Rogério Skylab: “O maior nicho é do brega, aceita que dói menos”

*Raphael Vidigal Aroeira

“Desde que descobri a morte, a vida surgiu-me sob um novo ângulo” Strindberg

A ironia é a suprema dama das contradições humanas. Foi em um estúdio acanhado da gravadora Odeon que, em fevereiro de 1959, tudo aconteceu, “provocando estupefação geral”, como nos contam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello no segundo volume de “A Canção no Tempo”, cuja publicação data de 1998. Mas como as datas não são capazes de nos oferecer o sentido das coisas, coube àquela histórica gravação de João Gilberto sustentar o enigma que nos conecta ao momento presente. Com letra de Newton Mendonça e melodia de Tom Jobim, ele cantava em “Desafinado”, abrindo alas para a bossa nova com sua dissonante revolução: “Se você insiste em classificar/ Meu comportamento de antimusical”. A expressão foi a mesma utilizada por Dori Caymmi em recente entrevista à Folha de S. Paulo para lançamento de seu novo disco, curiosamente intitulado “Utopia”, na qual desanca o panorama atual.

“Num momento tão antimusical, meu disco não tem a menor possibilidade de uma divulgação decente. É uma coisa do passado mesmo. Nós estamos vivendo um outro tipo de postura no século XXI. E eu não posso botar uma roupa brilhante, chamar 12 bailarinos e fazer um show no palco, dançável, para todo mundo gostar”, debochou. Se não é possível negar a filiação de Dori à bossa nova, também taxada por detratores da época de “antimusical”, tampouco se pode deixar escapar as nuances de seu descontentamento. Em outro trecho da entrevista, acompanhado em suas críticas pelo letrista e parceiro Paulo César Pinheiro, ele diz que “a música brasileira está doente”, e volta sua mira para o mais popular gênero musical do Brasil atualmente. “O vibrato dos cantores sertanejos é um pavor. Não sei de onde vem, talvez do trio elétrico!”, disparou.

O músico Rogério Skylab, que também participa do podcast “Contemporâneos” analisando discos recentes da canção brasileira, abre divergência com o filho pródigo de Dorival. “Dori Caymmi foi infeliz ao comentar algo de que ele não faz a menor ideia, que é a música popular contemporânea. E, no entanto, artisticamente ele é imenso. Eu sinceramente acredito que trabalho artístico é uma coisa e opinião é outra, totalmente diferente. Veja o caso do Elomar. Alguém em sã consciência vai questionar o trabalho artístico dele? No entanto, ao que me consta, é bolsonarista. Nana Caymmi, Djavan, já cometeram gafes políticas. E, no entanto, artisticamente são imensos. Vamos falar de Ezra Pound?”, provoca, em referência ao principal poeta norte-americano do modernismo, que não escondia a sua simpatia pelo regime fascista de Mussolini, fato que o levou a ser preso.

Qual a sua opinião sobre o diagnóstico de Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro de que a música brasileira atual está “doente com tanto mau gosto” e a que você atribui essa percepção?
Eu sinceramente acredito que trabalho artístico é uma coisa e opinião é outra coisa, totalmente diferente. Veja o caso do Elomar. Alguém em sã consciência vai questionar o trabalho artístico dele? No entanto, ao que me consta, é bolsonarista. Nana Caymmi, Djavan, já cometeram gafes políticas. E, no entanto, artisticamente são imensos. Dori Caymmi a mesma coisa, foi infeliz ao comentar algo de que ele não faz a menor ideia, que é a música popular contemporânea. E, no entanto, artisticamente ele é imenso. Vamos falar de Ezra Pound?

Os compositores parecem se ressentir de um momento em que o tipo de música produzida por eles tinha amplo espaço na mídia, e acabam voltando suas miras para gêneros populares como o axé e sertanejo que pouco dialogam com a tradição da bossa nova, do samba e da MPB da qual descendem. O principal desafio da dita MPB hoje em dia é mesmo a veiculação da obra ou há outras barreiras a serem superadas?
Veja, essa é uma questão que eu venho discutindo ultimamente. Muitas pessoas não se deram conta ainda que os tempos mudam. Eu diria mais, os tempos morrem. Mas eles ficam entranhados em nós enquanto passado. Quando escutamos Elis Regina, ou voltamos aos anos 70, no caso de quem os viveu, ou a nova geração entra em contato com uma forma antiga de música como se estivesse num museu. Em outras palavras, os tempos mudam, os tempos morrem. A MPB até os anos 80, em função das grandes gravadoras, tinha um veículo importantíssimo, que era o rádio. Através dele havia o contato com o grande público. Com a ascensão da Internet, tanto as grandes gravadoras quanto as rádios tiveram uma baixa. E o público, o mundo, passou a funcionar através de nichos. Só não podemos esquecer de uma coisa, a música brega, romântica, sempre teve um imenso público. Era ela que financiava a música da elite. E isso agora ficou mais transparente, o maior nicho é do brega. Aceita que dói menos.

Quais são as principais características da música que poderíamos denominar de MPB no cenário contemporâneo e como ela dialoga com as tendências mais populares que hoje parecem hegemonizar o domínio das mídias tradicionais? Como a internet interfere nesse panorama?
Eu tinha um podcast, ainda disponível no Spotify, chamado “Contemporâneos”. Ali, discutíamos a música que era produzida no Brasil do final dos anos 90 até os dias de hoje. Cada episódio era um disco diferente. Retratamos diversos artistas. Ali constatamos uma música rica, pulsante, na contramão do que disse Dori. Alguns segmentos se nutrindo da fonte bossanovista, outros bebendo em Mário de Andrade, outros movendo-se na materialidade do som de base eletroacústica. É a Internet, não a rádio, que vai dar vazão a esse som, encontrar o seu público. Cada macaco no seu galho: é a nova lei.

O que a geração de Chico, Caetano, Gil, Djavan, Milton, dentre outros, trouxe de peso, influência, liberdade ou herança para a atual geração da MPB e no que ela procura se diferenciar em termos de proposta estética ou qualidade?
Chico, Caetano, Milton, Djavan… são imensos, assim como nas artes plásticas Chirico, Picasso, Damien Hirst, Bacon são imensos. Cabe aos novos artistas seguir a máxima de Jorge Luis Borges: tornar os novos precursores dos antigos. Para isso se requer conhecimento do passado mas não subserviência. Mais importante do que repetir Gal Costa é o desafio do novo. A consequência da subserviência é uma música inodoro, líquida e que de fato não dialoga com os temas contemporâneos. Música de fundo pra se ouvir no churrasco de domingo. Esse tema da qualidade artística é controverso. Como se fosse algo eterno. Todos esses grandes do passado somente o foram na medida em que estavam em ressonância com o seu tempo.

Como artista, você se considera mais próximo da geração de Chico e Caetano ou da de Thiago Amud e Rômulo Froes?
Acho essa pergunta complicada, a mais complicada de todas. Tanto Thiago quanto Rômulo estão no meu podcast. Uma prova do quanto os acho relevantes. Por outro lado, assim como acontece no campo da esquerda política, não acho que deva haver unidade, somente em momentos pragmáticos. Muitas vezes, na minha obra, eu faço um elogio da distância e questiono a vizinhança. Um álbum que eu tenha construído hoje pode ter mais relações com os meus primeiros álbuns do que com um álbum posterior. Disto isso, o grande desafio do artista contemporâneo é o novo, descobrir algo que não existia no cenário da música popular, nem que para isso seja preciso ler, reler e transler o passado. Essa foi a grande lição de Clara Crocodilo, ainda que seu autor tenha ficado sufocado ao peso de sua criação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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