*Raphael Vidigal Aroeira
“Não pode deixar de meditar quem foi arrancado do arado, da paisagem cinzenta e familiar, e atirado nessa voragem, repleta de luzes monstruosas, de um barulho incessante e de gente correndo…” Tchekhov
A devastação da paisagem se alia ao desamparo de corpos molhados incessantemente pela chuva que, embora fina, nos soa ácida. Tudo conduz ao marasmo na literatura do húngaro László Krasznahorkai, atual vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, onde imagens de neblina, ruína e abandono são uma constante. Nascido na cidade de Gyula, no interior da Hungria, Krasznahorkai foi criado em uma família judia de classe média e se formou em Direito e Literatura antes de estrear como romancista, em 1985, com “Sátántangó”, focado na “condição miserável de personagens desamparados e desesperançados”, e adaptado por seu compatriota Béla Tarr para o cinema em 1994, em um filme com 7 horas e meia de duração. Ou, como prefere o cineasta, “inspirado” na escrita do húngaro, apesar de ter sido filmado “direto do livro, sem a escrita propriamente de um roteiro, sendo mantidos os nomes dos personagens”, como aponta a pesquisadora Lídia Mello, autora do livro “Do Cinema de Béla Tarr”, publicado pela editora Ramalhete em 2019.
Ela conta que “o filme mantém a estrutura do livro de Krasznahorkai, com pequenas variações”. “Pensado como o movimento e os passos do tango, ou seja, seis para frente e seis para trás, o filme é dividido em 12 partes nomeadas e numeradas de I a VI e inversamente de VI a I. Essas ideias vieram do livro e de seu próprio nome, que tem a ver com o tango. No filme, as situações vividas pelos personagens acontecem em círculos que se repetem, diferenciando-se. O tango, além de ser um estilo musical, é considerado uma forma de expressar sentimentos de sedução, dor, melancolia e tristeza, e seus movimentos coreografados produzem efeito dramático”, assinala Lídia, que aproveita para abordar o enredo da trama.
Como a cooperação entre Béla Tarr e László Krasznahorkai impacta na produção do cineasta húngaro e quais traços literários você percebe que vazam para essa que, em muitos casos, era uma adaptação cinematográfica de livros do vencedor do Nobel?
A parceria criativa entre o realizador Béla Tarr e o escritor László Krasznahorkai iniciou com o filme Condenação/Damnation em 1987. Os dois escreveram juntos o roteiro desse filme, e também roteiros e/ou argumentos ou recriações de O tango de satanás, 1994; As harmonias de Werckmeister; 2000, O homem de Londres, 2007 (inspirado no livro homônimo de Georges Simenon) e de O cavalo de Turim, 2011. Sendo que os filmes O tango de satanás e As harmonias de Werckmeister foram inspirados (e não adaptados, como defende BT) respectivamente nos livros Sátántangó, 1985, e Melancolia da resistência, 1989, de László Krasznahorkai. Os dois partilharam a criação de cinco longas-metragens ficcionais, rodados em 35mm e em P & B; inclusive Krasznahorkai esteve presente nas rodagens dos dois filmes baseados em dois de seus livros.
BT sabia muito bem o que queria fazer no cinema, tinha total domínio de seu trabalho e de seus filmes, da mesma forma LK com sua literatura. Tarr (1955-) e Krasznahorkai (1954-) têm quase a mesma idade, dois artistas gigantes, importantes para a Hungria e MUITO singulares. Na minha opinião, houve um encontro potente entre um escritor e um cineasta de uma mesma geração, com visões de mundo e estéticas com muita afinidade, pelo menos na época em que trabalharam juntos.
Quando eu entrevistei o ator János Derzsi, ele disse que durante as filmagens perguntou a L. Krasznahorkai sobre detalhes dos personagens do livro Sátántangó, trocaram ideias, mas o co-roteirista não interferia no set. Aliás, no meio cinematográfico, não é comum roteiristas que não são diretores dos filmes fazerem interferências nas filmagens. O ator Miklós Székely, por sua vez, relatou-me que Krasznahorkai, às vezes, aparecia no set de filmagem, entretanto pouco falava, ficava observando as coisas. Daquilo que pesquisei e ouvi da equipe de BT quando estive na Hungria, Krasznahorkai esteve nas rodagens de O tango de satanás e do filme As harmonias de Werckmeister, ou seja, nos filmes que surgiram a partir de dois dos seus romances. Não podemos esquecer de que o cinema de BT teve também a importante contribuição de Ágnes Hranitzky, co-realizadora e montadora de quase todos os filmes do diretor, assim como de Víg Mihály, o compositor das trilhas sonoras, das sonoridades lentas.
Quais características distintivas você destaca no estilo cinematográfico de Béla Tarr que estão, de alguma maneira, ligadas à cultura húngara e à literatura de László Krasznahorkai?
