De Zé Ramalho a Milton Nascimento: As melhores músicas para a Páscoa

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
(…) Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.” Maiakovski

Para além das adaptações de mercado, o sentido da Páscoa, principalmente em sua tradição cristã e religiosa, está ligado ao renascimento, ao recomeço e, principalmente, à ressurreição de Cristo, três dias depois da sua crucificação. No calendário católico, a Páscoa, celebrada aos domingos, é precedida pela Semana Santa, a Sexta-Feira da Paixão e o Sábado de Aleluia, repercutindo o martírio do filho de Deus e sua apoteótica consagração.

Muito representada nas artes plásticas através de pintores e escultores, principalmente no período da Renascença, a Páscoa também encontra ressonância na música brasileira. Alguns de nossos mais celebrados compositores trataram de ressaltar a continuidade da vida e seu ciclo infinito em canções populares. Listamos abaixo algumas das mais significativas, pela voz pelo verso de nossos artistas.

“Volta por Cima” (samba-canção, 1962) – Paulo Vanzolini
“Samba é que nem osso, uma vez que tá na rua, vai na boca de qualquer cachorro”, riu-se Paulo Vanzolini, quando perguntado por Zé Henrique o que fazer com a música que este havia ganhado, e que, por briga com a gravadora, não poderia gravá-la. Foi então que “Volta por Cima” encontrou Noite Ilustrada, e por três semanas consecutivas angariou o primeiro lugar nas paradas de sucesso do ano de 1962.

Notícia que seu autor só veio a ter quando voltou de sua viagem à Amazônia, entretido com os afazeres da zoologia, e ouviu no rádio a sua exaltação para aquilo que ficaria conhecido no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como “ato de superar uma situação difícil”. Para Vanzolini, a parte mais importante da letra não está no título, mas no verso “reconhece a queda…”.

“Apesar de Você” (samba, 1970) – Chico Buarque
Exilado na Itália, Chico Buarque retornou ao Brasil em 1970, após mais de um ano, incentivado pelo dono de sua gravadora, André Midani, que garantia a melhora da situação. Chico se decepcionou ao constatar o verdadeiro cenário. Para expressar sua indignação e esperança, compôs o samba “Apesar de Você”, no qual mandava recados diretos, como: “Você vai pagar e é dobrado/ Cada lágrima rolada/ Nesse meu penar”.

Incrivelmente, os censores tardaram a captar a mensagem, e caíram na ladainha duma “briga de amantes”. Quando a canção estourou nas rádios, a população, bem mais esperta e atenta, logo a tomou nos braços e entoou em toda parte. A música foi lançada por Clara Nunes em 1971, e, proibida, voltou a ser gravada apenas em 1978, no novo LP de Chico Buarque.

“Menina, Amanhã de Manhã” (tropicália, 1972) – Tom Zé e Antônio Perna
Inspirado no slogan da ditadura militar, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, o irreverente Tom Zé compôs, em 1972, ao lado do parceiro Antônio Perna, “Menina, Amanhã de Manhã” dentro do espírito tropicalista que sempre o guiou. A sagacidade do baiano de Irará consistia em combater o nefasto regime lançando mão de ironias sutis e tendo, como arma, justamente a felicidade, valor sufocado por torturas e assassinatos institucionalizados pelo Estado.

Na versão de Tom Zé, a felicidade oferecida pela ditadura era enfiada goela abaixo dos cidadãos, imposta de maneira pasteurizada e falsa. Dada a amplitude de interpretações sobre composições abertas como as do baiano, a canção ganhou sentido oposto ao cair na boca do povo e com o decorrer dos anos, virando mantra de esperança.

“Juízo Final” (samba, 1973) – Nelson Cavaquinho e Élcio Soares
O reconhecimento à obra de Nelson Cavaquinho começou a se dar de forma mais intensa na década de 60, a partir das gravações de Ciro Monteiro, Nara Leão e Elizeth Cardoso. Em 1970, ele próprio ganhou a oportunidade de gravar suas músicas em um disco que levava seu nome, e, em 1973, teve o derradeiro registro solo, onde cantava pela primeira vez ao lado do eterno parceiro Guilherme de Brito.

Nelson ainda tocava pela primeira vez em disco o instrumento do apelido. Já com o nome bastante consolidado no mercado, Clara Nunes lançou no álbum “Claridade”, de 1975, a música esperançosa de Nelson que decretava a chegada do sol no horizonte, a vitória do bem sobre o mal, a luz a brilhar nos corações. O amor será eterno, era o seu “Juízo Final”, sempre atual.

“Canta, Canta, Minha Gente” (samba, 1974) – Martinho da Vila
Bamba da Vila Isabel, reduto de outro sambista histórico da música brasileira, o pioneiro Noel Rosa, o pacato e sensível Martinho da Vila levou seu estilo de vida para as próprias composições, praticamente indissociáveis de seu autor. Em 1974, ele já era um sambista considerado quando colocou na praça o LP “Canta, Canta, Minha Gente”.

