*por Raphael Vidigal Aroeira
“Então descortinou para além da blusa os seus seios doirados e rijos. Susteve a respiração. Os olhos quase lhe saltaram da órbita. Acariciou-os com ardor àqueles seios de virgem.” Orlanda Amarílis
A violência é o dado comum que, de acordo com o filósofo francês Georges Bataille (1897-1962), marca tanto o erotismo quanto a morte, numa sutil mediação feita pela vida, algo que ele define, poeticamente, na sentença em que aproxima tais paradoxos: “O erotismo é, acredito, a aprovação da vida até na morte” (BATAILLE, 2015, p.14). E, mais adiante, concebe esse mesmo erotismo como “o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão” (BATAILLE, 2014, p.55).
A essência dessas concepções atende à comparação que pretendemos realizar entre o miniconto “Ocorrência de Parto”, publicado pelo escritor brasileiro Fernando Bonassi em 2001, no livro Passaporte, e o trecho que destacamos do extenso conto “A Casa dos Mastros”, que a escritora cabo-verdiana Orlanda Amarílis trouxe a lume no ano de 1983, como parte da coletânea Ilhéu dos Pássaros. Notadas as diferenças de tempo, espaço e geopolítica, vamos às similaridades, a começar pela língua portuguesa utilizada pelos autores, conscientes das especificidades que o idioma adquiriu no Brasil e na África.
Como já dito, a violência se faz presente em ambas as “cenas”, como intencionamos denominá-las, de forte apelo estético e visual, colocando em prática uma das seis propostas que o teórico italiano Italo Calvino (1923-1985) preconizou para o novo milênio, em seu famoso ensaio jamais encerrado e interrompido com a morte do autor. “A palavra associa o traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil passarela improvisada sobre o abismo” (CALVINO, 1990, p.127) escreveu, ao nada distraidamente associar “desejo” e “temor”, eixos de significados que conduzem nossa interpretação das obras em destaque.
Tal percepção é corroborada pelo artigo publicado por Arthur Almeida Passos no site Palavra-Objeto, intitulado Aspectos Estilísticos em “Ocorrência de Parto”, de Fernando Bonassi, em que o autor recorre à referida visualidade imagética para analisar “a fotografia da narrativa (…) mais saliente pelo recurso constante à frase nominal, que, prescindindo do uso de verbos que não estejam nas formas do infinitivo, do particípio e do gerúndio, tende a tornar estático aquilo a que se refere, a exemplo do que se dá num retrato”. (PASSOS, 2020, site Palavra-Objeto)
Desenvolvimento
Em “Ocorrência de Parto”, Bonassi não gasta mais do que sete parágrafos comprimidos num único bloco de orações enxutas, como se fossem tijolos cimentados em uma construção, para nos apresentar a cena que ele reporta com indiferença propositadamente disfarçada, encenada. No decorrer do texto, ficará evidente o comprometimento do autor com a violência ali propagada e a indiferença geral que ele, em verdade, denuncia.
O tom de denúncia também comparece na narrativa de Amarílis, embora por outros caminhos tortuosos, e, no caso da cena enfocada, talvez seja mais pertinente pensar na ideia de “flagra”, onde a própria protagonista constata-se no centro de uma revelação que a assusta, lembrando-nos a perda de controle, o arrebatamento e a transgressão que o erotismo impõe, como defende Bataille: “Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco. Sem dúvida, não se trata de uma situação privilegiada. Mas a perda voluntária implicada no erotismo é flagrante: ninguém pode duvidar dela” (BATAILLE, 2014, p.55).