BT disse-me que sem a colaboração de Krasznahorkai a visão dos seus filmes seria diferente. Mas destacou: ‘’Literatura e Cinema são duas linguagens distintas. Não podemos usar as mesmas palavras, pois temos linguagens diferentes. Se considerarmos, por exemplo, uma mesa, um escritor pode escrever profundas vinte páginas sobre tal mesa. Como eu sou cineasta, tenho uma câmera e muitas lentes (por elas poderem mostrar coisas reais, as chamamos de objetivas), elas mostram o tempo todo coisas reais. Filmar tem a ver com coisas reais, com a realidade. Não consigo fazer uma adaptação, se eu pegar um livro para fazer uma adaptação certamente não dá, caio fora’’. No cinema de BT, as situações encenadas pelos personagens funcionam como na realidade, no tempo da vida, e não como no plano da imaginação do campo literário.
O cineasta e o escritor foram influenciados, por exemplo, pela literatura de Thomas Bernhard, estilo marcado por frases longas, e, às vezes repetitivas, e extensos monólogos. E por F. Dostoiévski, que versa sobre a psicologia profunda dos personagens, explorando a condição humana e dilemas morais, focando em heróis contraditórios e paradoxais, que são frequentemente marginalizados e vulneráveis, e narrativas extremamente descritivas e densas. Também são influenciados por Samuel Beckett, seu estilo minimalista, uso da repetição, a exploração do vazio existencial, a solidão e a angústia humanas. Questões que estão nos filmes de BT.
Tanto a literatura de Krasznahorkai quanto o cinema de BT retratam problemas sociais e da cultura húngara, situações humanas reais, o cotidiano de pessoas socialmente à margem da sociedade e o desencantamento dos húngaros com relação aos governantes que ocuparam o poder ao longo da história do país. Além disso, tanto a literatura de LK quanto o cinema de BT são apocalípticos.
Estética literária e cinematográfica que se aproximam, frases e diálogos longos que sustentam o pensamento, e sem variação tonal como a língua húngara, personagens melancólicos e desesperançados, narrativas densas e no tempo da vida, movimentos de câmara e planos lentos e super extensos. Cinema e literatura que dialogam com os ritmos e movimentos da música, arte cara, sobretudo, a Krasznahorkai, que estudou piano, antes de ser um escritor reconhecido.
Aliás, não posso deixar de mencionar que o ritmo da música composta por Víg Mihály, para os filmes de BT, auxiliava os diretores de fotografia a criar os movimentos de câmera extremamente elaborados e pacientes e a definir a duração dos planos, e igualmente ajudava os atores a interpretar de modo calmo e sutil, como o cineasta tanto aprecia. Uma sonoridade que coloca o ouvinte/espectador num estado de transe, pela simultaneidade melódica e harmonia tonal; uma música que é tempo, pensamento do tempo. Quando entrevistei Mihály, ele relatou que lia o roteiro do filme e fazia a música antes das filmagens. Assim era mais fácil para BT rodar suas longas, lentas e coreográficas sequências com a música já pronta. Portanto, no ato das filmagens o diretor já inseria a música.
Quando fiz a minha pesquisa de Doutorado na Hungria (2014-2016), visitei várias locações dos filmes de BT, entrevistei ele e quase toda a sua equipe (infelizmente não tive a oportunidade de falar com Krasznahorkai). Segundo me relataram os atores e a equipe técnica principal dos filmes, em certa época, houve mais companheirismo artístico entre BT e LK do que em outras. Nos últimos anos , foram se distanciando um do outro, e em 2011 finda a colaboração entre eles, época do filme O Cavalo de Turim, quando o cineasta deixa de fazer filmes. P.S. Todas as falas da equipe de BT que cito nesta entrevista estão no meu livro Do cinema de Béla Tarr (Ed. Ramalhete, 2019), livro que surge a partir da minha tese de Doutorado defendida em 2017.
É possível traçar paralelos entre o cinema do Béla Tarr em cooperação com o László Krasznahorkai e algum cineasta brasileiro? Quais são as principais referências e os possíveis herdeiros de Béla Tarr?
Não me lembro de nenhum(a) cineasta brasileiro (a) que faça um cinema próximo daquele de Béla Tarr. Entretanto, posso citar alguns realizadores declaradamente influenciados pelo diretor: o contemporâneo realizador húngaro Benedek Fliegauf, o português Pedro Costa, o mexicano Carlos Reygadas e o norte-americando Gus Van Sant, em especial, no filme Gerry, 2002, ele chega até mesmo a recriar uma sequência do filme As harmonias de Werckmeister, filmada num longo travelling horizontal lento em que os personagens Valuska (Lars Rudolph) e Sr.Eszter (Peter Fitz) caminham pela rua. Eles são herdeiros do rigor imagético de BT.
