De Maysa a Nana Caymmi: As melhores canções de dor de cotovelo da MPB

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Enfie a carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.” Ana Cristina Cesar

O anúncio do fim. Um mundo que desaba. Uma consulta a Deus. A música brasileira tem um tanto de apocalíptica quando aborda a “dor de cotovelo”, termo que teria sido cunhado por Lupicínio Rodrigues (1914-1974), habituado a debruçar os cotovelos sobre uma mesa de bar para chorar as mágoas, e também aproveitado por Caetano Veloso no título de uma canção que ganhou a voz arrebatadora de Elza Soares. Fato é que a influência portuguesa da “nação mais triste do mundo”, como diriam alguns, redundou em algumas das mais belas canções do nosso repertório, embebidas em desilusão, com notas, versos e melodias, que, inevitavelmente, tocam o nosso coração.

“Tudo Acabado” (samba-canção, 1950) – J. Piedade e Osvaldo Martins
Dalva de Oliveira, a Rainha do Rádio, da dor, do Trio de Ouro, da comédia e da tragédia do amor. Sua voz emocionada e comprida procurava Deus, Ave Maria e os amores que perdeu. Procurava as flores, a grande verdade, o segredo da vida. Procurava bandeira branca para a guerra em que seu coração se envolveu. Dalva fugia da dor e a dor fugia de Dalva, mas como em um beco sem saída, acabavam se reencontrando na despedida. A dor de Dalva é aquela dor aflita, que não suporta tamanho sofrimento e grita. Uma dor tão grande que arranha os céus do “segundo andar” e afoga estrelas no mar. Em 1950, ela lançou “Tudo Acabado”, samba-canção de J. Piedade e Osvaldo Martins que não deixava dúvidas sobre seu sofrimento dorido.

“Meu Mundo Caiu” (samba-canção, 1958) – Maysa
A voz caudalosa de Maysa, aqueles “oceanos não pacíficos” em seus olhos. Foram 40 anos de intensidade, navegando por entre notas musicais e doses nunca calculadas de whisky e cigarros. A cantora das fossas homéricas e das dores de amores insuportáveis usou a melancolia para dizer ao mundo que estava viva. Embora tenha tentado o suicídio, a mulher forte de sentimentos frágeis explicava que foi este mundo, e não ela, que caiu. Maysa manteve-se sempre de pé. Enfrentou o marido que não a queria como cantora e a imprensa de boataria que insistia em julgá-la. Permitiu que todo tipo de sentimento a invadisse, e, dentre eles, o que mais a perseguiu foi a tristeza. Em 1958, Maysa entoou seu hino da dor, o samba-canção “Meu Mundo Caiu”.

“Vire Essa Folha do Livro” (samba-canção, 1958) – Vinicius de Moraes
Colocando o devido peso nos versos rancorosos da canção, Nana Caymmi apresenta uma arrebatadora interpretação para “Vire Essa Folha do Livro”, também conhecida como “Medo de Amar”. A música é um samba-canção composto unicamente por Vinicius de Moraes, e, lançado em 1958, se avoluma no canto de Nana, que mantém na boca as últimas palavras de cada verso. Quando reaparecem, mais brandas, elas parecem ter sido ruminadas, efeito das lembranças que a memória nos causa. Fato é que o canto de mormaço da intérprete garante vigor e densidade a essa obra-prima da música popular brasileira, e especialmente do estilo conhecido como “dor de cotovelo”.

“Fim de Caso” (samba-canção, 1959) – Dolores Duran
Dolores Duran, a cantora da noite do seu bem que viajou na “Asa do Vento” em busca da “Estrada do Sol”. Dos 10 aos 29 anos, cantou todas as línguas do amor. O amor magoado. O amor triste. O amor que nunca desiste. Todas as línguas da dor. A dor do filho que não nasceu. Do final feliz que não aconteceu. Do amor eterno, que morreu. Com sua voz sussurrada e triste, Dolores Duran representa as dores que duram mais que os sonhos e as canções. A voz que sussurra ao coração seu desespero contido. Dolores Duran é a indiferença fria de “Fim de Caso” e a dor que queima de “Castigo”. Em relação ao primeiro, foi lançado em 1959, um samba-canção inspirado e lancinante.

“Tortura de Amor” (bolero, 1962) – Waldick Soriano
Uma das músicas que se impregnaram ao repertório de Waldick Soriano é o bolero “Tortura de Amor”, lançado pelo compositor em 1962. Com seu estilo conhecido, o cantor apresenta as nuances de um amor sofrido, daqueles condenados ao fracasso. Toda a passionalidade transparece nos versos “volta meu amor/ fica comigo/ não me desprezes/ a noite é nossa/ e o meu amor pertence a ti”. Junto à voz poderosa do intérprete, a melodia contundente ajuda a explicar o sucesso dessa canção de dor de cotovelo. Em 1977, Maria Creuza realizou uma das mais belas regravações da música, reavivando a sua chama e mantendo intacta a poética contundente de Waldick Soriano.

“Atrás da Porta” (MPB, 1972) – Chico Buarque e Francis Hime
Entre os inúmeros talentos de Chico Buarque, um que lhe costuma garantir elogios entusiasmados é a capacidade de conceber letras segundo o ponto de vista feminino. É o caso da dolorida canção “Atrás da Porta”, parceria com o não menos talentoso Francis Hime, gravada em 1972 por Elis Regina com a devida emoção. É difícil encontrar na história da música brasileira um registro mais dilacerador do que aquele de Elis dando voz a “Atrás da Porta” no palco, sem conseguir conter as lágrimas que derramam-se de seus olhos. Melodia, letra, interpretação, tudo contribui para elevar “Atrás da Porta” a um clássico da MPB, representante denso da nossa dor de cotovelo.

