*por Raphael Vidigal Aroeira
“Será que de tanto me esconder na penumbra não acabarei desaparecendo na fumaça do cigarro?” Edward Albee
Na penumbra dos bastidores, ele se destacava. Parecia ter quase dez metros de altura, como a árvore nativa da Índia da qual herdou o apelido. Não levava desaforo pra casa, nem precisava. A voz já era poderosa desde quando anunciava as manchetes dos jornais pelas ruas do Rio de Janeiro, com pouco mais de quinze anos de idade. O primeiro bandolim foi um presente do pai, que um dia saiu de casa para comprar cigarros e nunca mais voltou, indo embora com outra mulher. Jamelão ficou com a mãe e os outros quatro irmãos. Trabalhou numa fábrica de tecidos, mas queria mesmo a música. Sua voz calorosa, pesada, cintilante como puro aço, jamais se dobrou ao racismo. Jamelão cravou sua marca na história da Mangueira e do samba-canção. Um tipo raro.
“Quem Há de Dizer” (samba-canção, 1948) – Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves
Por outro lado, o samba-canção de Lupicínio Rodrigues, lançado em 1948, é mais explícito e lamentoso. Embora também descrita como uma dançarina de cabaré, sobre a musa de “Quem Há de Dizer”, se permite afirmar nos versos finais, quando o compositor reflete das impossibilidades do amor. “Ela nasceu/Com o destino da lua/Pra todos que andam na rua/Não vai viver só pra mim”. Esse verso é fruto de um conselho recebido por Lupicínio do dono do estabelecimento. Embora a repressão social houvesse, os romances com prostitutas eram frequentes, e não só no aspecto carnal, mas de sentimentos, como revela a letra. Parceria com Alcides Gonçalves, foi gravada por Nelson Gonçalves, Jamelão, Altemar Dutra, Francisco Alves e João Gilberto, tornando-se símbolo da boemia.
“Esses Moços” (samba-canção, 1948) – Lupicínio Rodrigues
Em 2011, Arrigo Barnabé estreou nos palcos “Caixa de Ódio”, espetáculo dedicado a Lupicínio Rodrigues, que teve como inspiração a homenagem de Itamar Assumpção a Ataulfo Alves, feita em 1996. “Na mesma hora, eu pensei em fazer uma coisa parecida e até comentei com o Itamar que, no meu caso, seria uma homenagem ao Lupicínio”, recorda Arrigo. Ao interpretar a clássica “Esses Moços”, lançada por Francisco Alves, Arrigo se valia de uma ironia e mudava os versos para: “saiba que deixam o PT por ser escuro e vão ao PSOL em busca de luz”. “Agora não dá pra fazer brincadeira nenhuma. A gente não imaginava que fosse acontecer uma coisa de louco dessas”, declara, em 2019. Outra gravação emblemática foi a de Jamelão, na década de 1960.
“Vingança” (samba-canção, 1951) – Lupicínio Rodrigues
“Vingança”, outro samba-canção magoado de Lupicínio Rodrigues foi lançado originalmente por Linda Batista, garantindo o seu maior sucesso de toda a carreira, mas foi também regravada com êxito pelo próprio autor, além de Elza Soares, Jamelão, Arrigo Barnabé, Joanna e muitos outros artistas. Tradicionalista, Lupicínio queixa-se de mais uma desilusão amorosa, desta vez acusando a mulher de traí-lo “com um companheiro”, para no momento seguinte fazer referência à importância do pai na sua vida, considerando seus ensinamentos como dos mais importantes, em especial um valor. “Me fazer passar esta vergonha com um companheiro, e a vergonha é a herança maior que meu pai me deixou”. Versos que se eternizaram no imaginário popular.
“Pra São João Decidir” (marcha, 1952) – Lupicínio Rodrigues
Uma das últimas músicas gravadas por Francisco Alves, “Pra São João Decidir”, é uma composição de Lupicínio Rodrigues do ano de 1952. Identificado com o samba-canção mais magoado, conhecido como “dor de cotovelo”, a criação junina de Lupicínio não foge ao estilo. Em forma de crônica, conta a decepção com o santo após perder aposta para o vizinho. “Eu tinha tanta confiança neste santo/ Que apostei um conto e tanto/ Que era eu que ia ganhar”, admite. Porém, com o raiar do dia, a foguetada do vizinho revela quem foi o vencedor da aposta. Regravada por Jair Rodrigues, Jamelão e Francisco Petrônio, ela ganhou uma versão irreverente de Arrigo Barnabé.
