A desilusão e o envelhecimento feminino em “O Logro”, de Luísa Dacosta

*por Raphael Vidigal Aroeira

“E viu cair com alguns vidros pedaços da sua carne, como atingida por uma lepra invisível” Luísa Dacosta

É no penúltimo parágrafo, a bem da verdade próximo do final do conto, que a escritora portuguesa Luísa Dacosta entrega o segredo de “O Logro”, publicado em 2001, como parte da coletânea “Vozes e Olhares no Feminino”. Com uma frase simples, livre de afetação, a narradora determina: “Era preciso ser realista”.

E, logo adiante, um pouco à frente, reforça essa percepção: “Era aquela a amarga realidade que tinha de encarar, como encarava o seu rosto no espelho”. O conto trata, afinal de contas, da desilusão, como explicita um trecho seguinte: “Não era apenas uma velha, desiludida e amarga. Tinha-se transformado numa caricatura, difícil de suportar”.

Aqui, a autora insere outro elemento que converge para a temática da desilusão, a partir da descrição de sua personagem como uma “caricatura”, paradoxalmente algo que estaria além da realidade, exagerando seus traços ou destacando os aspectos mais risíveis e insólitos, mas que, por conta desse artifício mesmo, revela sua condição mais profunda e que será retomada no arremate a partir da ideia de “lepra invisível”.

Deixemos para mais tarde, no entanto, essa consideração final. A história gira em torno de uma senhora de idade, presumivelmente a par de seus setenta anos ou mais, pelo tempo de casamento (cinco décadas que renderam “festejos de bodas de prata e bodas de ouro”) e pela reiteração da velhice que a acompanha, em contraposição, por exemplo, à juventude da amante de seu recém-falecido esposo: “Do que ele gostava, agora o tinha sabido, era de se afogar nas ‘mamocas’ e nas redondezas da outra bichaninha’!”.

Além de replicar o apelido íntimo da esposa no contato com a outra, a fim de não se confundir, como suspeita a narradora, a palavra ‘mamocas’ – sinônimo de mama pequena em Portugal, no jargão popular – indicia a pouca idade da ninfeta, o que é reforçado pela constatação da narradora de ter sido substituída por aquela que possuía “uma chama que com ela tinha se apagado há muito”.

Nos deparamos com a narradora refletindo sobre essas descobertas, apenas alguns dias depois de ter encontrado uma pista da provável traição, ao situar eventos recentes como velório, enterro e missa de sétimo dia do marido, e ainda remoendo esse sentimento que a apunhala. O flagrante, que ocorre na ausência do carrasco, só parece possível dada a morte, já que, ao que tudo indica, o “Biltre! Hipócrita!” é abatido por um infarto fulminante no momento em que redigia a carta para a amante, que permanece incompleta, e que, desta forma, não termina: “Desejo tanto…”, são suas últimas palavras.

Tomada por um sentimento de “roubo”, a narradora inicia a história culpando a si própria, considerando-se uma tola. “Parva! Grandessíssima parva! Até as colegas já deviam saber como fora ingênua e crédula”, desabafa. Toda a estrutura narrativa, por sinal, aparece como uma espécie de monólogo interior, na forma de desabafo. Os xingamentos, que se acumulam, logo passam à figura do marido morto, denotando esse caminho de transferência de responsabilidade. “Desaforado!”. “Biltre!”. “Hipócrita!”. “Pulha!” e “Lorpa!” engrossam a lista de pertinentes homenagens póstumas.

Em “O Logro”, que tem a ver com malogrado, qual seja, desfeito de sorte, a desilusão da narradora está intimamente ligada à questão do envelhecimento feminino e como ela é tratada em sociedades ocidentais como a portuguesa e a brasileira, para ficar somente nos exemplos que, aqui, nos estão mais próximos. Ela, que não chega a ser nomeada, se ressente de ter investido em dietas, “para conservar o seu corpo de rapariga”, que não impediram que as rugas da idade lhe atacassem, “sempre a privar-se de uma coisa boa”.

A falsidade desse mundo artificial – fundado em preceitos capitalistas que pressupõe um consumismo desenfreado e frenético dos chamados “produtos de beleza” –, e que, através da publicidade, promete às mulheres uma armadura contra a implacabilidade do tempo, desmancha-se junto ao ideal romântico da narradora, que segue posta na condição de abnegada pelos filhos e amigas.

Graças à carta interrompida, descoberta em meio a papéis dispersos, com o auxílio de um espelho que não mascara a realidade, ela finalmente enfrenta seu “rosto mirrado, macilento e sem maquilhagem, com sulcos de rugas e uma rede de pequenos entalhes, como feitos a canivete”, e percebe que, naquele quarto cartesiano e prosaico, havia representado uma peça de teatro, “onde, julgando-se a heroína, tinha sido a imbecil”. Essa caricatura de si mesma, da personagem que se percebe personagem, é encarada com um súbito gesto de violência contra a natureza da farsa, que a autora consegue sublinhar com uma imagem, ao mesmo tempo, precisa e impactante, concretizando a subjetividade. Ao fim do conto “O Logro”, a realidade se impõe como uma lepra, ainda que invisível.

Referência
DACOSTA, Luísa. O logro. In: LIMA, Isabel Pires de (coord.). Vozes e olhares no feminino. Porto: Edições Afrontamento, 2001. p. 91-92

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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