*por Raphael Vidigal Aroeira
“E rebuscava em retratos, em gravuras, nas revistas, o queixo ideal, aquele que seria o dela” Maria Ondina Braga
É com um detalhe pitoresco que se inicia a narrativa da escritora portuguesa Maria Ondina Braga, publicada em 1992 na coletânea A Rosa de Jericó, como, aliás, denuncia o título: “O Queixo”. Essa parte específica do corpo da protagonista irá representar a falta que a identifica. “Uma mulher feia, Clementina. Testa alta, olhos estreitos azul-pálidos, o nariz levemente curvo, a boca arrepiada, sem queixo. A feieza vinha-lhe do queixo, ou melhor, da falta de queixo” (Braga, 1992, p.49), lê-se logo no primeiro parágrafo.
Como o diabo mora nos detalhes, podemos nos atentar ao fato de que o próprio nome da heroína soa como aquela que crê na mentira. Antes de dar o pontapé na saga de busca propriamente dita de Clementina, a narradora realiza um acréscimo fundamental: “Que, de resto, podia dizer-se jeitosa” (Braga, 1992, p.49). Afinal, o queixo que não existe surge como um “ferrete” que determina toda a aparência de Clementina, o que justifica, mais adiante, a passividade de sua atitude ante a determinação do marido em pagar-lhe uma cirurgia plástica, ainda que, internamente, ela se revire em angústias que a consomem.
Tendo recebido uma única carta de amor de quem hoje é seu marido ao longo de toda vida, em que ele a chamava de “olhos de miosótis”, Clementina também recorda o orgulho que a mãe sentia de seu “cabelo castanho-quente, ondeado e farto” (Braga, 1992, p.49). Não escapa à percepção, no entanto, que para mantê-lo brilhante era preciso submeter-se à dor da escovação, o que suscita outra questão preponderante do conto: a violência como forma de moldar o corpo feminino para que ele se adéque a expectativas alheias.
O sofrimento advindo da falta de queixo é tamanho que Clementina sequer é capaz de pronunciar a palavra, o que a leva a sublimar tal sentimento: “Ah, se pudesse riscá-la do dicionário!…” (Braga, 1992, p.50), conjectura diante do espelho. Aqui, é inserido o poder da linguagem na constituição da espécie humana, que pode, a partir do que é dito sobre si, erigir uma imagem que se farte de verossimilhança. Eis o tema da história proposta por Maria Ondina: a busca por uma identidade, sob o ponto de vista do lugar sociocultural e histórico ocupado pela mulher nas sociedades ocidentais em que o patriarcado rege.
No caso, trata-se de uma mulher de meia idade, que, desde a adolescência, aprendeu a comparar-se com as demais e achar a sua cabeça parecida com a “de uma cobra, a sua cara com a cara dos peixes” (Braga, 1992, p.50). O casamento é descrito quase como uma complacência por parte de ambos. “Clementina, não sabia, na realidade, o que era estar apaixonada” (Braga, 1992, p.50), escreve a autora. Assim, Clementina vive entre duas realidades: aquela mais imediata, da rotina prosaica e cartesiana; e outra em que ela fantasia e sonha “com os ardores da paixão, uma vida agitada, intensa” (Braga, 1992, p.50).
A madrugada é o cenário onde essa contradição se amplifica, em meio ao sexo do casal. Enquanto “na realidade, havia Rogério (jamais tivera outro homem)”, a imagem que a reflete é de uma Clementina “comovida com a sua própria beleza, e louca de amor” (Braga, 1992, p.50), no momento em que a consciência baixa a guarda e ela se entrega ao ímpeto de uma sensação interior.
Todavia, o olhar externo se impõe, e graças a um “jantar em casa dos primos Ricardos, gente mundana, com muitos conhecimentos” (Braga, 1992, p.51) revela-se a existência de um especialista que “realizava autênticos milagres”. O que outrora era privilégio de milionários, agora tornara-se acessível a uma certa classe média. Vantagens do capitalismo moderno.
A reação envergonhada de Clementina frente ao assunto prenuncia seu destino “trágico”, com um quê de “cômico” pelo patético da situação e o detalhe propositadamente insólito que dispara a trama: a ausência de queixo. Mais do que a deformidade física, porém, o que a abalará profundamente é o simbolismo da obstinação do marido em vê-la remodelada pela ciência: “Afinal não agradava ao marido como ingenuamente presumira” (Braga, 1992, p.51).
Desfeita a cortina de fumaça que a envolvia, Clementina tenta de todas as formas conformar-se e vencer as dúvidas que a acometem, até que ela sucumbe ao desejo impertinente do marido – dono da palavra e de suas vontades – e resigna-se com a operação. Então, passa a receber gracejos de estranhos nas ruas, inclusive de mulheres, e, decorrente dessa transformação plástica, adota nova postura, que se ampara, mais uma vez, no olhar do outro.
Porém, a busca dessa identidade (para sempre) perdida ou nunca revelada não se consuma, como uma autêntica utopia. Ante a impossibilidade de uma identidade definida (e definitiva?), resta à protagonista uma posição de entrave, colocada exatamente na fresta de uma abertura: nem dentro, nem fora, mas nesse meio do caminho, à procura. Ao final, Clementina, abatida e cansada, imerge em questionamentos. “Morrera a burguesinha submissa. Quem sabe se nascera sem queixo por ser esse o destino que lhe convinha? Quem sabe?” (Braga, 1992, p.58). A resposta da narradora é essa perene dúvida.
Referência
BRAGA, Maria Ondina. O queixo. In: BRAGA, Maria Ondina. A Rosa de Jericó. Lisboa: Editorial Caminho, 1992. p. 49-58.