A faixa-título era uma ode à capacidade de resiliência do povo brasileiro que, àquela altura, enfrentava o pior período da tenebrosa ditadura militar que assolou o país durante vinte anos. Com ritmo sincopado e cadenciado, os versos conclamavam a uma alegria que deveria se impor aos poucos: “Canta, canta, minha gente/ Deixa a tristeza pra lá/ Canta forte, canta alto/ Que a vida vai melhorar”. O antídoto para aquela depressão jazia no samba.

“Tente Outra Vez” (balada, 1975) – Raul Seixas, Paulo Coelho e Marcelo Motta
Raul Seixas sempre foi um artista místico, mas essa característica atingiu seu pico quando do encontro com Paulo Coelho. Foi ao lado dele e de Marcelo Motta que o “maluco beleza” compôs um dos hinos mais emblemáticos da carreira, um louvor à fé e à não desistência. “Tente Outra Vez”, balada de 1975, lançada no disco “NOVO AEON” sublinha, sobretudo, a força de continuidade inerente à vida, presente na natureza e, por conseguinte, à condição do homem.

Foi com versos embebidos numa melodia de teor religioso que Raul, cuja canção é, ainda hoje, muitas vezes ligada ao universo da autoajuda, criou uma das músicas mais espirituosas de seu repertório, em todos os sentidos. “Tente Outra Vez” já diz por si só, no título, o recado da vida. Foi regravada por Sandra de Sá, Barão Vermelho, Chitãozinho & Xororó, e etc.

“O Cio da Terra” (clube da esquina, 1977) – Chico Buarque e Milton Nascimento
“O Cio da Terra” é uma canção de Chico Buarque e Milton Nascimento, em que se acentuam as características do “Clube da Esquina”, fortemente marcada pelo barroquismo da música mineira e atenta às transformações harmônicas vindas do exterior, em especial os “Beatles”.

Lançada em 1977 para integrar o compacto “Primeiro de Maio”, que celebrava o dia do trabalhador e fazia coro ao movimento sindical do ABC paulista liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, futuro presidente do Brasil, a música consegue ir além da abordagem ao ofício agrário, por mais que inspirada no canto das mulheres camponesas que colhiam algodão e eram observadas por Milton. O que “O Cio da Terra” conta é o eterno ciclo de renascimento e transformação, do trigo em pão, da cana em mel, e da terra em chão, como na vida do homem, feita de perdas e ganhos. A música foi regravada por Mercedes Sosa, Pena Branca & Xavantinho, e outros.

“Amanhã” (balada, 1977) – Guilherme Arantes
Em 1977, Guilherme Arantes compôs uma balada de espírito hippie, mas, sobretudo, um hino de esperança. O próprio título já entregava a proposta. “Amanhã” retrata a incansável luta, a busca eterna por um destino melhor e mais confortável do que o oferecido pelo momento presente, tudo por uma lente otimista, leve e confiante.

“Amanhã, será um lindo dia/ Da mais louca alegria/ Que se possa imaginar”, relata Guilherme Arantes nos versos da canção, lançada por ele mesmo no álbum “Ronda Noturna”. A música foi regravada por Caetano Veloso, em um registro impecável, acompanhado apenas por seu violão. “Amanhã, a luminosidade/ Alheia a qualquer vontade/ Há de imperar! Há de imperar!”. Curiosamente, a letra nasceu do fim dum relacionamento amoroso.

“Pelo Vinho e Pelo Pão” (balada, 1978) – Zé Ramalho
O interesse de Zé Ramalho por forças ocultas e sobrenaturais e o misticismo que envolve grande parte de sua obra recebeu uma atenção especial em seu segundo disco de carreira. Além do batismo, “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu”, ainda trazia na capa a atriz Xuxa Lopes no papel de vampira que tenta Deus e o personagem Zé do Caixão, vivido por José Mojica Marins, como diabo. O artista plástico Hélio Oiticica também comparecia no encarte do disco. Faixas como “Pelo Vinho e Pelo Pão” e “Jardim das Acácias”, com participação de Pepeu Gomes, retomavam essas temáticas espirituais e religiosas. Em “Pelo Vinho e Pelo Pão” a participação era da cantora, e ex-mulher, Amelinha.

“Começar de Novo” (balada, 1979) – Ivan Lins e Vítor Martins
Uma música de Ivan Lins e Vítor Martins provocou uma mudança no comportamento artístico de Maria Bethânia, ironicamente porque ela não a gravou. Em 1979, a dupla de compositores foi convocada a criar uma canção para a série “Malu Mulher”, da Rede Globo, estrelada por Regina Duarte.

Oferecida a Maria Bethânia, acabou recusada porque ela já havia fechado o repertório do novo disco, e “não podia se arriscar à tentação de ter que muda-lo”. Nana Caymmi, e Elis Regina, também estavam na mesma condição. Assim, “Começar de Novo” foi parar na voz de Simone, que a consagrou. A partir de então, Bethânia garantiu que jamais consideraria estar com um repertório totalmente fechado. No mesmo ano, Ivan Lins também regravou o hit.

