A elaboração do horror através do lirismo em “Naquela Noite”, de Skylab

*por Raphael Vidigal Aroeira

“A minha vida é essa história
Por mais que eu pinte é sempre escura
Pro que eu pergunto não há resposta” Rogério Skylab

Lancinante, um caco de vidro se enterra no umbigo da vítima, que tem os mamilos retorcidos com alicate, enquanto seus fios de cabelo são puxados e arrancados, fio por fio, acompanhados pelo escorrer das lágrimas. Ao reconstituir o ambiente de uma tortura na canção “Naquela Noite”, lançada em seu primeiro disco, “Fora da Grei”, de 1992, o músico e poeta Rogério Skylab opta por uma melodia suave, delicada, que, associada à letra, embebe em lirismo o horror.

Há algo específico na composição que, logo de cara, soa essencialmente atraente, e, paradoxalmente, repulsivo, nesse movimento ambíguo que determina toda a estrutura narrativa. É justamente o fato de o narrador assumir o papel do eu lírico que impõe a tortura. Ou seja, ao contrário de obras que denunciam o horror, aqui o compositor o toma para si e o assume, liricamente.

Eis um artifício complexo porque, de acordo com Silviano Santiago, “a narrativa é narrativa porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois retirá-la dele”. E, mais adiante, recorre a Flaubert. “No meio, fica o narrador do romance, que se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa como Flaubert o fez de maneira paradigmática: ‘Madame Bovary, c’est moi’”. Logo, a conclusão é que o narrador do romance utiliza um disfarce. Embora, no nosso caso, trate-se de uma canção popular, a perspectiva do romance nos atende pela forma como Skylab constrói a sua narrativa, tanto na junção de melodia e letra quanto na criação das personagens e na ambientação do cenário. Além de vítima e carrasco, comparecem elementos de forte teor simbólico, como um passarinho que “batia as asas”, um violino que toca valsa, vaga-lumes, arvoredos com cor de prata, e a insistente Lua cheia, que, em sua repetição, ilumina uma cena soturna, nebulosa, tensa.

Para Adorno, “o romance precisaria se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato”. E, daqui para frente, utilizaremos a concepção de romance para abordar a canção popular de Skylab, como se esta fosse um disfarce da outra. A canção narra, e, ao narrar, romanceia uma realidade da qual não é possível dar conta. Afinal, como narrar o horror, como elaborá-lo, senão liricamente? Tal questão se impõe. Na trama skylabiana, o narrador nos coloca em contato com uma mulher que passou pelo inconcebível, e pela perspectiva de quem pratica, naquele instante, o ato terrífico. A essa condição do gesto contrapõe-se a escolha meticulosa de palavras – matéria-prima de quem narra – que se guiam, primordialmente, pela potência estética, realizando o que, para Edmund Burke, tratava-se de tarefa ingrata: “as ideias do sublime e do belo fundam-se sobre bases tão diferentes que é difícil, diria mesmo quase impossível, pensar em conciliá-las em um único objeto”, diagnostica o teórico irlandês em “Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo”, de 1757. Tal tratado estabelece bases sólidas sobre o tema, ao contrário da arte. “O nítido ou o esfumado, o fiel ou o distorcido da imagem devem-se menos aos anos passados que à força e à qualidade dos afetos que secundaram o momento da sua fixação. A imagem amada, a temida, tende a perpetuar-se: vira ídolo ou tabu. E a sua forma nos ronda como doce ou pungente obsessão”, analisa Alfredo Bosi num dos ensaios do livro “O Ser e o Tempo da Poesia”.

