*por Raphael Vidigal Aroeira
“A estória não quer tornar-se história.” Guimarães Rosa
Quando começava a borbulhar, a dor sumia. Para curar as fortes enxaquecas da criança, a benzedeira Dona Jovelina, conhecida também como “vó preta”, lançava mão de rezas e de um frasco de água sobre a testa, num ritual “mágico”, descreve Bruno H Castro, ao explicar as origens do livro que ele acaba de colocar na praça, que não deixa de prestar homenagem a uma das protagonistas da trama.
Segundo Castro, “A Benzedeira” é a “bíblia em cordel” de seu primeiro longa-metragem de animação. “Ele surgiu da necessidade de continuar trabalhando em cinema, para que eu pudesse ir atrás de dinheiro para fazer arte”, pontua. Ao passar boa parte da infância ao lado de Dona Jovelina, o escritor paulista, natural da cidade de Barbosa, criou uma relação de amor e amizade com a futura personagem do livro.
1 – Como surgiu a ideia do livro “A Benzedeira” e de que maneira a literatura de Guimarães Rosa participa da história?
O livro é a bíblia em cordel do meu primeiro longa-metragem de animação, ele surgiu da necessidade de continuar trabalhando em cinema, para que eu pudesse ir atrás de dinheiro para fazer arte. A ideia surgiu como homenagem para Dona Jovelina, que foi minha benzedeira, minha “vó preta” como ela me ensinou a chamá-la. Passei boa parte da minha primeira infância com ela, eu tinha fortes dores de cabeça nessa fase, ela tirava num ritual com rezas e frasco de água na minha testa que começava a borbulhar e a dor sumia, era mágico. Daí tomei gosto de ficar com ela, passava muito tempo junto, a gente criou uma relação de amizade e de amor muito forte. Aprendi muito sobre fé e fantasia com a Dona Jovelina, ela me contava muitas histórias e eu via muita coisa – no mínimo – curiosa lá nos rituais na casinha dela. Ainda criança eu gostava de ajudar a fazer os chás, aprendia as rezas, tomava café da tarde com alguma frequência depois da escola, escutava tudo e adorava conversar com ela por horas, mesmo novo, e lembro que escutava Dona Jovelina dizer que um dia todo mundo ia ouvir eu contar nossas histórias, parecia uma profecia.
E isso me marcou, senti que eu tinha que cumprir. E nesse trabalho eu cumpro isso, é meu jeito de homenagear e agradecer por tudo que ela fez. Mas “A Benzedeira” é também minha forma de começar a apresentar os textos que escrevo, é meu laboratório, meu teste, estou entendendo a minha voz literária conversando textualmente com a memória de Dona Jovelina. A ideia percorreu esse caminho. E numa dessas encruzilhadas li Guimarães Rosa, que se tornou uma espécie de guru, alguém pra quem por vezes até rezo, chamo, medito antes de escrever, não sei o que é, é uma coisa meio maldita talvez que me faz ter vontade de ser escritor e de escrever de forma livre e experimental, e pra quem dediquei meu primeiro livro, “nonada”, lançado em 2016 na Coletânea AMAR, que tem prefácio do Valter Hugo Mãe. Fato é que a literatura sertaneja de Rosa fez com que eu reconhecesse na arte a minha história e, pela primeira vez, visse beleza no meu passado. Digo isso porque na adolescência tive um processo de negação de tudo o que fosse ligado ao interior, eu queria sair logo de Barbosa, a cidade que morava desde que nasci (cenário de parte da trama), para vir morar em São Paulo, daí não conseguia admirar mais a vida no campo.
Mas quando li a força filosófica, poética e entendi a potência narrativa presente, sobretudo, nas pessoas descritas por Guimarães Rosa, me lembrei de Dona Jovelina, benzedeira que se encaixaria perfeitamente no universo “guimaraneano”. Isso criou uma nova conexão com minha história. Logo Rosa estava entrelaçado. Juntei as peças, entendi que fazer um filme sobre a Dona Jovelina era também uma chance de expressar o meu amor por Guimarães Rosa através do cinema de animação. Além disso, a literatura de Rosa também é influência para a trama de “A Benzedeira”, uma vez que o Poeta, que é ouvinte de Dona Jovelina e escritor da história que está vivendo, é fã de Guimarães Rosa e realizou uma expedição em 1964 na região de Cordisburgo para coletar histórias, assim como o autor mineiro realizava, porém traz uma cicatriz no rosto como resultado do final trágico da experiência artística (a qual é revelada no cordel). Por fim, uma curiosidade: eu estava vendo uma peça no Teatro Oficina em 2015 quando fiz as conexões entre Rosa, Jovelina, fé, filosofia, cinema e literatura e tive a ideia de escrever “A Benzedeira”.
