*por Raphael Vidigal Aroeira
“criar coisas em que não me reconheça – não como traição a um sonho anterior mas porque as coisas criadas são estranhas a todo sonho, anterior a todo passado” Wally Salomão
Na Itália do final dos anos 1970, o crime organizado vivia uma espécie de final do apogeu com as disputas internas pelo mercado cada vez mais lucrativo e beligerante do tráfico de drogas, que começou a degringolar com a entrada da heroína na jogada. É esse o pano de fundo de “O Traidor”, filme que tem como protagonista o lendário mafioso Tommaso Buscetta, famoso por ser o primeiro a delatar antigos companheiros e abrir uma fissura indelével na sangrenta batalha entre sicilianos e corleoneses. Outro fator curioso na trajetória do singular criminoso é ter se refugiado em duas ocasiões no Brasil, até ser preso.
Cabe ao experiente ator italiano Pierfrancesco Favino dar vida a Buscetta, o que ele faz exemplarmente, até se virando num português torto, nas cenas em que contracena com Maria Fernanda Cândido, a esposa brasileira do mafioso, que também dá conta do recado. O principal trunfo do longa-metragem, no entanto, é a direção do octogenário Marco Bellocchio, contemporâneo de gente como Godard e Pasolini. É graças a ela que o filme jamais descamba para o redutor gênero de ação, emprestando profundidade e conteúdo a cada cena e mantendo o espectador tensionado, por conta do clima de suspense ali na tela.
Cada cena é trabalhada como única, para que seu encaixe no filme como um todo amplie a sua impressão. Um bom exemplo dessa característica são os diálogos entre Buscetta e o juiz responsável pela execução de sua pena, que, dada a disposição em delatar, se transforma, realisticamente, em um aliado. A inserção simbólica também se fortalece na aparição de animais selvagens como um tigre branco enjaulado e uma hiena na mesma condição. Até as batidas cenas de tribunais que o cinema adora ganham contornos operísticos. Nada mais adequado para um drama à italiana, mas isso é só à primeira vista.
Nesse conjunto da obra, ao adotar o olhar do protagonista, Bellocchio consegue a proeza de manter certo distanciamento – ou, ao menos, de atingir essa aparência na tela –, eliminando derramamentos e poses sentimentalistas. É com crueza que ele filma as cenas mais chocantes e violentas. E quase com frieza que se abstém de julgar o seu protagonista. Esse julgamento, caberá ao espectador, parte ativa da engrenagem. Não deixa de ser menos digno de aplauso a capacidade de quebrar a expectativa, em um inteligente jogo cênico. No fim, se trata de entender os interesses em disputa, a tal adaptação humana.
O próprio título do longa-metragem é uma provocação ao espectador. Afinal de contas, quem é “O Traidor” da película? Bellocchio não oferece respostas fáceis, tampouco de bandeja. Há muitos traidores e cada um é traidor de si e dos outros em alguma medida, ainda que se julgue idôneo. Mas o diretor não entra totalmente na cabeça das personagens, não há essa análise psicológica. A natureza humana, escondida, indevassável, se revela, entre frestas, através de olhares, reações corporais, tiques-nervosos e até convulsões. Como os próprios animais selvagens, dos quais não compartilhamos a linguagem, mas que se guiam por instintos que são compreensíveis a quem possui dor e medo.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.