A beleza que advém do horror é a grande marca da canção de Skylab. A união desses dois opostos, ou seja, poetizar e tornar lírico o repulsivo garante um equilíbrio à narrativa que a livra, de imediato, da puerilidade e da diluição que a beleza pura, óbvia e absoluta, por si só, tende a gerar. Segundo Burke, o sublime “produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz. Digo a mais forte emoção, porque estou convencido de que as ideias de dor são muito mais poderosas do que aquelas que provêm do prazer”. A camada de horror, a atmosfera pesada desse sentimento é intumescida pelo olhar aguçado do narrador, que realça as nuances da existência humana e assimila a dor no centro de seu discurso. Escreve Virginia Woolf: “A pressão de seus dedos parecia aumentar na flor o que ela de mais brilhante continha; realçá-lo; torná-lo mais fresco, franzido, imaculado”. Como a beleza de um busto de pedra que a violência erige. Skylab realiza um franco elogio à força dessa violência.

Em “A Posição do Narrador no Romance Contemporâneo”, que Adorno trouxe a lume em 1954, o teórico alemão inicia suas considerações sublinhando um paradoxo: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração”, localizando o gênero em questão como “a forma literária específica da era burguesa”, que teria, por suas condições históricas e ideológicas, propiciado o apartamento dos indivíduos da comunidade, isolando-os e transformando a experiência do individualismo em coletiva, no sentido de ser dada a todos. E é para representar esse cenário que a antiga representação, analisada também por Walter Benjamin, tida como “harmônica”, já faliu. 

Como “contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice”, impõe-se um processo de ultrapassar a fachada para perscrutar os recônditos escuros de uma matéria densa e insondável, admitindo, nesse exercício de contraditórios, a impossibilidade de alcançar o que se busca, mas, ainda assim, incessantemente buscá-lo. Adorno escreve que “desde sempre (…) o romance teve como verdadeiro objeto o conflito entre os homens vivos e as relações petrificadas”. E, mais à frente, continua: “O impulso característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de captar a essência, que, por sua vez, aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenções sociais…”.

No prefácio do livro de ensaios “A Melodia Trágica”, em que Skylab atua como arguto analista da música popular brasileira, centrando seus esforços em artistas de menor vulto comercial, mas que influenciaram sua lírica, como Mutantes, Júpiter Maçã, Arrigo Barnabé, Fausto Fawcett e Itamar Assumpção, o sociólogo e crítico musical Marcos Lacerda define o autor e compositor como “um dos mais bem preparados artífices do gesto imprevisível, perigoso e, mesmo, enigmático, de se trazer ao ser aquilo que é do domínio do não ser. Em suma, de fazer a criação, estimular a invenção de formas, não só artísticas, mas também críticas e conceituais e, com isso, movimentar o espírito do mundo, com senso de medida e exasperação, com domínio do conceito e desespero da dúvida”, analisa. O próprio Skylab, ao se deter na obra dos Mutantes, conclui que “tem que ter swing para passar no buraco da agulha; e, caso não haja buraco, que ele seja aberto, através da invenção e contra todo o contexto”. Pois o insólito é o seu terreno, assim como uma assumida queda pelo Impossível.

Tanto que, ao refletir sobre a obra de Luís Capucho, a noção de sublime lhe é cara: “colocá-la entre o vulgar e o sublime nos remete a uma certa experiência, o esforço humano em transformar o sofrimento em prazer, a necessidade em vontade. (…) E isso envolve também uma concepção do trágico, sendo constituído pelo sublime. (…) Em todo esse processo existe, portanto, um esforço humano, uma ação deliberada que, se não foge à impotência diante da natureza, pelo menos imprime sua vontade através da razão. (…) a concepção da tragédia como sendo determinada pelo sublime, não implica em conciliação, mas em representação do absoluto pelo sensível”. Adiante, em outro trecho, Skylab assinala: “o gesto conciso, humano e subjetivo de responder a um real desagradável, de que não damos conta, e que termina por produzir certo prazer”.

E, por fim, cita Nietzsche: “Importa antes de tudo transformar o pensamento de desgosto com respeito ao horror e ao absurdo da existência em representações que permitam viver: (…) o sublime como sujeição artística do horror”. Nítido ou esfumado, o fato é que, ao falar sobre Capucho, Skylab fala de si, e, afinal de contas, Madame Bovary, “c’est moi”, já prenunciava Flaubert.  