2 – Porque a opção de contar essa história através de um cordel e como esse gênero se relaciona com Guimarães, na sua ótica?
O cordel traz uma brasilidade crua que traduz fisicamente aquilo que “A Benzedeira” é. Explico. É um filme sobre o Brasil, fiz uma pesquisa de 10 anos para criar uma bíblia de longa de animação sobre o país que passa por vários momentos marcantes da nossa história. Dona Jovelina sempre conta pela perspectiva da fé, mas uma fé livre, isso representa a relação “ecumênica” que nosso país tem com as religiões, por isso a narrativa está cheia de pequenas simbologias tipicamente brasileiras, como uma santa de barro queimado encontrada numa pescaria, além de outras minitramas de fé de matrizes africanas e originárias. Já o Poeta é um artista, escritor, vive no mundo da literatura e já não distingue mais arte e realidade. Então a memória de Dona Jovelina quando conta sobre Aurora e sua jornada pelo Brasil, desde quando é roubada no parto numa senzala na Imperial Cidade de Ouro Preto, até o crescimento fantástico, a coroação numa festa de Reinado do Congo (a “Congada”, termo que vem sendo questionado por uso pejorativo), a peregrinação milagrosa pelo sertão do país, e a contação de história segue, a benzedeira centenária faz um verdadeiro apanhado do que foi o Brasil que ela viu nos últimos anos.
Com isso em mente, para mim, com essa mistura de arte e fé, o cordel se mostrou quase como um relicário para apresentar “A Benzedeira” ao público nesse primeiro momento. A beleza estética e a história da literatura de cordel se encaixaram com perfeição à narrativa do Poeta e Dona Jovelina. Mas a relação é antiga. Tenho fascínio pela literatura de cordel. Já escrevi e editei a “Lampioa” em parceria com o João Zambon (que fez o projeto gráfico de “A Benzedeira”), que é uma série de quatro cordeis sobre gênero e sexualidade que contou com textos e artes de diversos artistas, como Laerte e Tom Zé. Gosto da oralidade, da poesia falada, do poema cantado e transcrito pro papel, dessa crueza, da arte gravada, dessa humanidade presente no cordel. O Brasil tem uma raiz oral muito forte, é a base da nossa formação linguística, social. Estudei com a professora Marília Librandi, ela tem uma pesquisa fantástica sobre culturas orais e literatura afrobrasileira, fui ouvinte na pós graduação que ela deu em Stanford para pesquisar “A Benzedeira”, e ali entendi como muita cultura, sabedoria, ciência, arte, muita vida morre quando morre uma língua.
Daí o cordel foi uma das formas de se começar a guardar as histórias, muito tempo atrás, acho bonita essa poesia que o cordel traz de ser um guardião de narrativas ao longo do tempo. Ele é fácil de passar adiante, de levar junto, de disseminar, de democratizar, além de ser esteticamente lindo. “A Benzedeira” é uma homenagem às artes brasileiras, sobretudo ao cinema e à literatura, penso que a bíblia desse filme tinha que ser feita em cordel. E como esse gênero se relaciona com Guimarães Rosa na minha ótica? Boa pergunta. Rosa escreve de ouvido, ele escreve o que ouve, a oralidade iniciática do cordel está ali, é uma escrita atenta, da poesia do ordinário, da guerra dos descampados, dos desenlaces, dos relatos e dos causos tal qual a literatura dos cordelistas. Ele cria neologismos, cria paisagens, cria durezas, cava fundo, marca forte, cria sensações em quem lê, Rosa retrata o cotidiano de seus personagens com beleza dura e filosófica, tal qual xilogravura. Não sei se sei te responder, sei? Melhor ir pra próxima pergunta.
3 – De que maneira suas vivências inspiraram não só a criação de personagens, como Dona Jovelina, mas todo o conteúdo do livro? O Poeta é uma espécie de alter ego seu?