“Folha Morta” (samba-canção, 1953) – Ary Barroso
A boemia capturou Ary Barroso na primeira noite que ele chegou ao Rio de Janeiro. Acabou gastando todo o dinheiro ganho da herança de um tio. Por essas andanças noturnas fez amigos e parceiros, entre eles o compositor e cronista Antônio Maria, autor de “Ninguém me Ama”, grande sucesso de 1952 na voz de Nora Ney. De personalidade difícil e tempestuosa, Ary pediu para Maria cantar “Aquarela do Brasil, e ele assim o fez na íntegra. Em seguida disse para Antônio pedir que ele cantasse “Ninguém me Ama”.
Mesmo desconfiado, o autor do estouro atendeu, ao que Ary respondeu debochando: “Não sei!”. No ano seguinte, Dalva de Oliveira gravou em Londres, com a companhia de Roberto Inglez, “Folha Morta”, clássico samba-canção sobre as desventuras do protagonista, eternizada nos versos: “Oh Deus, como sou infeliz”. A mesma música gerou nova ironizada de Ary Barroso, que direcionou suas farpas para Jamelão quando o sambista errou a letra, e cantou “mostrar minhas penas” no lugar de “matar minhas penas”. A resposta de Ary veio sem perdão: “Jamelão, você nunca reparou que eu sou implume?”.
“Leviana” (samba, 1954) – Zé Kéti
Nascido no Rio de Janeiro, José Bispo Clementino dos Santos ganhou o apelido de uma fruta nativa da Índia, de coloração escura. Como Jamelão, ele se consagrou na música brasileira e viveu até os 95 anos. A voz poderosa se destacaria em sambas da Estação Primeira de Mangueira, e também com um repertório de primeira qualidade fornecido por bambas como Zé Kéti, Ary Barroso e Lupicínio Rodrigues. Jamelão manejou a força de sua voz entre o romantismo magoado da dor de cotovelo e a agitação dos sambas de avenida. Em 1954, ele provou essa vitalidade rítmica e interpretativa com a música “Leviana”, de um ainda pouco conhecido Zé Kéti, que conhecia seu primeiro hit.
“Cântico à Natureza (Primavera)” (samba, 1955) – Nelson Sargento e Alfredo Português
Nelson Sargento passou quatro anos tentando emplacar um samba-enredo para a Mangueira desfilar na avenida, até que, em 1955, conseguiu. Batizado por ele e o padrasto, Alfredo Português, de “Cântico à Natureza”, a canção ficaria mais conhecida como “Primavera”, cujos versos, sublinhados por uma delicada melodia, logo trazem à memória um tempo de bem-estar e esperança: “Oh primavera adorada/ Inspiradora de amores/ Oh primavera idolatrada/ Sublime estação das flores”. As outras estações do ano são também citadas na letra, mas é a primavera que se impõe, abrindo e fechando a canção. Lançada por Jamelão em 1955, ela chegou a ter o nome do cantor credenciado entre os compositores, o que era comum na época, mas foi escrita somente por Nelson e o padrasto. Ganhou regravações de Monarco, Chico César, Ivo Meireles e do próprio Nelson.
“Exaltação à Mangueira” (samba, 1956) – Enéas Brites e Aloísio da Costa
Assim como os estádios de futebol são conhecidos por apelidos propagados pelo povo, as escolas de samba têm os seus hinos informais. É este o caso de “Exaltação à Mangueira”, samba composto em 1956 por dois moradores do morro. Enéas Brites e Aloísio da Costa trabalhavam com cerâmica e, durante um intervalo para o almoço, compuseram o clássico que seria puxado na avenida por ninguém menos do que Jamelão, um dos grandes ícones da agremiação. Chico Buarque e Beth Carvalho também regravaram os versos, que exaltam: “Mangueira teu cenário é uma beleza/ Que a natureza criou…”.