Em entrevista ao autor que vos fala para o blog Esquina Musical, Skylab afirmou: “Tenho pensado muito sobre isso. Uma das possíveis origens do meu trabalho, conceitualmente falando, teria sido isso que você aponta em ‘Naquela Noite’, mas que eu poderia estender para outras canções como ‘Motosserra’, ‘Música Suave’ e até mesmo ‘Matador de Passarinho’. A forma não casa com o conteúdo; o lirismo serve para esconder atrocidades. Talvez seja um mergulho na estrutura mais profunda da sociedade brasileira. A beleza, o sentimentalismo, o lirismo servindo pra despistar as perversões sociais de um país estruturalmente injusto”. O que estaria em consonância com o aspecto parodístico, no que tange à melodia, de “Naquela Noite”, com seus ares de seresta ao modo de “No Rancho Fundo”, por exemplo, clássico de Lamartine Babo e Ary Barroso.

Na concepção de Burke, “o belo incita na alma o sentimento chamado amor”, ao passo que, “tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime”, embora ele mesmo admita, quase numa distração, que, “o sofrimento de uma pessoa bela é muitíssimo mais comovente”, aproximando nessa sentença beleza – a fonte do prazer – e dor, ao modo do que Clarice Lispector havia feito em um dos contos de “Onde Estivestes de Noite” (1974): “Estou agora procurando na chuva uma alegria tão grande que se torne aguda, e que me ponha em contato com uma agudez que se pareça a agudez da dor”.

O prodígio da canção de Skylab concentra-se nesse ponto, como quem equilibra uma esfera entre os dedos sem deixá-la escorregar, mantendo a tensão do gesto enquanto a impressão de maleabilidade se estende. “Essa é a origem do poder do sublime, que, longe de resultar de nossos raciocínios, antecede-os e nos arrebata com uma força irresistível”, prossegue Burke. Pois Skylab, como artista, joga também com o inconsciente. 

O sublime de Burke pode ser traduzido como o assombro despertado pelo horror. O espanto pode ser prazeroso se nos conectamos com ele pelo filtro da beleza, causando-nos deleite, primeiro através dos sentidos, e, na sequência, atingindo o intelecto e desembocando na reflexão. Para tanto, vale a lição do filósofo alemão Schopenhauer: “O efeito dos sons é incomparavelmente mais poderoso, mais infalível e mais rápido que o das palavras”. O que justifica o uso da palavra lírica, poética. Ao associar essas duas instâncias de forte teor emotivo, a beleza cuja origem é a palavra poética ritmada, sonora, encadeada, ao sublime que nos pega pelas vísceras, Skylab constrói uma narrativa que tende para o passional, sentimento que ele enxuga com um sentido de concisão, não só na escolha de palavras, mas na melodia suave, sereníssima, delicada.

Novamente, a vantagem da arte é elevar o pensamento por meio das emoções. Ao entrelaçar um acontecimento intragável, custoso, à estética do prazer, Skylab atinge essa complexidade que instiga o ouvinte a auscultar de perto a podridão do terrível – que não deixa de impressionar, mas passa a envolver o outro com sutis meandros. Nada disso seria possível se estivesse fora da equação o talento composicional, e a consistência de pensamento acerca do tema que poetiza, por parte do narrador. “Uma coisa é tornar clara uma ideia e outra torná-la impressionante para a imaginação”, sustenta Burke. Segundo Antonio Candido, “a literatura é essencialmente uma reorganização do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrário de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme um princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura da obra”. A definição atende a Skylab, pelo rigor criativo.

