*por Raphael Vidigal Aroeira
“Rebento, tudo que nasce é rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra
Rebento farto como trigo ao vento” Gilberto Gil
Há algo de João Gilberto, Baden Powell e Vinicius de Moraes no samba “A Última Coisa Bonita”, registrado numa fita-demo em 1963, mas há, sobretudo, indícios do que se confirmaria como o estilo de Gilberto Gil, autor da melodia e da letra. A gravação de Moisés Navarro, a primeira oficial, que resgata esse samba do anonimato, se distancia do amadorismo da primeira em todos os quesitos, a não ser um: mantém intacta a sua singela beleza. A voz do mineiro de Pitangui não faz firulas, vai direto ao ponto, com timbre agradável e preciso.
A faixa integra o segundo EP que Moisés dedica a Gil, intitulado “Aquele Abraço, Gilberto Gil”, e conta com arranjos e direção musical de Jaime Alem, outro craque, habituado a trabalhar com Maria Bethânia, Gonzaguinha, Sueli Costa, Zeca Pagodinho, Elba Ramalho, Bezerra da Silva, a lista é extensa. A novidade dá o tom do repertório. Além da versão agora cheia de suingue de “A Última Coisa Bonita”, nos deparamos com duas raridades, lançadas respectivamente por Maria Bethânia e Ney Matogrosso: “Amo Tanto Viver”, do disco “Álibi” (1980), e “Fé Menino”, que ecoou em “Feitiço”, lá no ano de 1978.
Estamos tratando de duas das mais emblemáticas vozes da música popular brasileira, com raro poder de interpretação, portanto é bom deixar de lado a memória afetiva. Moisés encara esse desafio a seu modo. A própria escolha é um ponto a favor, ao driblar a obviedade de uma carreira recheada de sucessos como a de Gil. Nenhuma destas pertence ao rol das mais conhecidas do grande público, o que não depõe contra a qualidade musical que revelam. E Moisés sabe revelar essa beleza que ambas possuem. O piano de João Carlos Coutinho em “Amo Tanto Viver” sublinha toda melancolia da bonita letra de Gil.
“Fé Menino” pega a via contrária, pautada pelo entusiasmo do arranjo reggae. Otimismo e esperança se expandem, atributos próprios da palavra “fé”. Gil, que já abordou a espiritualidade de diferentes maneiras, sob os variados prismas da questão, aqui se abre, de maneira divertida, à força da diversidade e do politeísmo, e cita “King Kong/ Kung-fu”, “três modos de Deus”, entre menina e menino “felino, levado, feliz”. A canção eleva o astral do lançamento, e coloca tempero na mistura. Por fim, Moisés se volta para a “Lente do Amor”, que Gil cantou em “Luar (A Gente Precisa Ver o Luar)”, de 1981, e que foi parar na trilha do seriado “Amizade Colorida”, da Rede Globo, catapultando o seu êxito.
É a canção que menos se distancia do registro original. O clima exteriorizado se mantém. Sua força reside no fato de que o discurso parece renovado e ajustado aos tempos atuais, em que a intolerância encontra terreno fértil num país que trocou a compreensão pelo ódio, com destaque para a intolerância de natureza sexual. Gil, devoto do amor em todas as circunstâncias, crente na capacidade do ser humano de se relacionar com bondade, ressurge na voz cativante de Moisés Navarro pela lente de 2022 como se falasse pra ontem, hoje e sempre. O tempo de seu discurso não perdeu o viço, seja pelo caráter atemporal de sua obra ou pelo fato de que o Brasil voltou casas nessa história.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.