Acontece que, no caso das obras eleitas para análise, torna-se preponderante ressalvar a questão da vontade, pois o abuso surge como perene temática. Referendado pelo filósofo francês, a conclusão de Pedro Antônio Gregorio de Araujo no artigo Em busca da continuidade perdida: erotismo e morte em Georges Bataille é que “tanto o erotismo quanto a morte são violentos por natureza”;
(…) no entanto, o primeiro acontece de modo apenas temporário, ao passo que a segunda é para sempre. O erotismo coloca o indivíduo em jogo, fazendo com que a cada momento ele deseje mais e, portanto, perca-se mais, sentindo a nostalgia pela continuidade, por causa do contato com ela durante esse ato. (ARAUJO, 2020, p.2)
Isso posto, o que a elaboração estética dos contos propicia é, a partir da violência como uma característica inerente ao erotismo, trabalhar a ambiguidade que coloca em fricção dor e desejo; morte e vida; prazer e sofrimento; abuso e deleite. Por exemplo, em “Ocorrência de Parto” a ambiguidade só é possível porque tanto o nascimento quanto o estupro são atos marcados pela violência, seja pela erupção do ser familiar que irrompe do interior da mãe, seja pela introdução de um ser estranho ao corpo que não autorizou essa invasão.
Trocando em miúdos, a violência é a característica comum que permite ao autor manejar as palavras e seu rol de possibilidades semânticas e de sintaxe – instrumentos do texto literário – com habilidade, a ponto de acender no leitor a dúvida sobre o que se passa. A “perna aberta” da “garota arfando” que nos introduz ao texto de Bonassi não poderia ser mais expressiva nesse sentido. Temos o corpo violentado por um gesto ou ação que desestabiliza suas reações, e, assim, o coloca a nu, exposto, descontrolado, espasmódico.
Ao estudar o livro O Erotismo, de Bataille, que chegou ao Brasil somente em 2004, Ciro Marcondes Filho compreende o erotismo como um daqueles “estados chamados de extremo possível do homem”. “São situações de êxtase, arrebatamento, delírio, (…) transes vivenciados em momentos livres de amarras, nus” (FILHO, 2008, p.210). É o que detectamos na experiência de Violete, protagonista de “A Casa dos Mastros”, que se inicia com um sentimento de temor exacerbado. “Tomou-se de pânico. Logo que pôde, escapuliu-se e foi direita à igreja” (AMARÍLIS, 1989, p.47), relata a narradora.
A busca intuitiva da personagem para apaziguar o pânico que a acomete – em razão da iminência da morte da madrasta que ela espancou com violência –, é o misticismo encarnado pela igreja, o que não deixa de constituir uma ironia diante dos olhos de Bataille, que faz questão de diferenciar o erotismo da experiência mística, embora aponte no duo “um aspecto da vida interior, se quisermos, da vida religiosa do homem”, advogando que, mesmo que procure “incessantemente no exterior um objeto de desejo (…) o que está em jogo é muitas vezes um aspecto inapreensível”, que se difere “da sexualidade animal justamente por colocar em questão a vida interior”.
Entendo por experiência interior aquilo que habitualmente se nomeia experiência mística: os estados de êxtase, de arrebatamento ou ao menos de emoção meditada. Mas penso menos na experiência confessional, a que os místicos se ativeram até aqui, do que numa experiência nua, livre de amarras, e mesmo de origem, que a prendam a qualquer confissão que seja. É por isso que não gosto da palavra ‘mística’. (BATAILLE, 2016, p.33)
A ironia volta à baila pela rejeição de Bataille à ideia de “experiência confessional”, que é justamente o que Violete procura para acalmar seu dilema interno, reacendendo a ambiguidade que pauta o texto de Amarílis, sobretudo nesse trecho da narrativa.
Ajoelhou-se junto ao confessionário e esperou. Padre André não viera ainda. A cabeça descaída sobre a rede, ela pensava no seu crime. Não encontrava perdão para tão tresloucado acto. Perdão de quê, afinal? Estava desesperada perdera a cabeça. Ela tinha a obrigação de defender a madrasta e quase acabara por a matar. Não compreendia a cegueira do seu desatino. Teria mesmo obrigação de defender intrusos, sombras desgrenhadas de espectros, bichas de-sete-cabeças? (AMARÍLIS, 1989, p.47)
O padre se demora, e Violete, exausta dos pensamentos que a atormentaram no meio da noite, reclina a cabeça e deita “as mãos sobre o encosto polido do confessionário”. À imagem de limpidez do objeto sagrado, contrasta-se a figura humana, quando Violete se assusta “ao pressentir a sombra da batina do padre André a seu lado”.