Podemos dizer que a canção “Naquela Noite” se inicia com um blefe. Depois de lançá-la com poucos recursos, que resultaram numa gravação sofrível, em 1992, o compositor a regravou no disco seguinte, de forma digna, em uma nova empreitada independente, em “Skylab”, de 1999. Com produção de Robertinho de Recife, o álbum conta com onze faixas, todas de teor sinistro, sendo “Naquela Noite” a oitava. O arranjo de Robertinho é mínimo e preciso. Além dos vocais de Skylab, comparece o teclado de Luiz Antônio em quase toda a faixa, e, em momentos específicos, a guitarra de Robertinho. Na época do lançamento, a revista eletrônica Brazilian Music Review publicou uma crítica em que destacava “o canto expressionista” de Skylab, sublinhando “o aspecto recitativo”, próximo da fala, imprimido pelo intérprete de sua própria criação.

Os primeiros acordes do piano nos introduzem a uma atmosfera densa, soturna, propícia à escuridão, mas, ainda assim, marcada pela suavidade. Quando surge a voz do cantor, a melancolia permanece: “Naquela noite, cheia de estrelas/ Ela passava cheia de graça”. Nos dois primeiros versos, percebemos o diálogo parodístico de Skylab com a tradição da música popular brasileira, em alusões a “Chão de Estrelas”, clássico seresteiro de Silvio Caldas e Orestes Barbosa, e “Garota de Ipanema”, o hino da bossa nova de Tom Jobim e Vinicius de Moraes que consagrou a graça da “coisa mais linda”. A harmonia da letra só é rompida no terceiro verso, mas permanece musicalmente, realizando, aqui, esse primeiro contraponto entre discurso e sonoridade.

“A segurei pelos cabelos/ E enfiei uma porrada”, canta Skylab, mantendo a pose de quem pratica um ato absolutamente cotidiano e, mesmo, banal. O detalhe fica para a entonação diferenciada que ele empresta à palavra “porrada”, tornando-a mais grave. Na sequência, ele retorna ao tom delicado, prenhe de uma sutileza insólita, ao descrever, com requintes de crueldade, a reação da vítima: “Ela gemia, ela chorava/ E a Lua cheia iluminava”. Aqui, entra em cena a imagem simbólica que acompanhará o relato minucioso do narrador durante toda a trama. É a da Lua, que ilumina a escuridão. A paródia volta a insinuar-se, pois a relação com o astro é recorrente no gênero de terror, convocando, outra vez, o subconsciente do ouvinte para essa atmosfera sinistra.

A descrição das técnicas de tortura prossegue na terceira estrofe. “Depois peguei um caco de vidro/ E enterrei no seu umbigo/ Ela urrava, ela gemia/ Um passarinho batia as asas/ Um violino tocava valsa/ E a Lua cheia iluminava”. Novas imagens prenhes de simbolismo lírico são acrescentadas à cena, evocando passarinhos, valsas e violinos, e sustentando o clarão da lua ao final dos versos. Diante da exasperação humana, o que denominamos Natureza parece indiferente. Ao recorrer a essas imagens, Skylab constrói, “com a perícia de um obstetra”, que ele vai evocar ao final da canção, um quadro disforme, expressionista, absolutamente terrível pela incongruência dos elementos, que se organizam harmonicamente, a despeito das contradições entre eles. À convencionalidade controlada da forma narrativa, opõe-se a perplexidade gerada pelas palavras, cujo sentido expressa uma situação caótica e aterradora.

A quarta estrofe repete a estrutura anterior. Em seis versos, o compositor combina a descrição metódica da tortura, seguida pela reação exasperada da vítima, à beleza imanente da Natureza, encerrada com a recorrente imagem da Lua que ilumina o breu. A diferença, salutar, é que o narrador/torturador depõe sobre seu estado de espírito em meio à mixórdia: “Com um alicate eu retorcia/ Os seus mamilos tão delicados/ Ela pedia pra que eu parasse/ E eu sentia uma estranha calma/ Os vaga-lumes contracenavam/ E a Lua cheia iluminava”.

