*Patrícia Ahmaral (cantora e compositora)
Um repentino vazio nas mãos… será que caiu?… e já se ia, correndo longe, a uns 200
metros de distância, um fio de menino, silhueta empoeirada, magra, veloz. O celular furtado no zupt! São Sebastião Do Rio De Janeiro. Acabara de chegar. Um fim de novembro de 2021. E a noite se fez meio escura.
No vácuo do instante, um gelo na espinha. Choques de realidade. Flechas no pensamento e no coração. E uns lampejos de lucidez… Ele só é mais uma vítima, repetia… uma vítima… uma vítima…uma VÍTIMA. Será que esse mundo tem jeito? Será que tem volta? Desesperança que só…
Por misterioso acaso, ou obra de anjo, ainda do lado de fora do carro, havia me antecipado e informado a Maurício o endereço do meu destino. A anotação, ela mesma, havia ido embora junto com o zupt e com o zap!
Nascido e criado em Minas, como eu, o gentil condutor comentou que há anos morava na cidade maravilhosa, sempre rodando como taxista. Testemunha do ocorrido, em total calma e empatia, emprestou-me seu aparelho para que eu acionasse, ao final da corrida, os atendimentos eletrônicos para bloquear cartão e conta bancária, como se deve fazer nesses casos. Mais um lampejo: os anjos estão sempre por perto.
Manhã seguinte. Chego destrambelhada ao local combinado, a cabeça zunindo, o coração descompassado. Precisava estar bem para honrar e dar conta do momento mágico que se apresentaria… me encontrar com Jards Macalé, o querido Macao, e gravar com ele a sua “Let´s play that”. Sua e de seu grande amigo e parceiro Torquato Neto, poeta e letrista, que eu decidira louvar em um álbum tributo. Não seria a primeira vez desse encontro. Mas, agora mais amadurecida, eu parecia me dar conta com mais exatidão da grandeza de Macalé e do privilégio daquela empreitada.
Para tudo dar certo, pensava, era fundamental virar a chave e transformar a energia da noite anterior, que eu passara quase em vigília, grudada no laptop, trocando senhas do google e do escambau e pelejando com um BO eletrônico, que, por sinal, não deu certo. Horas em que eu passei desesperadamente tentando redescobrir um endereço: o do estúdio. Qual era mesmo o nome do lugar?
Anjo após anjo, sob o sol do dia seguinte, eu descia de um táxi e subia as escadas de madeira, tentando acalmar a respiração e apagar as borboletas no estômago. Lá em cima, a equipe toda a postos, Walter, Andrea, Dani, Paulinho, Diego. Afagos, cafezinho da casa…boas-vindas. Eu, ainda meio alma fora do corpo, me perguntando se conseguiria ou não realizar aquele feito, depois de tudo. Um imperativo “preciso estar bem” rodava na mente. E a voz demonstrando-se desdormida, areada e meio crepitante. Tanto empenho… e se eu não conseguisse?
Quando volto lá dos fundos, onde me levaram para conhecer a sala de gravação, surge de trás de um biombo, local reservado aos nossos testes pra covid 19, aquela presença marcante, que vejo como uma beleza cunhada em ginga e timing muito próprios, que é o Macao. Parou de frente pra mim, suspendeu o tempo inclinando levemente a coluna, me fitou de seu alto e por detrás daquelas lentes parentas das de John, o Lennon, e, antes do abraço, mandou: “Mas você escolheu uma música muito doida pra gravar!”. Primeiro espanto. “Ah… Macau… como é que eu ia perder essa oportunidade, né?”. Sorrisos e, finalmente, o abraço. E um trem bom, cá no peito, de encontrar um trem bom no outro peito.
As borboletas continuavam, mas seguimos dali, como se diz, no flow. Teríamos que seguir.
Partimos para o primeiro cara a cara musical da manhã. Em nossos bancos, um de cá, outra de lá, de frente uma para o outro. Desde sempre, ele havia executado “Let´s play that” com o mesmíssimo arranjo de violão, que criara para a primeira gravação da canção em seu álbum de estréia, o icônico “Jards Macalé”, de 1972. Surpreendendo, debulhou ali, em um diferente suingue, novos acordes para, em grande gentileza, adequar a música a um tom ideal à minha extensão vocal. Assim, acabou por reinventar seu arranjo de violão, numa leitura original da original. Que presente maravilhoso…Segundo espanto.
Então, eu, meio torta que já estava, e com asas que jamais se acalmariam em minha barriga, e, Macalé, entortando o que, segundo ele, já era torto, seguimos preparando o terreno para registrar a faixa. Acrescentando mais uma camada de preciosidade no que já era pra lá de precioso, o violão que, momentos antes ele havia retirado da case, explicando em contentamento ter sido fabricado por um luthier uruguaio e adquirido diretamente das mãos de Turíbio Santos (!), era o mesmo, carregado de história e de afetos, com o qual Macalé havia realizado a gravação de 72. Outro espanto.
Aí, estirou devagar, como quem grava um disco em 78 rotações, histórias do violão e de João Gilberto e de marolinhas (docinhos de goiaba) com as quais ele convencera o João a lhe devolver o precioso instrumento, que já estava há muito emprestado para as bandas de lá e isso não tava bom e coisas e tal.
Eu mantinha alguma expectativa de que ele nos contasse sobre Torquato. Mas do parceiro, comentou pouquinho… porque aquela partida do amigo, lá naquele tempo, precoce e sem avisar, acho que o desconsola até hoje: “Torquatinho…Torquatinho…” ele só dizia e pensava pra dentro. Um fio de história escapando da intimidade sem mais palavras. Um espanto suspenso.
Enquanto a gente ensaiava, eu transpirava nas mãos, descascava o lápis e não cravava na ginga dele, por nada… Desordenada que estava, segui não cravando na hora do “gravando”! Mas cantei lá com amor, entrega e vontade o meu canto meio solto! Macao imprimiu no violão, aquele que quase ficou com Gilberto, o João, sua nova base para “let’s play”! Depois soltou a voz em take único, dizendo que não gostaria de fazer de novo. Precisava? “Vai, bicho!” Imenso Macalé! Cravado gigante, ficou esse momento em meu coração…das coisas a agradecer para sempre e cujas fichas vão caindo bem aos poucos.
E o menino? Aquele lá? Ah…os meninos, as meninas dos brasis e do mundo. Oxalá, não precisem mais desaparecer, feito corisco, correndo no, e do, perigo da vida, essa, sim, lhes sendo furtada. Que anjos, muitos, doidos doidos doidos, soltos soltos soltos, abram asas sobre nós e nos ajudem a encontrar novos e bem melhores planos de vôo. Let´s play that! Desafinar é preciso!!
Mas para ser precisa, preciso ainda contar que o endereço que procurava desesperadamente naquela madrugada, e que me permitiria chegar até o estúdio onde me encontraria com Jards Macalé, responde por rua Real Grandeza, 170. Sincronicamente, “Rua Real Grandeza” é o exato mote e título de uma das muitas e incríveis parcerias de Macalé com o poeta Waly Salomão. Se for o caso de ouvir pra crer, está lá no fabuloso “Aprender a nadar” (1974) de Macao.
Anjos? Muitos. Doidos e, sempre, tortos, por trás do acaso. Mas, por vezes, disfarçados na gradeza de gênios da invenção.