A primeira descrição do religioso é de um ser obscuro e sombrio, o que justifica que Violete comece a tremer ante sua presença. Novamente, o tremor surge como uma condição que comporta interpretações ambíguas acerca das reações do corpo, que arfa no caso da garota de “perna aberta” do conto de Bonassi, e começa a “tremer” na narrativa de Amarílis. Contudo, é sempre o corpo inegavelmente descontrolado, espasmódico, incontido, em ebulição por uma violência que o domina e arrebata sua consciência para um estado próprio.
Em O Corpo Violado: Silenciamento, Dessubjetivação e Mediação Feminina na Escrita de Orlanda Amarílis, Terezinha Taborda Moreira nos chama atenção para o próprio simbolismo contido no nome de Violete e suas interpretações possíveis, que reforçam o aspecto de ambiguidade do conto.
Na perspectiva que estamos adotando para a leitura da narrativa, é significativo o nome da personagem central, Violete, devido às variações semânticas que ele apresenta. A etimologia do vocábulo aponta para o nome comum a plantas do gênero Viola, da família das violáceas, ervas nativas de regiões temperadas, de flores vistosas, muito cultivadas para extração de essência de perfumaria e ornamentação. Associa-se a esse significado a cor da flor, o que faz com que violeta também remeta à coloração arroxeada. No nome Violete, o vocábulo latino Viola vem seguido do sufixo ete, formando, no francês, um diminutivo que significaria “pequena violeta”. Mas a etimologia aponta, também, para o verbo violar, do qual deriva o adjetivo violentus/violento. (…) Por isso, o verbo violar porta uma série de significados associados a violência: forçar, abusar, estuprar, violentar, desrespeitar, profanar, devassar, arrombar, etc. Todos esses significados se expressam, no corpo, também por meio da cor arroxeada. (MOREIRA, 2023, p.118)
A violação a que Moreira se refere ao analisar “A Casa dos Mastros” vai se tornando explícita à medida em que as imagens estáticas, e tanto mais perenes, de “Ocorrência de Parto” se amontoam, conservando as nuances que o autor utiliza para manter o fio da tensão narrativa bastante estendido.
Um pé no teto. Outro enroscado no volante. PX nem aí. Costela riscando gomos de barriga. Vestido no pescoço. Em plena viatura. Nem 14 anos. Sem calcinha. Unhas ralando grade do chiqueirinho. Bolsa aberta. Documento e batom esparramados. Todos molhados. (BONASSI, 2001, p.12)
O insólito da situação leva à progressiva perda da naturalidade de algo com o qual estamos acostumados e que poderia até soar inofensivo, como se o escritor pingasse pequenas gotas de colírio em nossos olhos para nos obrigar a enxergar melhor. O líquido não apenas embaça o ambiente no primeiro contato, como gera o incômodo que nos induz a um gesto de repulsa e contração do corpo. Porém, como é inevitável abrir os olhos após o instante de desconforto, teremos um cenário mais nítido à nossa frente, que tampouco suaviza a realidade, mas, ao contrário, a torna mais aparente e menos dada a mitificações escrupulosas.
O título que nos informava da ocorrência de um parto agora nos chega à boca do estômago com cheiro e gosto nauseabundo de engodo. Imaginar uma garota a parir com “um pé no teto (…) outro enroscado no volante” e uma “costela riscando gomos de barriga” enquanto o rádio da polícia (será só ele?), que atende pela sigla PX, não está “nem aí”, torna-se inconcebível, inclusive pela secura com que o absurdo nos atinge, resultado da estratégia narrativa do autor.