Diante de um cenário em que “a estranheza do mundo lhe fosse familiar”, como anotou Adorno, o narrador contemporâneo talvez seja esse sujeito que sente “uma estranha calma” no caos que constitui a realidade. O mesmo Adorno advoga que, “nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na dissonância e no abandono…”. Skylab é dessa corrente…

Na quarta estrofe, composta de seis versos como todas da canção, a melodia procura mimetizar a sensação de queda paulatina propiciada pelas passagens “fio por fio” e “era uma lágrima, era outra lágrima”, juntando ação e reação, causa e consequência, mas empregando ao gesto aterrador uma conotação quase jocosa, com um piano que graceja sobre notas curtas e agudas, reproduzindo a fina espessura de fios e lágrimas.

A imagem simbólica escolhida pelo autor também dialoga com estas duas que conduzem as estrofes, num recurso metonímico que envolve os fios com os arvoredos, sendo que estes que nos remetem a ramos espessos, e as lágrimas que escorrem à coloração prata, propícia ao brilho translúcido da expressão de uma dor insuportável que não se consegue conter. “E fui puxando, fio por fio/ Dos seus cabelos castanho-claros/ E a cada fio que eu arrancava/ Era uma lágrima, era outra lágrima/ Os arvoredos de cor de prata/ E a Lua cheia iluminava”, canta Skylab insistindo na imagem lunar, dando monotonia ao extraordinário.

A quinta e penúltima estrofe se inicia com a figura meticulosa do obstetra, responsável pelo nascimento, por arrancar a vida da escuridão do útero materno, onde estamos protegidos das agressões mundanas. Como respondeu o filósofo Clóvis de Barros Filho ao apresentador Antônio Abujamra em seu programa “Provocações” na TV Cultura: “A vida é dor e sofrimento. Não me lembro de ter sofrido antes de nascer. E acho que não irei sofrer depois de morrer”. Retornando à canção de Skylab, o arranjo se mantém inalterado nos dois primeiros versos da quinta estrofe, e sofre nova reviravolta no terceiro verso, ao modo do que havia acontecido com a primeira estrofe da música, explicitando uma canção harmônica e precisamente construída, composta de seis estrofes com seis versos, totalizando 36, e dialogando com esse “exercício meticuloso” do torturador.

“E com a perícia de um obstetra/ Em meio a um bosque cheio de flores/ Eu extirpei de dentro dela/ Um bicho horrível chamado homem/ Os passarinhos em revoada/ A Lua cheia iluminava”, canta o artista, acompanhado cada vez mais de perto pelo piano. A tensão se acentua, melódica e harmonicamente, no trecho em que o narrador extirpa o bicho horrível de dentro da vítima, numa consonância entre letra e melodia, a partir de um arranjo que eleva o peso das teclas do piano, assim como o canto se torna mais grave. Mas a impressão se dissolve rapidamente para o retorno da interpretação blasé, indiferente, e que canta “os passarinhos em revoada”, enquanto “a Lua cheia iluminava”.

Na conclusão da sexta estrofe, o eu lírico esquece a vítima, volta-se para seu âmago, seu eu, exibe o ego sem pudores, e, se não justifica, reflete sobre uma essência que é sua. “A minha vida é essa história/ Por mais que eu pinte, é sempre escura/ Pro que eu pergunto não há resposta/ Mas de repente levei um susto/ Olhei pra dentro da minha alma/ E a Lua cheia iluminava”.

Importante notar que a Lua aparece como um ente, sempre em maiúscula, como se, mais do que uma imagem, fosse um Ser, algo que age sobre a cena, e não apenas a sofre passivamente. Nessa derradeira estrofe, a melodia se mantém sempre serena, dotada de suavidade, e não irrompe os acordes nem quando Skylab utiliza a palavra “susto”. Aqui, logo depois de admitir essa reação própria do inusual, do horror e do insólito, ele opta pelo silêncio, que coloca o ouvinte, novamente, numa posição de não saber o que vem pela frente, e de nítido desconforto, enfim, de uma excruciante e terrível expectativa pelo pior.

