*por Raphael Vidigal Aroeira
“(talvez ainda mais aguda
no sotaque da poeira;
talvez mais dilacerada
quando o vento a interpreta).” João Cabral de Melo Neto
Há muitos paralelos possíveis entre a família árabe que protagoniza “A Boa Mãe”, dirigido por Hafsia Herzi, e a realidade das famílias brasileiras, em especial as pobres, a começar pela matriarca que intitula o filme, vivida com brilhantismo por Halima Benhamed. Ela é uma mulher abnegada que vive em função dos outros, sejam eles filhos, netos ou patrões, e sua própria existência parece condicionada a ficar na sombra. É nos poucos e pequenos gestos que Halima empresta grandiosidade à sua personagem. Diante de uma realidade nutrida de acontecimentos ordinários, como idas ao dentista e preparação de peixes para o almoço, ela se conforma, mesmo quando define a sua própria existência, com certa dose de indignação: “Vida miserável, é só desgraça”, diz.
No papel de Nora, há muitos problemas que caem no seu colo, e aí aparece um corte sociocultural e, consequentemente, econômico, interessante. Essas famílias pobres, geralmente numerosas, possuem uma relação de maior proximidade com seus entes, a começar pelo próprio espaço físico. Ali, em um pequeno apartamento, moram a avó, as filhas, netos e ainda a mulher do filho que acabou preso, para quem a mãe realiza todos os sacrifícios, na esperança de vê-lo longe das grades. A metáfora com os passarinhos engaiolados, no entanto, serve para mostrar que ela também está presa numa engrenagem cruel, que transforma a vida de uma pessoa pobre na simples realização de tarefas, sem muito o que esperar ou construir. E, ainda assim, há a esperança.
As famílias mais abastadas, por sua vez, convocam essas pessoas a preencherem um espaço que elas renegam, como fica claro na relação de Nora com a velhinha para quem ela trabalha como cuidadora. Tão comum como no Brasil, com seu histórico escravagista, a empregada se torna amiga da patroa, e mais querida por ela do que os próprios filhos e netos, estes distantes e frios. Além dos serviços práticos, Nora demonstra pela velhinha um carinho genuíno. Mas ela precisa de uma jornada dupla para dar conta de sobreviver numa França hostil ao povo árabe, como, aliás, boa parte do mundo ocidental, e também labuta numa companhia aérea. Ali, há mais colegas que preenchem seus dias, incluindo a imigrante africana, e ajudam a superar o ramerrão diário.
Os filhos e netos auxiliam a narrativa com personalidades distintas, bem construídas. Há o garoto marrento e preguiçoso, que se recusa a crescer e alimenta mentiras sobre si mesmo; a mãe de uma criança de três anos que decide enfrentar o destino incontornável de miséria e abnegação e investe numa profissão peculiar: realizar as taras sadomasoquistas de homens ricos; o neto estudioso e a netinha que é um verdadeiro achado da produção; além da nora e de uma outra filha, mais apagadas no enredo como um todo, mas que o servem como linhas auxiliares das tramas principais. Cheio de momentos com capacidade de gerar comoção, o filme padece de um problema de fundo: abusa do uso de músicas para induzir essa emoção, o que acaba raleando-as.
Apesar disso, o mais importante não se perde, o que pode ser colocado, em boa medida, pelo fato de ser dirigido por uma mulher, de ascendência árabe, duas das categorias mais marginalizadas em todas as sociedades. O filme consegue captar a forma como são tratadas mulheres que se tornam mães, relegadas a servirem aos outros, utilizadas como escadas, meras servas dos desejos e necessidades de uma sociedade mimada, hierarquizada e desigual, que as coloca na base dessa pirâmide. A filha, por outro lado, adota uma postura diferente, não de conformação, mas refratária a tal sistema. Não por acaso, a relação entre as duas é acirrada. Na fala da mãe, uma pista essencial de seu comportamento. Ela parece ter sido ensinada que toda “facilidade” é errada, e que o valor de uma boa mãe está no sofrimento e em seus sacrifícios.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.