Herói da Inconfidência, Tiradentes foi tema de samba, marchinha e valsa

*por Raphael Vidigal Aroeira

“O momento decisivo da evolução humana é permanente. Por isso estão certos os movimentos revolucionários do espírito que declaram nulo tudo o que veio antes, pois nada ainda aconteceu.” Franz Kafka

Símbolo da insurgência por sua atuação destacada na Inconfidência Mineira – mártir e principal símbolo do movimento – o alferes Joaquim José da Silva Xavier teve sua trajetória retratada na música, no cinema, na literatura, no teatro e nas artes plásticas, dentre outras manifestações culturais igualmente populares, tanto que o apelido tornou-se, inclusive, nome de cidade mineira: Tiradentes. Especificamente na canção, o rebelde Tiradentes foi exaltado em forma de samba-enredo, usado em paródia carnavalesca e cantado com lirismo numa valsa cuja matriz principal é o chorinho. Seja como for, sua imagem permanece levando, para gerações a premência da liberdade, ainda que tardia.

“Exaltação a Tiradentes” (samba-enredo, 1949) – Mano Décio da Viola, Estanislau Silva e Penteado
“Exaltação a Tiradentes” nasceu de um sonho do sambista Mano Décio da Viola, que agregou aos versos recebidos durante a noite outros propostos por Estanislau Silva e Penteado. Antes da consagração, Décio e Silas de Oliveira haviam oferecido três sambas com o mesmo tema para a Escola de Samba do Império Serrano. Passada a frustração, a música foi cantada na avenida em 1949, mas só chegou ao disco em 1955, na gravação de Roberto Silva. Outros intérpretes não menos tarimbados a registraram posteriormente, dentre os quais Jorge Goulart com seu vozeirão e a irrepreensível Elis Regina, além de Maria Creuza, Cauby Peixoto e Mestre Marçal. Pioneiro, como o seu inspirador, é considerado o primeiro samba-enredo a ultrapassar os limites carnavalescos.

“Baiano Não É Palhaço” (baião, 1962) – Gordurinha
Waldeck Artur de Macedo, mais conhecido como Gordurinha, nasceu no dia 10 de agosto de 1922, em Salvador, e morreu no dia 16 de janeiro de 1969, aos 46 anos, vítima de uma overdose de morfina. Gordurinha ganhou o apelido quando trabalhava no Circo de Joval Rios, que, ao vê-lo sem camisa, resolveu tirar um sarro com sua magreza. Entre os grandes sucessos da carreira de Gordurinha estão “Chiclete com Banana”, “Súplica Cearense” e “Orora Analfabeta”. Outra música de menor repercussão é o baião “Baiano Não É Palhaço”, de 1962, repleto de preconceitos e bom-humor, que contesta as violências contra os baianos e transforma até Juscelino Kubistchek em filho da boa terra. Já Tiradentes aparece na citação pejorativa à afamada praça no Rio de Janeiro.

“Tiradentes” (canção, 1965) – Ary Toledo e Chico de Assis
Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, e contando com a direção de Augusto Boal, “Opinião” tornou-se um dos espetáculos mais bem sucedidos do teatro brasileiro, e consagrou definitivamente o sambista e poeta do seu povo Zé Kéti, que interpretava mais uma vez o malandro dos morros cariocas, e atuava ainda ao lado de Nara Leão no papel da mocinha da zona sul e João do Vale, representado a força do nordeste. No espetáculo, também constava a canção “Tiradentes”, parceria do humorista Ary Toledo com Chico de Assis. Na voz de Nara, a música narra a trajetória heroica do alferes revolucionário e ainda a degradação de seu traidor.

“História da Liberdade no Brasil” (samba-enredo, 1967) – Aurinho da Ilha
Martinho da Vila exibe trajetória singular na música brasileira por ter, no meio do samba – a mais tradicional manifestação popular brasileira –, costurado estilo facilmente identificado à sua pessoa, tanto na maneira de viver como na de pronunciar-se. Alterando o andamento do ritmo, puxando-o “para trás”, em suas próprias palavras, concedeu ao gênero toda a malemolência e ginga características do povo, trazidas de Angola por seus ancestrais. Com esta mesma calma, Martinho jamais deixou de posicionar-se em relação às suas crenças musicais, religiosas e, consequentemente, políticas. Ele regravou, por exemplo, o samba-enredo “História da Liberdade no Brasil”, de Aurinho da Ilha, que o Salgueiro desfilou na avenida em 1967, e que também cita o Tiradentes.

“Samba do Crioulo Doido” (samba, 1968) – Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta
Sérgio Porto, reconhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, era homem de inúmeros talentos. Radialista, cronista e compositor, conheceu o sucesso com esta última atividade, já no final da vida. Em 1968, poucos meses antes de falecer, vítima de um enfarto aos 45 anos, Stanislaw criou o “Samba do Crioulo Doido”, que, além de expressão popular, transformou-se em canção de sucesso e show protagonizado por ele e as meninas do Quarteto em Cy, à ocasião Cymíramis, Cyntia e Cyregina, sendo as duas últimas codinomes de Sônia Ferreira e Regina Werneck, respectivamente, e a remanescente Cyva. A irreverente introdução dessa sátira é recitada pelo próprio autor, Sérgio Porto, que une personagens históricos no romance entre Chica da Silva e Tiradentes.

