Ava Rocha: “Minha música aproveita injustiças do mercado para radicalizar”

*Raphael Vidigal Aroeira

“Entretanto, por Anjo invisível guardado,
O Filho deserdado de sol se embriaga,
E encontra a ambrosia e o néctar dourado
Em tudo que ele come, e em tudo que ele traga” Baudelaire

O cotidiano. O extraordinário. As grandes emoções. As reflexões internas e externas do eu e do mundo. O caos e a tranquilidade. A rapidez e a imersão. Ava Rocha descreve a vida ao falar de seu ofício. “No meu caso, a composição e a criação se amalgamam à existência. Posso estar na cozinha, servindo um prato”, conta a cantora, compositora, cineasta e artista plástica cujo leque de interesses se volta para todas essas artes. Filha de Glauber Rocha e Paula Gaitán, ela prepara para 2026, “um filme, um disco, talvez um livro e outras novidades”, enquanto segue circulando com suas performances e oficinas, como o espetáculo “Nektar”, oriundo de seu mais recente álbum de inéditas, de 2023, “Femme Frame”, de voz e piano, e “Bodas”, em que divide o palco com Negro Leo, além da instalação “Dentro de Fora de Dentro” e da imersão vocal “Koraix”.

Em meio a todo esse frenesi criativo, Ava, um dos principais nomes da chamada nova MPB, encontra tempo para discordar da afirmação de Dori Caymmi, que, em entrevista recente à Folha de S. Paulo, expressou seu desencanto com o panorama atual da música brasileira. “Não vi essa opinião, mas acho que o Dori só ouve uma fatia do que é feito. Ele provavelmente, do alto de sua erudição, só consome de música contemporânea o que é entregue pelos grandes meios, só o mainstream, então é lógico que vai fazer esse comentário, por puro desconhecimento. Logo eu que conheço, que escuto, discordo plenamente”, diverge Ava.

Ela avalia o mercado musical como “sufocante e para poucos”. “É uma questão histórica. Também tem o fato de ser muito volátil, muda o tempo todo, seja o produto, no caso o artista, ou os meios”, observa. Aos 46 anos e cheia de humildade, Ava se diz disposta a “aprender com a juventude sobre como lidar com a velocidade dessas mudanças do mercado digital”. “Acho que é muito bom pensar o mercado como um terreno expandido, tendo consciência das próprias escolhas estéticas e políticas, que às vezes não condizem com a linguagem da indústria fonográfica. Penso um pouco nisso, mas meu foco está na criação”, afirma.

O que te instiga e te inspira a criar? Como é o seu processo de composição?
A própria vida, desde o cotidiano até os acontecimentos extraordinários. Desde reflexões internas como externas, de mim e do mundo, até a experiência das grandes emoções. Então meu processo é muito fluido, de acordo mesmo com as percepções e acontecimentos que vão se sucedendo, pode ser no caos ou mesmo na tranquilidade total, de forma bem rápida e objetiva como extremamente imersiva. O processo é a própria a vida. A composição, e a criação em geral, no meu caso formam uma amálgama. Às vezes a gente tá criando na cozinha, compondo um prato.

De que maneira você pensa a sua música no cenário da produção contemporânea? Como procura dialogar com a tradição e a modernidade?
Eu penso que dentro do cenário contemporânea a música, não que eu faço mas que me faz, ocupa um lugar de liberdade, pensamento, poética e política, de experimentação e diálogo com minhas raízes e com meu agora e também com o futuro, que transcende a régua do mercado e até mesmo se aproveita das lacunas, falhas e injustiças que o mercado impõe para radicalizar, aprofundar, construir.

Quem são as suas principais referências artísticas e o que mais te chama atenção na música contemporânea?
Prefiro chamar de afluências, pois muitas obras e artistas me atravessam, mesmo que não replicados ou de maneiras explícitas no meu trabalho. Frida Kahlo, Madonna e Nina Haggen. Bjork. Parajanov, Pasolini. Kazuo Ohno. Tunga. Lígia Clark e Pape. Meus pais Glauber Rocha e Paula Gaitán. A música brasileira em peso. A música latino-americana e mundial. Muita coisa. Na música contemporânea, pelo seu momento histórico, o que mais gosto é do seu devir atemporal e transgênero.

Quais os desafios e as possibilidades você percebe para artistas da MPB em um cenário de internet, redes sociais, streaming e novas formas de produção e veiculação? Como isso afeta a sua criação?
É, o mercado é sufocante e também é pra poucos, é uma questão histórica né. Também tem o fato que eu acho que ele é muito volátil, muda o tempo todo, seja o produto, no caso o artista, ou os meios. Mas assim, eu na verdade tenho que aprender com a juventude sobre como lidar com a velocidade, inclusive dessas mudanças, desse mercado digital. Eles que devem me aconselhar. Agora, como disse acima, o que eu acho é que é muito bom você ser livre, pensar o mercado como um terreno expandido, e também ter consciência das suas escolhas estéticas e políticas, que às vezes não condizem com a linguagem do mercado da música industrial. Eu penso um pouco nisso, mas meu foco real está na criação, que é o que me chama. Então não sei, sigo esperando que eles, os jovens, me digam. Mas que o cenário é difícil, é.

O que achou da opinião de Dori Caymmi de que a música brasileira atual está doente de tanto mau gosto e, na sua opinião, o que leva a essa percepção?
Não vi essa opinião, mas eu acho que ele só ouve uma fatia do que é feito. Ele provavelmente, do alto de sua erudição, também só consome de música contemporânea o que é entregue pelos grandes meios, também só consome mainstream etc., então é lógico que ele vai fazer esse comentário, por puro desconhecimento. Logo eu que conheço; que escuto, discordo plenamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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