“O Amor” (tropicália, 1981) – Vladimir Maiakovski, Ney Costa Santos e Caetano Veloso
O poeta russo Vladimir Maiakovski foi a inspiração para Caetano Veloso e Ney Costa Santos escreverem, a partir dos versos de “O Amor”, fragmento de “A Propósito Disto”, a canção intitulada com o mesmo nome da obra do autor original. Lançada por Gal Costa em 1981, no álbum e espetáculo “Fantasia”, segue, como se observa, os princípios do movimento tropicalista, de conferir um olhar nacional à luneta lançada para o mundo.

De rara sensibilidade, música e poesia receberam interpretação coerente e emocionante por parte da diva do movimento capitaneado por Gil, Tom Zé, o próprio Caetano, Hélio Oiticica, e outros. Entre o que é dito de maior impacto destaca-se o refrão, precedido por “quero acabar de viver o que me cabe, minha vida para que não mais existam amores servis”, até chegar ao auge “ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco (…) e o pai seja pelo menos o Universo, e a mãe seja no mínimo a Terra”. O recado está dado.

“Mais Uma Vez” (balada, 1987) – Renato Russo e Flávio Venturini
Um encontro casual entre Renato Russo e Flávio Venturini nos estúdios da EMI-Odeon, em 1986, gerou uma das mais bonitas canções brasileiras sobre esperança. Os respectivos líderes da Legião Urbana e do 14 Bis estavam ocupados com as gravações dos álbuns “Dois” e “Sete” quando se encontraram nos corredores.

Venturini improvisava uma melodia e Renato propôs escrever a letra, com a ideia de uma composição que falasse que o sol voltaria a brilhar após a tempestade. A espera valeu a pena. O resultado, três meses depois, foi a gravação em dueto de “Mais Uma Vez”, balada lançada pelo 14 Bis, em 1987. Anos depois, uma versão apenas com Renato, editada no álbum póstumo “Presente”, estourou em todo o país e virou o tema de “Mulheres Apaixonadas”.

“A Cura” (pop, 1988) – Lulu Santos
Na década de 1980, o mundo vivenciava uma de suas mais trágicas epidemias. O vírus da Aids tirava sorrateiramente a vida de milhares de jovens saudáveis, acostumados a colocar em prática uma sexualidade liberta de tabus. No início, convencionou-se dizer que a doença atingia apenas pessoas homossexuais, o que seria desmentido pela ciência com o tempo.

Lulu Santos, como tantos outros, foi um dos que perdeu diversos amigos para o vírus, como o cantor Cazuza e o ator Lauro Corona, mortos no auge do sucesso. Diante daquela situação limite, ele decidiu usar a arte como forma de superação. Compôs, em 1988, “A Cura”, de pegada pop, lançada no álbum “Toda Forma de Amor”, cuja capa original, com o casal Barbie e Ken pelados numa cama, acabou censurada.

“Enquanto Houver Sol” (balada, 2004) – Sérgio Britto
Um ano antes do lançamento de “Enquanto Houver Sol”, a banda Titãs figurou no ranking das músicas mais tocadas no país com “Epitáfio”, cuja temática reflexiva acerca do tempo e da existência se assemelhava ao próximo sucesso. Composta por Sérgio Britto e gravada em 2004, a balada logo entrou na trilha da novela “Celebridade”, protagonizada por Malu Mader, esposa de Tony Bellotto.

O próprio Britto admite que esse tipo de canção, executada ao piano, por muito tempo “não teve vez no Titãs”. Quando chegou a sua hora, ela saiu arrasando quarteirões. “Quando não houver saída/ Quando não houver mais solução/ Ainda há de ver saída/ Nenhuma ideia vale uma vida”, determinava o autor nos versos. Já com o conjunto reduzido a três, a música foi regravada em acústico em 2020.

“Serpente” (rock, 2014) – Pitty
Com uma imagem que alude ao ouroboros, símbolo místico que representa uma serpente que devora a própria cauda, a cantora Pitty colocou na praça, em 2014, o single “Serpente”. A ideia era refletir sobre o conceito de eterno retorno elaborado pelo filósofo alemão Nietzsche, e depositar na passagem do tempo as fichas para a mudança de expectativa, ou seja, a noção de que a esperança se impõe pela própria natureza da existência. “Chega dessa pele/ É hora de trocar/ Por baixo ainda é serpente/ E devora a cauda pra recomeçar”, destaca a baiana. A letra, de pegada espiritualista, ainda se aproxima de outras manifestações religiosas, como candomblé e hinduísmo. No mesmo ano, o rock ganhou um videoclipe em formato de curta-metragem, em que Pitty reafirma sua disposição.

“Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal
A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho. Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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