Afinal, é do “inconcebível”, daquilo que ultrapassa as perspectivas estipuladas pela razão humana que erotismo e morte se constituem, mediados pela violência, e, no caso dos contos analisados, de uma segunda mediação que impõe outra camada a essas intrincadas relações de contraste: a estética.
Terezinha Taborda Moreira fala em “descrição lasciva, libidinosa, sensual e desregrada que a narradora faz especialmente das personagens masculinas” em “A Casa dos Mastros” (MOREIRA, 2023, p.118). O excesso de adjetivação revela, justamente, o labor estético de Amarílis, que, no caso de Bonassi, adota outra via, igualmente estética, de enxugar ao máximo suas definições para angariar o impacto da concisão. Como preconizava o poeta Paulo Leminski, sendo “mínimo em matéria de máximo”. (…) “quanto menor/ mais do tamanho da china” (LEMINSKI, 2013, p.49).
Por exemplo, a contundência lancinante que se obtém com a imagem do “vestido no pescoço”, em que o oximoro do silêncio alto nos atordoa como uma sirene emudecida, cujas cores berram em nossa face. Pois ao focalizar o pescoço, o autor sugere, com dose concentrada de malícia, que desviemos nosso olhar para as partes pudendas localizadas logo abaixo dele, e que ficaram descobertas frente a esse gesto intromissor, que, por fim, se desenrola “em plena viatura”.
No caso de “A Casa dos Mastros”, o espaço supostamente de proteção social, e mesmo místico/sagrado, que acaba corrompido é o confessionário. Em ambas as narrativas, as personagens estão vulneráveis. Enquanto uma vivencia a iminência de parir (que nos recorda do título do filme “No Limiar da Vida”, de Ingmar Bergman), a outra encontra-se desmaiada. Com “a cabeça metida no corpo, o fremir de ódio e medo, joelhos sangrados da espera”, Violete, “encolhida e trémula” sente as mãos de padre André descansarem em seus ombros. O pároco prevê, “nos olhos da moça ondas alterosas do canal barrando o caminho do Norte. Caminho de emigrantes, caminho da procura, caminho de ir e voltar” (AMARÍLIS, 1989, p.48), o que denuncia seu atordoamento.
Ajoelhada, Violete continua a tremer e é incapaz de responder a uma simples pergunta do padre, que a chama de “filha” e oferta a piedade da “virgem”, em referência à Ave Maria, mãe de Deus. Todavia, a palavra “virgem” insere uma vez mais a carga de erotismo na narrativa, ainda que associado à ausência da atividade sexual, que deveria incluir o celibato do religioso, mas que mantém acesa a chama do desejo justamente pela não consumação do ato.
Ao constatar que a “menina não está bem”, a decisão do padre é carregá-la para a sacristia com o auxílio de duas mulheres que “varriam a igreja”. Violeta também será “varrida” para o espaço privado, e deitada “num banco comprido encostado ao longo da parede”. Sua boca é umedecida “com um lenço embebido em água fresca” (AMARÍLIS, 1989, p.48), numa descrição minuciosa, detida, que sensualiza sua figura pela sequência de atributos langorosos, prenhes de uma volúpia líquida, como “a boca” úmida, “o lenço”, a “água fresca”.
Então, a autora invoca a ambiguidade de maneira definitiva. “Tinha desmaiado. Mas tinha mesmo?”, escreve Amarílis, duvidando da própria escrita, auferindo a tensão da esfera que se equilibra entre uma ponta e outra do texto. A poética se entrega ao lirismo na tentativa de capturar com palavras o estado da protagonista: “Deslaçamento de membros, fluidez de estar, ansiedade angustiante, o desespero na quentura da manhã” (AMARÍLIS, 1989, p.48). A imagem nos revela algo que parece não se conter dentro de si, desmembrando-se ao redor numa exasperação candente.