Os segundos que se sucedem ao suspense são condensados em dois versos: “Olhei pra dentro da minha alma/ E a Lua cheia iluminava”. Embora marcada pela perspectiva etérea da palavra “alma”, ao final da canção o real se impõe. Não há mais simbolismos, a fuga da subjetividade, o confronto é com esse real insondável, que, corroborando a ambiguidade que pressupõe toda a reflexão de Skylab nessa canção, se ilumina pela Lua, mais do que uma imagem, um Ser, um objeto, algo que atua na cena da realidade.

“O processo que leva ao texto poético carreia a expressão de mais de um tempo: o tempo presente que a ideologia filtra e reduz; o tempo sem tempo da forma feita de imagem; o tempo cíclico do som”, detecta Alfredo Bosi, para quem, “a poesia exprime a subjetividade mais radical do ser humano”. E completa: “Porque a expressão lírica é mais concreta do que o tipo, assim como o tipo já era menos abstrato que a alegoria”. O crítico literário ainda traz a sua própria definição sobre o belo, que amplia a constatação de Burke: “Belo é o que nos arranca do tédio e do cinza contemporâneo e nos reapresenta modos heroicos, sagrados ou ingênuos de viver e de pensar. Bela é a metáfora ardida, a palavra concreta, o ritmo forte. Belo é o que deixa entrever, pelo novo da aparência, o originário e o vital da essência”, assinala Bosi. “A imaginação constitui a mais ampla esfera do prazer e da dor, dado ser ela o campo de nossos temores e de nossas esperanças, assim como de todas as nossas paixões”, diz Burke.

No livro “Diante da Dor dos Outros” (2003), Susan Sontag recupera uma reflexão do filósofo francês Georges Bataille (1897-1962), que desenvolveu teorias ligadas ao erotismo, ao sagrado e à transgressão, e que aparece como uma das influências de Skylab, formado em Filosofia pela PUC-Rio, em diversas entrevistas. “Bataille não diz que obtém prazer com a visão desse martírio. Mas diz que pode imaginar o sofrimento extremo como algo mais do que o mero sofrimento, como uma espécie de transfiguração”.

Se a realidade não dá conta da situação, é preciso que a arte faça este papel. É sabido que uma das capacidades da arte é ultrapassar a realidade, assim como o fazem a religião e as drogas. No uso de substâncias psicotrópicas, na transcendência através da fé e na elaboração do real mediada pela poética, suspende-se a materialidade do mundo físico como propulsora de desejos e decisões para que elementos de matriz mais fluida e volátil imponham a sua cor.

O que nos permite concluir que a beleza terrível da canção de Skylab advém da sua realidade, afinal a vida é bela e tenebrosa, e também de uma necessidade humana, de só ser capaz de lidar com o horror através de artifícios líricos, presumivelmente poéticos.

Referências

BURKE, Edmund. Uma Investigação Filosófica Sobre a Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo. Editora da Universidade de Campinas, São Paulo, 1993.

BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Editora da Universidade de São Paulo, SP, 1977.

WOOLF, Virginia. A Marca na Parede e Outros Contos. Cosac Naify, 2015.

LISPECTOR, Clarice. Onde Estivestes de Noite. Rocco, 1999.

SONTAG, Susan. Diante da Dor dos Outros. Companhia das Letras, 2003.

SKYLAB, Rogério. A Melodia Trágica. Hedra, 2023. 

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Ouro Sobre Azul, 2006.

SANTIAGO, Silviano. O Narrador Pós-Moderno. Companhia das Letras, 1989.

ADORNO, Theodor. A Posição do Narrador no Romance Contemporâneo. Editora 34, 2012. 

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. Contraponto, 2007.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]