. Ou seja, deparamo-nos com uma personalidade novamente tríplice, embora se unifique e impeça a fragmentação contemporânea na relação com as águas, no movimento do tempo, no apego e reconhecimento de origens que elaboram a sua essência. É esse conhecimento da experiência, apreendido através de gerações, que ele irá transmitir ao neto. É, pois, desta herança de que trata o conto de Boaventura Cardoso.
Com uma série de expressões típicas de dialetos nativos de África, especificamente de Angola, o narrador descreve momentos breves da rotina de Pai Zé com o neto, como a disputa das quitandeiras pelos “peixes ainda traquinos” que eles acabaram de apanhar no mar. Acontece que conhecer o mar, local de profundezas e curiosidades, é justamente o sonho do neto, que liberta a imaginação diante da simples possibilidade de que a promessa do avô se cumpra, sem, no entanto, conter a própria desconfiança de que seu desejo mais ardoroso alcance a realidade.
“No coração do neto está falar é mentira e por isso outravez: ‘Amanhã me levas?’. Mais-velho repete sim. Miúdo berrida notícia nos avilos. Cada noite, Pai Zé saindo kamene-mene madrugada fora, pés arrastando areal, neto lhe espreitava tapando tosse”, confirma o narrador, revelando-nos a excitação e ansiedade do garoto. Então dá-se a discussão na aldeia que coloca em lados opostos Velho Gonçalo, cuja palavra é respeitada pelo conhecimento adquirido com o tempo, e o próprio Pai Zé, que, embora mantenha consideração pelo outro, insiste mediante a finitude da vida. “– Mona precisa ir no mar. Amanhã vamos morrer e depois é quem é que vai andar no mar?”, questiona o avô em defesa da vontade do neto.
O embate de gerações se explicita: “Velho Gonçalo a se impor e os mais novos a discordarem: mona precisa aprender no mar”. Essa leve fissura, todavia, não será suficiente para esgarçar os laços que unem e compõem aquela comunidade. Contrariado, Velho Gonçalo cede e encontra um meio-termo, em que o neto de Pai Zé precisa realizar um ritual antes de enfrentar as bravuras do mar. Nos instantes que precedem a aventura, o neto fantasia. “Sono dele é canoa navegando já”, poetiza Boaventura Cardoso.
A dupla se apronta e começa a travessia. O silêncio coeso do avô é contraposto à agitação das infinitas perguntas do neto. “– Pai Zé, lá no fundo do mar tem fundo? (…) – Sim, no fundo do mar é fundo. No coração do outro é longe. No fundo do mar também é longe. Você não pode saber no coração do outro está falar quê, tem lá quê. Se pessoa cai no fundo do mar, para voltar, nunca mais”, explica o experiente pescador, que insere a imagem edílica da sereia kianda, protetora dos mares, como forma de sustentar o mistério da existência, da vida, da morte e da relação com o outro.
A pureza das indagações do neto leva o avô a revisitar lembranças doloridas, com as quais ele tem dificuldade de conviver. “Pai Zé caté hoje não gosta se avistar com a mutudi mulher do falecido”, observa o narrador, que chama atenção para a emoção incontida do pescador, neste momento em que a memória toma todo o presente. A memória que puxa o fio da realidade os conduz, no movimento das águas, para a lenda em que a kianda se confronta com o tubarão, opondo bem e mal.
Mas a história não encerra todas as dúvidas. “Curiosidade da criança é nascente de água, parar é parar vento com a mão. Vida no mar ele quer saber toda. Pai Zé responde sempre, paciência é dele”, ficamos sabendo. Porém, há um aparente finito neste “sempre”. O avô se cala, o neto pensa que ele não está a ouvir, por conta do barulho das águas, até que “lhe pega no coração, sem batente”. O desespero tem gritos e um “choro solitário no mar sem ninguém”. Ante o corpo do avô feito “estátua”, o movimento se impõe. Mesmo vacilante, o neto descobre que Pai Zé já lhe ensinou o que precisava, transmitindo a sua herança, que descende de gerações ancestrais.
Referência
CARDOSO, Boaventura. Mona Kasulé é ngamba. In: CARDOSO, Boaventura. O fogo da fala. Angola: União dos Escritores Angolanos, 1980. p. 67-77.