“Ela Disse-me Assim” (samba-canção, 1959) – Lupicínio Rodrigues
“Ela Disse-me Assim” apresenta uma situação pouco usual na canção popular brasileira. Lançada em 1959, na voz poderosa de Jamelão, a música tem como mote um pedido suplicante da amante para o homem com quem ela está traindo o marido. “Ela disse-me assim/ Tenha pena de mim/ Vá embora/ Vais me prejudicar/ Ele pode chegar/ Está na hora”. As más línguas contam que toda a situação abordada foi vivida pelo próprio Lupicínio Rodrigues que, como de costume, se inspirava em sua vida para compor. O quiproquó se complica porque, a despeito da intuição da mulher, o marido os pega no flagra. A música ganhou regravações de Simone, Adriana Calcanhotto, Noite Ilustrada, e outros.
“Fechei a Porta” (samba, 1960) – Sebastião Mota e Ferreira dos Santos
Beth Carvalho, Elza Soares, Miltinho e Rosemary regravaram “Fechei a Porta”, um samba de Sebastião Mota e Ferreira dos Santos, mas quem teve a primazia de lança-lo, em 1960, foi o cantor Jamelão. A gravação original já mostrava todas as nuances desse fim-de-caso dolorido, com uma melodia envolvente, fácil de ser cantada e acompanhada pelo público em forma de coro. “Eu dei a ela todo o carinho/ E no entanto eu acabei sozinho”, lamentava o protagonista da canção. “Fechei a Porta” é um dos grandes sucessos da canção popular brasileira, que segue embalando plateias em diferentes locais.
“Eu Agora Sou Feliz” (samba de carnaval, 1963) – Jamelão e Mestre Gato
Um samba entusiasmado, pra cima, tomou as ruas cariocas em 1963, no Carnaval daquele ano. O ritmo animado reforça o título de “Eu Agora Sou Feliz”, uma parceria de Jamelão e Mestre Gato que segue sendo cantada pelos foliões. Tudo isso, no entanto, esconde, em parte, o ressentimento da letra, que retrata a alegria do protagonista ao encontrar um novo amor e desprezar o antigo. “Eu agora sou feliz/ Eu agora vivo em paz/ Me abandona por favor/ Porque eu tenho um novo amor/ E eu não lhe quero mais”, alfineta o eu-lírico. A música se tornou um dos grandes sucessos do repertório do cantor Jamelão.
“Matriz ou Filial” (samba-canção, 1964) – Lúcio Cardim
Pode-se dizer que o maior sucesso do compositor Lúcio Cardim é “Matriz ou Filial”, o suntuoso samba-canção lançado pela voz potente de Jamelão, em 1964, regravado com igual imponência por Nelson Gonçalves. Também pela voz de Jamelão, Lúcio obteve outro êxito, desta vez em parceria com Norberto Pereira. “Obra-Prima” foi lançada em 1969, e recebeu uma preciosa regravação de Nora Ney, já em 1972, que, com seu estilo característico, baseado no canto falado e a dicção perfeita, exibiu as nuanças dessa canção. “Levar você de mim/ É muito fácil/ Difícil é fazer você feliz”, introduz a abertura.
“Um Favor” (samba-canção, 1972) – Lupicínio Rodrigues
Uma das músicas mais sensíveis de Lupicínio Rodrigues foi lançada em 1972, pelo cantor Jamelão, que se habituou a interpretar o repertório do compositor gaúcho. “Um Favor” chamou a atenção de artistas dos mais variados matizes, recebendo versões de Marisa Gata Mansa, Gal Costa, Jards Macalé, Elymar Santos, Áurea Martins, Edith Veiga, dentre outros, sempre com muito sucesso.
“Piano na Mangueira” (samba, 1993) – Tom Jobim e Chico Buarque
A sofisticação da música de Tom Jobim aliada à poesia de Chico Buarque se pôs a serviço da mais celebrada escola de samba em canções: a Estação Primeira de Mangueira. Desse encontro nasceu “Piano na Mangueira”, lançada por Chico no álbum “Paratodos”, em 1993. Posteriormente, seria regravada pelo próprio Tom, Gal Costa, Leila Pinheiro, Zimbo Trio, Hamilton de Holanda, Jamelão e muitos outros. A letra destaca as figuras folclóricas do morro, como o malandro que se veste de branco e chapéu de palha, e a cabrocha que “pendura a saia no amanhecer da quarta-feira”. Para completar, sobe o piano!
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.