Para Bataille, o não-saber é o princípio do erotismo, que “furta ao espírito até mesmo as respostas que ele ainda tinha. A experiência nada revela e não pode fundar a crença nem partir dela”. Logo, a capacidade imagética da poesia, que menos explica do que sugere, é a única saída concedida para “decifrar” textualmente o impacto dessa experiência, nascida do “extremo do possível” a partir do “amalgamento que se realiza num plano totalmente extra-racional” (BATAILLE, 2008, p.210).
Em Paixão, Erotismo e Comunicação: Contribuições de um Filósofo Maldito, Georges Bataille, Ciro Marcondes Filho afiança que a experiência estética pressupõe um “sentimento de si”, diferenciando-a do conceito de “consciência de si”. A conclusão do estudioso, baseada em Bataille, é que, “como a vida solitária da alma, contudo, é algo igualmente incomunicável” (FILHO, 2008, p.214). Tomando em perspectiva tanto a Trilogia da Incomunicabilidade, do cineasta Michelangelo Antonioni, quanto os dois contos analisados, podemos intuir que a experiência erótica teria a sua fatia de comunicabilidade possibilitada pela mediação estética.
Obviamente que não podemos perder de vista as limitações dessa mediação e que a própria expressão sustenta. A mediação não é a coisa em si, não se trata da experiência erótica, pois, como salientou Nietzsche, “tudo aquilo para que temos palavras é porque já ultrapassamos” (NIETZSCHE, 2012, p.56). Ainda assim, é a única maneira praticável de esboçar, através da linguagem, uma fagulha ínfima e impactante da experiência. Pedro Antônio Gregorio de Araujo observa que “Bataille postula um sujeito pós-nietzschiano, ou seja, fragmentado, frágil. Um sujeito em sentido mais fraco”.
A fragmentação do bloco maciço de chumbo que contém as partes do corpo da protagonista de “Ocorrência de Parto” é prova dessa concepção. “Sem calcinha. Unhas ralando grade do chiqueirinho. Bolsa aberta. Documento e batom esparramados”, descreve Bonassi.
Os objetos misturam-se à personagem, aberta e exposta a toda sorte de violação. E, nesse movimento ambíguo, sua subjetividade é objetificada. Ela transforma-se no objeto de desejo do abusador, que intenciona fundir-se violentamente à garota, cada vez mais perdendo as feições de uma pessoa para seus olhos “embotados de cimento e lágrima”, como o operário que é vítima da violência e indiferença na música “Construção”, de Chico Buarque, mas que, aqui, torna-se obra do carrasco. “A barbárie tem rosto humano”, vaticina o filósofo esloveno Slavoj Zizek.
Na cena capturada, agora estão “Todos molhados. Voa sandália. PM por cima. Sem vergonha. Ferro apertado no coldre. Metendo a mão. Espremendo”. O uso da expressão “Gritos & sussurros” remete ao filme de Ingmar Bergman, de 1972, altamente visual, o que não era comum no autor que sempre privilegiou os diálogos, e em que a coloração vermelha carrega todo o simbolismo sanguíneo que pode significar tanto a premência da vida como o esvaimento fúnebre.
