“A outra volta do parafuso”, de Henry James, impede apreensão do sentido

*por Raphael Vidigal Aroeira

“(…) quero dizer, sim, que o indizível e o intocável se tornaram, entre nós, os elementos mais presentes, e que tanta evasiva não poderia funcionar sem muitos entendimentos tácitos.” Henry James

Se há um adjetivo que não cabe a “A outra volta do parafuso” é o da fluidez. No posfácio à edição de 2011 da novela de Henry James (1843-1916) originalmente publicada em 1898, o crítico literário David Bromwich é cirúrgico ao defini-la como “um experimento controlado”. De fato, o conjunto de palavras que emerge deste texto enigmático transmite ao leitor a pura sensação de um rigor milimetricamente medido e calculado, como se as pontas soltas da significação impusessem a rigidez de uma forma – ou fórmula – capaz de detê-las em seu interior. Assim, emerge algo de truncado, que propositadamente dificulta a imersão na história, exibindo o caráter artificial e o labor criativo do literato – num paralelo talvez possível com a poética engenhosa do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1990) e sua pena árida.

No caso, impõe-se a gelidez gótica de um cenário ao mesmo tempo monumental e inóspito, em contraponto à vastidão de mormaço, quente e úmida cabraliana. O próprio enredo denota a farsa, pois inicia-se com o anúncio, feito pelo narrador inominado, da leitura de um manuscrito entregue pela protagonista dos fatos, agora morta, a Douglas, numa espécie de história dentro da história e de duplicação de quem narra, o que já insinua conexões com o título insólito da obra, primeiro chamariz para leitores desavisados. Afinal de contas, o que seria a outra volta do parafuso? Douglas, pela interposição do narrador primevo, dá uma resposta lógica, tão óbvia da qual se convém desconfiar. Seria simplesmente porque, na história de terror que se segue, não há uma, mas duas crianças, e se é inconcebível imaginar situações degradantes com uma só criatura inocente, que dirá de duas? Novamente, uma duplicação, e nova volta no parafuso, cada vez mais apertado sobre o pescoço de quem engole em seco diante do Mal que habita a história da humanidade, nas histórias que se encadeiam labirínticas…

A numeração de capítulos na novela só começa com a leitura do que seria o manuscrito. Sem nunca ter o seu nome mencionado, a narradora que toma a palavra – escritas por ela mesma, convém lembrar – é tão fantasmagórica quanto as aparições que a vêm atormentar. Com uma descrição genérica e sucinta, a personagem se forma para o leitor fatalmente via palavras que expressam suas emoções, angústias e pensamentos, num mergulho interior típico da literatura ocidental produzida no século XIX. Em detrimento das imagens, o que alcançamos dela são signos verbais confusos, repetitivos e intermitentes, ora numa balança que tende para a exaltação, outrora para o desterro da melancolia. Se a narradora empreende um esforço para construir o sentido, ele escapa constantemente pelas fendas onde razão e desrazão coexistem. A ambiguidade premente da escritura de James vige nesse lugar de iminência e fresta, em que tudo permanece prestes a eclodir, num tempo suspenso entre o ser e o nada…

Concretamente, o que temos é a epopeia fracassada de uma governanta, que, ao contrário dos heróis míticos, anda em círculos, presa pelas dobras e duplicações, como espelhos que refletem uma imagem deformando-a e esboçando seu duplo, num jogo de ilusão com o real. Ela é contratada por um tio que se mantém distante e indiferente ao que se passa na casa, localizada na fictícia cidade de Bly, para tomar conta de duas crianças órfãs, cujos pais morreram na Índia, em circunstâncias não esclarecidas. Outras mortes adensam essa atmosfera sinistra. A predecessora da atual governanta e o serviçal com quem ela mantinha um escandaloso relacionamento para a sociedade vitoriana da época, alvo da censura de outra empregada da casa, a Sra. Grose, espécie de confidente da narradora-protagonista, também morreram misteriosamente. São eles, a Srta. Jessel e Peter Quint, quem irão aparecer como fantasmas na trama. Só quem as vê inequivocamente é a governanta, embora ela alimente a certeza de que as crianças também se comunicam com as criaturas espectrais, e empreenderá uma saga a fim de retirar delas a confissão. Daí resultará a ação, propriamente dita, do livro.

Porém, nada é inequívoco em “A outra volta do parafuso”, há sempre sombras e dúvidas a pairar sobre a história. Justamente porque não se tem acesso à totalidade dos fatos, tudo se exibe a partir de um ponto de vista específico, que revela a limitação da capacidade humana de apreender o sentido. Numa passagem aparentemente singela, a governanta reflete sobre essa condição: “Eu caminhava num mundo inventado por elas – elas não tinham nenhuma oportunidade de recorrer ao meu”. Entre o fato e a imaginação, persistem barreiras que vedam e truncam – como a escrita de James – a apreensão de uma experiência fluida, serena, confortável. E a torcida – ou volta, no dizer do autor – do parafuso contorce o ânimo humano que anseia compreender os elementos contraditórios, ilusórios, reais, de nossa existência confusa.

O que explica, por exemplo, que o Mal se aposse do espírito de uma criança? E o que explica que ele não se aposse? Se tudo está tomado pelo alívio diário, existe redenção na tragédia? Vemos o que existe ou existimos pelo que vemos? Como se estabelece o jogo de determinação entre desejo e realização, interior e exterior, crença e prova? James não dá a resposta, mas indaga. Tudo mantém-se nublado, sob uma bruma densa e concentrada, articulada através de palavras, que, como sabemos, abstraem, enquanto a imagem materializa, torna palpável aquilo que evanesce no mundo de inquietações das infinitas possibilidades do sentido, afinal, o mundo das interpretações.

Se o gozo anula a consciência, e durante o gozo mais profundo ela simplesmente desaparece, a cena final que sugere a morte do garoto nos braços da governanta detém a tensão de um erotismo crescente, que, como no lance de dados de Mallarmé, evoca as imbricações entre violência e sensualidade, mas, ao invés de diluir, esse entrechoque adensa a substância espessa que nutre o desaparecimento e a aparição.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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