As pessoas se escutam? Pensando sobre minhas vivências, sobre o que tenho percebido, “A Benzedeira” é também um projeto sobre a importância da escuta, do ato de escutar, pois sinto que hoje as pessoas quase não se escutam mais, principalmente a “branquitude”, e o Poeta, quando escuta Dona Jovelina com atenção, numa escuta ativa, ele finalmente consegue criar a obra que tanto queria, que era escrever o seu primeiro livro. Acredito que minhas vivências contemporâneas inspiraram essa mensagem em “A Benzedeira”: a gente precisa se escutar e acolher o que escuta, é um ato bonito e simples de amor não romântico, mas um amor que humaniza, nos permite criar e também facilita o cotidiano. Enfim. A escuta é essencial para “A Benzedeira”. Outro exemplo que me lembro nessa direção: Rosa, a mãe de Aurora, engravida pelo ouvido após escutar a anunciação do Xamã e gera a “peregrina milagrosa”.
E por aí vai. A narrativa contada por Dona Jovelina se desenvolve no realismo mágico, isso me leva a outro ponto, acredito que seja minha criança da primeira infância, a que ficava com a benzedeira, deve ser essa criança se aflorando agora em um adulto de 39 anos. Sinto muitas vezes que quem escreveu esse texto foi essa criança, pois fui birrento no processo, teimoso, durante uma época não quis repetir palavras no texto, depois não quis mais usar a palavra “não”, enfim, fui bem infantil durante a escrita até a impressão. Mas soltei minha criança no processo artístico. Arte é um escape perfeito, vivo uma espécie de realismo mágico quando estou em estado criativo, e escrever “A Benzedeira” foi deixar a criatividade e a imaginação fluir nos dedos, foi ver e imaginar as cenas em minha mente e escutar quais palavras que queriam ser escritas.
Agora sobre o Poeta. O Poeta é uma performance artística, literária, cinematográfica (logo será teatral, tudo indica). É mais que um alter ego? Sou eu me experimentando, medindo minha coragem, sou eu saindo do ninho como artista, saindo da sombra de alguma forma, me mostrando, mostrando meu texto, experimentando, mas criando uma performance para isso. Ainda não sou eu sou, na verdade, é o Poeta. Isso tudo me veio, novamente, graças à Marília Librandi e sua formidável pesquisa sobre os “Romances da Escuta”, que me mostrou que na literatura brasileira existem autores que escrevem de ouvido, daquilo que escutam alguém contar, que duplicam a autoria, quem escreve cria um personagem que é escritor e está escrevendo o livro: Machado de Assis se transforma em Brás Cubas e Dom Casmurro, Clarice Lispector em Rodrigo S.M e o próprio Rosa é o senhor sábio que é ouvinte de Riobaldo. Eu estudava enquanto escrevia, aprendia a ser um escritor, por isso, no sentido pessoal, “A Benzedeira” é um processo de constante aprendizado artístico, usarei o Poeta para crescer e aprender a ser um artista em todas as áreas que eu puder.
4 – Além do contato com a obra de Guimarães Rosa, você tem outras influências de Minas Gerais em sua trajetória?
O álbum “Minas” de Milton Nascimento foi muito escutado durante o processo de escrita de “A Benzedeira”. Também gosto muito das festas de coroação do Reinado do Congo, as narrativas das irmandades me fascinam, assim como a musicalidade dos cortejos populares de Minas Gerais (a trilha sonora do filme vai ser desenvolvida nesses festejos). Vou focar aqui no que me influenciou para o projeto. Aleijadinho e a arquitetura de Ouro Preto também são referências para o livro e o filme, visto que parte da história se passa na cidade.
Ah, me lembrei, Maria Auxiliadora é a principal referência para as artes da animação, mas ela é também uma das grandes influências em minha trajetória, pois lembro a primeira vez que vi uma obra dela e, até então, eu só tinha texto, palavas de “A Benzedeira” e isso me deixava agoniado, mas quando vi um quadro de Maria Auxiliadora no Masp, que alívio, foi a primeira vez que consegui visualizar como seria uma imagem daquilo que eu estava há algum tempo escrevendo, e desde então passei a amar essa artista com muita força, pois ela me fez ver que era possível concretizar o sonho de fazer uma animação sobre a Dona Jovelina com um traço tão humano, vivo, com pé no chão, sabe?
A Maria Auxiliadora – olha que nome – me fez ver que o que eu sonhava ela já tinha visto muitos anos atrás. São esses que lembro. Ah! Uma coisa engraçada. Na adolescência fui presidente do Fã-clube de Barbosa da Scheila Carvalho, a morena do “É o Tchan!”, eu amava essa mulher, ela me ligava em casa, eu também falava com a mãe dela, a dona Eunice de Juiz de Fora (acho uma curiosidade, digamos, interessante sobre minha relação com Minas Gerais rs).