A morte também parece ser própria de padre André, descrito de maneira um tanto sinistra e cadavérica, com “mãos pálidas” e “olhos cinzentos”. Ele enxota as mulheres que o ajudaram a carregar Violete para a sacristia e logo refere-se a si mesmo com um termo pra lá de sugestivo: “Concupiscente”, aquele que tem “desejo intenso por bens materiais, prazeres sexuais e ganância por poder ou dinheiro”, e que, de acordo com o Dicionário Online de Português, pode também ser definido “como um desejo imoderado de satisfazer a sensualidade. É considerada uma manifestação da natureza pecaminosa do ser humano e é condenada como uma força que leva à transgressão”. Ciro Marcondes Filho diz,
O erotismo, portanto, situa-se fora do campo da normalidade, da regularidade, da ordem. Ele está, ao contrário, no terreno da violação, da dissolução da ordem constituída. Maior a violação, maior o erotismo, maior o prazer. Diz Bataille que toda a atividade do erotismo tem por finalidade atingir o mais íntimo, o ponto onde ficamos sem forças. (FILHO, 2008, p.215)
A tentação ante “Violete estendida, pálpebras descidas, boca entreaberta” é mais forte e vence a fraqueza da carne, mesmo com o apoio incondicional da alma. “Passado um bocado”, o padre abandona a leitura de seu monótono breviário e volta-se para junto de Violete, onde, “debruçando-se um pouco, começou a dar-lhe palmadinhas na cara. Esfregou-lhe os braços nus, sacudiu-a levemente”. A hesitação dos gestos do religioso, indeciso num movimento de vaivém, aumenta a tensão da cena, sublinhando seu erotismo implícito, que, lentamente, exibe a sensualidade de suas formas ao leitor. O padre prossegue sua travessia do mundo imaterial dos livros para a languidez palpável do corpo.
Abriu-lhe um pouco a blusa. Deixou-se estar de pé, a ver para ela, não sabendo bem o que devia fazer. Olhava-a indeciso. Então descortinou para além da blusa os seus seios doirados e rijos. Susteve a respiração. Os olhos quase lhe saltaram da órbita. Acariciou-os com ardor àqueles seios de virgem. Sabia bem o que estava a fazer, mas não recuou. Ajoelhou-se e beijou-lhos. Tornou a beijá-los. Quando deu por si, estava em cima dela sobre o comprido banco do minúsculo gabinete. Os lábios moviam-se-lhe e ele quase a violara. (AMARÍLIS, 1989, p.48)
A reação assustada de Violete é igualmente intempestiva. “Entre soluços ela suplicava, ‘minha nossa senhora, minha nossa senhora!’ Os músculos irmanados na alegria inconfundida, os desejos transbordantes, o céu a abrir-se, da taça escorrendo mel”, poetiza Amarílis, mimetizando o momento orgástico.
Contudo, encerrado o frenesi do gozo, advém a culpa de matriz religiosa. “Quando se levantou, ela procurou esconder os vestígios da heresia, da ignomínia, enrodilhando-se, metendo-se por ela dentro, predadora despojada das roupas de vestal” (AMARÍLIS, 1989, p.49), salienta a escritora, reforçando a ambiguidade da personagem, ao contrapor seu apetite erótico interior à aparência virginal que a enclausura.
Confundido com a “tinta baça do tabique”, em outra associação de palidez alusiva à morte, ao contrário da “taça escorrendo mel” cheia de vitalidade de Violete, padre André ainda se recompõe quando recebe a cabeça da mulher que foi fruto de seu desejo no peito. “Aroma de ervas desprendia-se da batina negra e é então quando os soluços lhe sobem à garganta e ela desata em pranto”. Mas não há remorsos. O choro de Violete – que também será a última reação de sentimento humano em “Ocorrência de Parto” – vem pleno de “alívio e paz”.
Ela limpa os olhos e, já na rua, sente-se “mulher e liberta”. Porém, essa sensação é enganosa, e logo dará espaço a uma nova aflição, que colocará em movimento a eterna perdição do erotismo. Escreve Bataille: “Na esfera humana, a atividade sexual se separa da simplicidade animal. Ela é essencialmente uma transgressão. Não é, após o interdito, o retorno à liberdade primeira. A transgressão é própria à humanidade organizada pela atividade laboriosa”. O filósofo francês complementa:
Há na passagem da atitude normal ao desejo uma fascinação fundamental pela morte. O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas. Mas, no erotismo, menos ainda do que na reprodução, a vida descontínua não é condenada, a despeito de Sade, a desaparecer: ela é apenas colocada em questão. (BATAILLE, 2014, p.42)
Considerações finais
Ciro Marcondes Filho organiza o pensamento de Bataille ao pontuar que “erotismo e violência estão dentro de um mesmo terreno”. “O domínio do erotismo é o domínio da violência, da violação; há uma relação íntima entre morte e excitação sexual. O erotismo está associado à primeira. (…) na morte está a ideia libertina. A morte é a violência maior, arranca-nos de nossa obstinação de ver durar o descontínuo que somos” (FILHO, 2003, p.104).