“Opus 2” (blues, 1977) – Antônio Carlos e Jocafi
Maria Creuza conheceu Antônio Carlos na Bahia, e, com ele, contraiu casamento que ultrapassou as convicções musicais. Os dois tiveram três filhos e vários sucessos nas rádios do Brasil e do mundo, principalmente depois que migraram para o Rio de Janeiro. O primeiro grande êxito foi “Você Abusou”, que Antônio Carlos compôs com Jocafi em 1971. O canto de Maria Creuza explicitava a beleza da composição que rejeitava aspirações intelectuais e ia direto ao coração. Lançada em 1977 pela dupla Antônio Carlos & Jocafi, com versos que rebobinavam “Você Abusou”, a música “Opus 2” recebeu uma versão blues de Angela Ro Ro em 1984, em “A Vida É Mesmo Assim”.

“Bilhete” (MPB, 1980) – Ivan Lins e Vitor Martins
Ivan Lins e o parceiro Vitor Martins passavam o mês de dezembro em Teresópolis, na região serrana do Rio, e, há dias, tentavam compor uma canção sem sucesso. Diante da situação, Dona Carmelita, a empregada, sugeriu que eles fossem a uma benzedeira da região conhecida como Madalena. Lá, eles receberam alguns passes, e, no dia seguinte, a inspiração para “Bilhete” subitamente apareceu. A música foi lançada por Ivan Lins em 1980 que acredita que Vitor, autor da letra, estava tomado por uma entidade feminina. No ano seguinte, Dóris Monteiro concedeu sua versão para a música, regravada com enorme sucesso por Fafá de Belém em 1982, para o disco “Essencial”. A música acabou na trilha da novela “Sol de Verão”, da TV Globo.

“Naquela Estação” (MPB, 1990) – Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos
João Donato e Caetano Veloso estavam enrolados com um verso de “Naquela Estação”, quando Ronaldo Bastos chegou e resolveu a pendenga. Nascia, assim, a parceria tripla, lançada por Adriana Calcanhotto em 1990, e logo puxada pra trilha de “Rainha da Sucata”, novela da Rede Globo, onde era tema da personagem de Renata Sorrah. Triste, melancólica, quase deprimente, “Naquela Estação” conserva uma beleza que afoga o ouvinte na singeleza de seus versos sobre despedida, um sentimento que, certamente, todos já experimentaram. “E o meu coração embora/ Finja fazer mil viagens/ Fica batendo parado naquela estação…”. A música ganhou versões de Emílio Santiago e da cantora Claudya, mas permaneceu associada à voz de Adriana.

“Dor de Cotovelo” (MPB, 2002) – Caetano Veloso
Você já ouviu a voz que toma corpo? Da favela vem magra, faminta, intacta e assim permanece. Carrega a cabeça uma lata d’água e nas mãos uma prece, que se estende aos quadris da mulata assanhada, sobe pelas paredes. E alcança no céu um Ary Barroso e um Louis Armstrong. No renovador álbum na carreira discográfica de Elza Soares, “Do Cóccix até o Pescoço”, lançado em 2002, a cantora gravou uma canção magnífico de Caetano Veloso, batizada “Dor de Cotovelo”, em que ressalta com toda sua voz vitimada por carinhos e torturas as malícias de um relacionamento complicado, tardio, enfim, desfeito por artimanha do ciúme. “O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés…”.

“Cavaquinho Triste” (choro, 2016) – Waldir Silva e Raphael Vidigal
Waldir Silva nasceu em Bom Despacho, no dia 28 de maio de 1931, e morreu no dia 1º de setembro de 2013, aos 82 anos. Compositor e mestre do cavaquinho, ele conheceu o primeiro sucesso na década de 1950, quando o então Presidente da República Juscelino Kubitschek elogiou publicamente o choro “Telegrama Musical”, escrito em forma de código Morse, o que o levou a compor a trilha da primeira versão da novela “Pecado Capital”, da Rede Globo. Em 2016, o jornalista Raphael Vidigal colocou letra no choro “Cavaquinho Triste”, para o álbum “Waldir Silva em Letra & Música”, que contou com a interpretação precisa de Giselle Couto para essa sensível dor de cotovelo, e, ainda, a participação mais do que especial do músico Zito do Pandeiro.

“Ouvi Dolores” (samba-canção, 2024) – Raphael Vidigal e André Figueiredo
Ao final da página, o poeta anotou os seguintes versos, que serviriam de indicações para o músico: “Samba-canção. Dor de cotovelo. Cartola. Fossa”. O samba “Ouvi Dolores” demorou cerca de 15 anos para ficar pronto. Em 2009, quando o jornalista Raphael Vidigal Aroeira entregou a letra para André Figueiredo, a melodia rapidamente foi criada ao violão. Apesar disso, o tempo para maturação se prolongou além das expectativas. Em 2024, a versão definitiva da canção ganhou o mundo. Compositor da melodia, André Figueiredo estreia soltando a voz, além de empunhar o violão, e realiza um delicado dueto com a cantora Luisa Doné, em interpretação sublime. O título de “Ouvi Dolores” alude a Dolores Duran, pioneira compositora e ícone do samba-canção.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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