Lázaro Ramos ataca governo autoritário e violento em ‘Medida Provisória’

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Estou convencido de que toda literatura é propaganda. Mas nem toda propaganda é literatura. A revolução não se utiliza apenas de palavra de ordem, panfletos, cartazes ou murais, mas também de belas cartas. Precisamente porque são belas.” Lu Sin

Maiakovski, Glauber Rocha, os tropicalistas e os concretistas consideravam impossível propor uma arte revolucionária sem que a forma seguisse o mesmo caminho, o que os conduzia, em alguns momentos, a obras herméticas, fechadas ou de difícil assimilação pelo grande público. Esta não foi a opção feita por Lázaro Ramos, que estreia na direção com “Medida Provisória”, se tornando mais uma exceção do que a regra em um país onde os diretores e diretoras negras continuam sendo minoria, assim como em postos de comando em diferentes áreas neste país predominantemente preto, que relega sua população ao ostracismo e a condições inadequadas de vida, pra dizer o óbvio.

Pois bem, também obviamente há uma conotação política no filme de Lázaro Ramos, inspirado em uma peça teatral montada há dez anos, que ganhou impressionante atualidade desde que o governo Bolsonaro assumiu o poder. O alvo de toda a trama é um governo que se apropriou do Estado para colocar em prática a sua política autoritária, demagógica, violenta e preconceituosa, e Lázaro não se utiliza de meias-palavras para dizer a que veio, ao contrário, ele é bem explícito. Aí, talvez, esteja o grande problema do filme. De tanto reforçar o seu ponto de vista, o longa-metragem acaba soando repetitivo, com diálogos pouco inspirados, que se assumem discursivos. Fica claro que os méritos do filme são mais políticos do que artísticos. A intenção de alcance supera a ideia.

No roteiro, o absurdo acaba virando política de Estado. As pessoas de ascendência preta, chamadas de “melanina-acentuadas”, recebem o convite para se deportarem, voluntariamente, para a África, sua suposta terra de origem. Com o domínio do Congresso e aparelhando os órgãos de controle por meio da política institucional, o governo logo transforma a opção em obrigação, para a qual dispõe do uso da força para cumprir sua vontade, e coloca em cena a sua horda de fardados dispostos a acertar quem aparecer pela frente. A percepção de que a ideia seria risível é abordada no longa-metragem, que mostra o perigo de se tratar o absurdo com desprezo. Quando ele assume a forma de monstro, fica difícil contê-lo. As fraturas da desigualdade o alimentam.

Disposto a chegar ao maior número de pessoas possível, algo que tem conseguido, como comprovam os números da estreia, a narrativa se apropria do modelo novelesco, em que as personagens soam planas, sem profundidade e divididas entre heróis e vilões. Nesse sentido, Adriana Esteves é a caricatura do que há de pior no ser humano, e a realidade tem nos mostrado que isso é possível. Renata Sorrah também encarna uma madame pra lá de ridícula e mesquinha. Taís Araújo fica com a difícil missão de segurar os momentos dramáticos da película, carregados de emotividade e sentimentalismo. Alfred Enoch é um protagonista tão bonzinho que fica apagado. E Seu Jorge recebe a incumbência dos respiros cômicos, que caberiam melhor com o próprio Lázaro.

O roteiro se arrasta entre cenas de ação e discursos inflamados, com participações pontuais e simbólicas, como a do rapper Emicida. A questão é que, no Brasil de 2022, passamos, finalmente, a dar voz a problemas que sempre nos afligiram, e que temos cada vez mais urgência de retirá-los de debaixo do tapete. O racismo, a violência contra pretos e pobres está no centro dessa batalha por uma democracia que, de fato, mereça a alcunha. O nó a ser desfeito é saber se o cinema é a melhor ferramenta e como utilizá-la. De toda forma, é a arma que Lázaro Ramos tem na mão, e a usou como canhão de luz.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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