Portanto, o limite do erotismo, tal como a vida, é a morte, única capaz de aplacar “a convulsão cega dos órgãos”, nas palavras de Bataille, diante do impulso transgressor imposto pelo interdito. “A carne é em nós esse excesso que se opõe à lei da decência”, sintetiza o teórico francês, que expressa “um retorno dessa liberdade ameaçadora” (BATAILLE, 2014, p.116). Em “Ocorrência de Parto”, quem comete o abuso é o chamado “homem da lei”, assim como no caso de “A Casa dos Mastros” ele ocorre por ação de um “homem de Deus”, instâncias opressivas na sociedade.
Na curta narrativa de Bonassi, o sujeito atende por Cabo Urano e recebe um nome, ao contrário de sua vítima. Somos apresentados a ele na sequência da única frase exclamativa do conto. “Ela vem vindo… vem vindo! Veio”. A enigmática sentença nos impele a questionar se quem “vem vindo” é a criatura que nasce ou a ejaculação do estuprador. A dúvida mantém a ambiguidade suspensa no ar.
Certo é que “Cabo Urano apara a criança chorando, corta umbigo, amarra com cadarço de coturno e liga sirene”. Tampouco há certeza quanto à identidade da “criança chorando”, se trata-se da mãe recém-parida ou da filha que acaba de vir ao mundo, pois ambas têm motivos para chorar. No entanto, o que permanece imutável é a atitude de violência para com o corpo feminino, que se corta e amarra com cadarço de coturno. A sirene ligada serve para avisar que alguém precisa de socorro.
Se em “A Casa dos Mastros” a violência erótica leva à premência de uma ansiada libertação, em “Ocorrência de Parto” ela consuma a condenação feminina. As diferentes matizes são conduzidas pelo viés estético, com suas respectivas estratégias que comunicam e amplificam o impacto textual, a partir de uma linguagem poética, ambígua e lírica.
Referências
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
BATAILLE, Georges. A Experiência Interior, seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma Ateológica, vol. I. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.
BATAILLE, Georges. A Literatura e o Mal. Trad. Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
FILHO, Ciro Marcondes. Paixão, Erotismo e Comunicação: Contribuições de um Filósofo Maldito, Georges Bataille. Hypnos, São Paulo, n. 21, p. 208-230, 2008, p. 213
ARAUJO, Pedro Antônio Gregorio de. Em busca da continuidade perdida: erotismo e morte em Georges Bataille.
https://revistaseletronicas.pucrs.br/intuitio/article/view/34275/19734
MOREIRA, Terezinha Taborda. O Corpo Violado: Silenciamento, Dessubjetivação e Mediação Feminina na Escrita de Orlanda Amarílis.
https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/45381/37090
AMARÍLIS, Orlanda. Ilhéu dos pássaros. Lisboa: Plátano, 1983.
BONASSI, Fernando. Passaporte. Editora Cosac & Naify, 2001.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Companhia das Letras, 1990.
PASSOS, Arthur Almeida. Aspectos estilísticos em “Ocorrência de parto”, de Fernando Bonassi. Site Palavra-Objeto, 2020.
Aspectos estilísticos em “Ocorrência de parto”, de Fernando Bonassi
LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. Companhia das Letras, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Companhia de Bolso, 2012.
ZIZEK, Slavoj. Barbárie com face humana. Revista Piauí, 2014.
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/barbarie-com-face-humana/