As referências estéticas de BT são muitas e de diferentes artes, cito algumas: os enquadramentos e a iluminação da pintura do holandês Pieter Brueghel – o Velho; a musicalidade tonal de Andreas Werckmeister e de Víg Mihály; o cinema de Miklós Jancsó feito com longos e lentos planos-sequência e coreografias de movimentos de câmera complexos. Filmes que exploram as relações humanas, questões sociais e a opressão e a violência de estado; além da atuação minimalista e a encenação de Beckett; e a literatura dos já citados Thomas Bernhard e Dostoievski, e, claro, de Krasznahorkai; dentre outros.
O que mais te impactou no filme ‘’Sátantangó’’, adaptado daquele que é considerado o principal romance do László Krasznahorkai?
A condição miserável em que vivem os personagens, desamparados e desesperançados. Sátántangó é, até então, o livro mais conhecido de LK, e narra a vida de um grupo de trabalhadores do campo, de uma cooperativa falida e em seus últimos dias, num pequeno vilarejo decadente pós-comunismo húngaro. Em meio às chuvas incessantes da planície húngara, os trabalhadores vão dividir entre eles o parco dinheiro que lhes restam, para partirem na tentativa de uma nova vida em outro lugar. Desorientados e sem rumo, lutam contra a miséria, e esperam a chegada de um misterioso homem chamado Irimiás (interpretado por Víg Mihály), para salvar as duas vidas, o que não acontece. Ele os leva para outro vilarejo, mas os trapaceia, gerando um ciclo de enganos, pobreza e decepção.
O filme mantém a estrutura do livro de Krasznahorkai, com pequenas variações. Segundo o cineasta, ele decidiu filmar direto do livro, sem a escrita propriamente de um roteiro, e foram mantidos os mesmos nomes dos personagens do livro. O tango de satanás (originalmente Sátántangó) foi filmado em cerca de 110 dias e inicialmente pensado para durar 6 horas, mas acabou ficando com 7h30min. Uma duração desafiante para espectadores impacientes. Pensado como o movimento e os passos do tango (seis passos para frente, seis para trás), o filme é dividido em 12 partes nomeadas e numeradas de I a VI e inversamente de VI a I. Ideias que vieram do livro de LK, e o próprio nome do livro Sátántangó tem a ver com o tango. No filme, as situações vividas pelos personagens acontecem em círculos que se repetem, diferenciando-se. O tango, além de ser um estilo musical, é considerado uma forma de expressar sentimentos, de sedução, dor, melancolia e tristeza, e seus movimentos coreografados produzem efeito dramático.
Outra contribuição de ambos é o filme ‘’Danação’’, um de meus prediletos. Gostaria que você comentasse também a força dessa história e do roteiro assinado por Béla Tarr e László Krasznahorkai.
O filme Condenação/Damnation é o meu segundo preferido (o primeiro é o Cavalo de Turim, para mim a obra-prima do cineasta húngaro). Filme que narra a história de Karrer (vivido por Miklós Székely), um homem solitário, sem perspectiva de trabalho e desencantado com a vida, que se apaixona por uma cantora de bar (casada). Na intenção de conquistar a mulher e em busca de algum dinheiro para sobreviver, ele se envolve num esquema de contrabando e tenta convencer a amante a fugir com ele, esquema que acaba por falhar. Todos no filme estão fadados ao fracasso, vivem num pequeno e miserável vilarejo húngaro.
Em Condenação, o escritor ajudou BT a criar o roteiro a partir do argumento do diretor. A colaboração de Krasznahorkai com BT se inicia com este filme, então ouso dizer que tem muito mais do cineasta do que do escritor (co-roteirista). A partir desta época, BT filma apenas em preto-e-branco. Este, e os demais filmes do cineasta, exploram as relações e a fragilidade humana, além da desilusão de pessoas que são sempre exploradas por líderes manipuladores. Filmes que podem ser considerados alegorias do colapso da ordem social, da desesperança e do vazio pós-comunismo na Hungria, regime que finda em 1989, restando a frustração e a decepção dos húngaros diante do descaso social e de promessas nunca cumpridas por governantes opressivos e controladores, situação mostrada nos filmes, embora não sejam documentários. Em seu cinema, Béla Tarr sempre defendeu e deu voz às pessoas desfavorecidas socialmente.
Mini Bio: Lidia Mello (@elasfilmam) é Pós-Doutora em Estudos Fílmicos/UC-PT, Doutora em Cinema/EBA-UFMG e Mestre em Literatura/UFRGS. Possui ampla e diversificada experiência no cinema, já realizou filmes e nos últimos anos tem trabalhado como programadora e júri em festivais BR e PT, regularmente escreve críticas de filmes para o site C7NEMA, e é autora dos livros: Autoritarismos no Brasil: O olhar de dez realizadoras contemporâneas (2022, Outro Modo/Le Monde Diplomatique/PT) e Do cinema de Béla Tarr (2019, Ramalhete/Brasil).