“Os Inconfidentes” (canção, 1968) – Chico Buarque
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda – o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais. Em 1968, diante dos horrores da ditadura militar, compôs “Os Inconfidentes”, que ganhou citação de versos de Cecília Meireles e gravação de Nara Leão, exaltando a figura de Tirantes. Chico a regravou em 1970.

“Independência ou Morte” (samba-enredo, 1971) – Zé Di
Em 1974, o cantor e compositor Zé Di levou o Salgueiro a ser campeão do Carnaval no embalo de seu samba-enredo “O Rei da França na Ilha da Assombração”. A performance contou com outra revelação, a do carnavalesco Joãosinho Trinta, responsável pelo desfile da escola campeã. Antes, porém, Zé Di já havia feito barulho com outro samba-enredo marcante. “Independência ou Morte”, de 1971, prestava uma reverência aos heróis que morreram pelo país, citando nominalmente o mártir da Inconfidência Mineira: “A morte de Tiradentes não foi em vão…”. A canção ainda fazia referência ao sacrifício dos Andradas.

“Perisséia” (vanguarda, 2000) – Tom Zé e Capinam
O mais ácido dos tropicalistas, como cansaram de defini-lo, não se enquadra. “Só posso ser útil se eu apenas oferecer aberturas”, explicou Tom Zé, melhor que ninguém e do que qualquer um. A performance do artista guarda íntima ligação com o discurso. “Cada passo na arte é sobre o fio da navalha, entre o ridículo e o brilhante”, definiu certa vez. Baiano de Irará, ele se uniu ao conterrâneo Capinam para criar a “Perisséia”, uma espécie de odisseia de Peri, o índio do romance “O Guarani”, de José de Alencar. A música, uma autêntica peça de vanguarda, foi lançada no álbum “Jogos de Armar” (2000). Lá pelas tantas, Tom Zé cita Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira e eterno rebelde.

“Samba Enredo” (vanguarda, 2010) – Itamar Assumpção
Para o crítico musical Hugo Sukman, “a música de Itamar Assumpção explode originalidade”. “Ele revela um mundo que, por incrível que pareça, dada a riqueza da música brasileira, não havia sido nos mostrado”, aponta. Segundo Sukman, a produção de Itamar se fia nas experiências do “negro urbano, de classe média”. “Ele faz isso dentro da tradição da canção brasileira”, analisa.

A denúncia ao racismo, que surge em “Cabelo Duro”, “Pretobras” e outras, é “feita com altivez”. “Itamar é a voz de uma população que ascendeu socialmente e chegou à universidade. Ele fala de igual pra igual. Nesse sentido, o comparo ao Gilberto Gil”. Lançada apenas após sua morte, a canção “Samba Enredo” aparece no álbum “Pretobrás III: Devia Ser Proibido”, de 2010, e mantém o espírito de vanguarda que conduziu toda a carreira de Itamar. Em determinado verso, ele cita a folclórica Praça Tiradentes, lá no Rio de Janeiro.

“Tiradentes, Pétala da Inconfidência” (seresta, 2011) – Chico Pottier
Cantor, compositor e artista plástico, Chico Pottier é um desses mineiros com inúmeros talentos e, como não poderia deixar de ser, também prestou sua homenagem a um dos principais ícones do Estado. “Tiradentes, Pétala da Inconfidência” é uma seresta lançada em 2011, pela cantora Sônia Katherine, esposa do compositor, que empresta todo o lirismo adequado à letra. A canção se concentra nos aspectos da cidade história para prestar tributo a seu inspirador. “Canto que mais parece a prece do alferes…”, dizem os seus versos.

“Minas ao Luar” (choro-valsa, 2012) – Waldir Silva, Raphael Vidigal e André Figueiredo
Choro lento, ao ritmo de uma valsa, “Minas ao Luar” foi composta pelo cavaquinhista mineiro Waldir Silva na década de 1970 para servir de prefixo musical ao evento que levava apresentações pelo interior de Minas. Waldir não só participou da primeira edição do projeto de serenatas como dividiu o palco com ninguém menos do que Juscelino Kubistchek, figura ilustre da política brasileira que ocupou o cargo de presidente do país.

Muitos anos depois, o instrumentista apresentou suas composições autorais para que o jornalista Raphael Vidigal colocasse letras, fato que aconteceu em 2012. Um ano depois, o músico faleceria, mas a iniciativa que começou ali culminou com o lançamento do disco “Waldir Silva em Letra & Música”, em 2016. Na canção, composta com André Figueiredo, a cidade com o nome de Tiradentes aparece.

“Cuidado Com o Pescoço” (marchinha, 2017) – Raphael Vidigal, Ronaldo Ferreira e André Figueiredo
Quando Cristo reuniu seus apóstolos para celebrar a Santa Ceia disse que seria traído por um deles, de acordo com as escrituras bíblicas. Joaquim José da Silva Xavier, também conhecido como o alferes Tiradentes não tinha a mesma consciência, tampouco o imperador romano Júlio César, apunhalado pelas costas pelo filho adotivo Brutus. De acordo com lógica vigente há quem diga que quem votou em Cristo votou em Judas, e quem votou em Tiradentes também votou em Joaquim Silvério, e assim por diante.

Fato é que a história não costuma ser muito simpática a tais personagens, não por acaso malhadas em celebrações até hoje típicas nas cidades. Michel Temer, talvez, tenha calculado mal o peso do tempo, embotado pela fricção momentânea que a estimativa de poder é capaz de causar. Em cima agora, de baixo para sempre. Que a lição de Tiradentes permaneça com essa marchinha.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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