5 – O que te levou a optar pelo financiamento coletivo como forma de viabilizar o longa de animação de mesmo nome que você pretende filmar ao invés das famosas leis de incentivo?
O que me levou a optar pelo financiamento coletivo como forma de viabilizar o longa de animação foi a falta das leis de incentivo específicas para longas de animação. Simples. Mas expandindo. Criei o financiamento coletivo para pagar o início da pré-produção do longa-metragem de animação porque cansei de esperar e essa foi minha forma de buscar investimento e de trabalhar. Uma amiga até me perguntou: “sério que você vai fazer isso? Vender livro pra pagar filme? Quem lê no Brasil?” Fiquei com isso na cabeça e comprei a “briga”, decidi vender literatura de cordel para bancar um filme de animação. É meio loucura, eu sei, mas viver pede loucura, uma loucura boa agora, eu precisava movimentar, criar, fazer aquilo que eu acredito, sabe?
Essa história de “A Benzedeira” precisava vir pro mundo agora, você precisava conhecer essa história agora, então aceitei e estou deixando fluir. Até ontem com esse projeto eu ia pelos caminhos difíceis, mas de hoje em diante eu quero ir pelos caminhos fáceis. Acredito que vou conseguir financiamento pro longa-metragem, pelo menos pro começo da produção, porque inicialmente a verba vai pro desenvolvimento do roteiro, storyboard e desenhos de conceito, mas em paralelo vou conversar com produtoras, com empresas, estou aberto, quero produzir. Só que não dava mais pra esperar o investimento chegar e decidi fazer o negócio acontecer, girar, escrevi, paguei toda a impressão, estou sem editora, sem distribuidora, produtora e vendendo por conta própria. Tudo isso em busca de realizar o sonho de viver de arte. E estou feliz por isso. Coloquei em prática aquela coisa do viver requer coragem. O objetivo com esse lançamento é apresentar o texto e a história, e, quem sabe, encantar alguma produtora ou investidores. Eu sei que em breve isso tudo vira filme.
6 – Qual a sua mais antiga lembrança literária e de que maneira esse primeiro contato te impactou?
Acho que a primeira autora que li foi Cecília Meireles, alguma coletânea de poemas quando ainda era bem novinho na biblioteca da escola. E o primeiro livro que lembro que ganhei, pelo menos que me marcou, foi “O Pequeno Príncipe”. Menciono os dois pois fico na dúvida de qual foi o primeiro, mas acredito que foi Cecília, pois li no maternal (aprendi ler muito cedo em casa). Agora pensando melhor acho que minha lembrança literária mais antiga são as coleções “Sabrina” que minha mãe mantinha no banheiro, ela tinha uma estante atrás da porta que ficava abarrotada desses livros, lembro de ler isso enquanto me alfabetizava e fazia minhas necessidades, eu mal lia, na verdade, mas acredito que esse primeiro contato me impactou criando uma relação sentimental melosa e tóxica com a paixão, só com o sentimento, não vejo impacto na escrita e nunca mais reli. Já Cecília volto, vez ou outra, para seus poemas quando preciso de inspiração antes de enfrentar uma página em branco. E “O Pequeno Príncipe” já reli duas vezes e amo o filme de Stanley Donen de 1974 (a cena “A Snake In The Grass” com Bob Fosse é fantástica!), acho uma excelente adaptação e a fantasia dessa narrativa sempre me impacta.
7 – Há outros projetos na sua gaveta que pretende colocar para o mundo em breve?
Sim. Tenho pensado em levar “A Benzedeira” para o teatro com leituras cantadas do texto, com participação de artistas, e vou começar a rodar com oficinas de cinema de animação sobre o processo de criação do roteiro de “A Benzedeira”, para criar e escrever junto com os participantes, essas serão as novas etapas do projeto de financiamento coletivo do filme. O que mais? Tenho outras duas coisas que estou empolgado. Estou preparando meu primeiro romance, mas dessa vez não tem nenhuma conexão com Guimarães Rosa, em breve volto com novidades (por enquanto chama “Maria Inês e a Cobra Morta”).
E nesse ano vou começar a produzir a animação “Tubaroa”, um curta que tem a Marisa Orth como protagonista e traz um embate filosófico sobre a vida entre um Pescador ganancioso, que está num barco afundando, e uma tubarão tigre grávida e faminta que não gosta de carne humana, mas que não tem muita saída. O filme trata da importância do diálogo, das nossas vulnerabilidades e do respeito do ser humano com a natureza. Acredito ser uma mensagem necessária nesse momento de emergência climática e também de extrema desumanização.