100 anos de Dona Ivone Lara, primeira mulher a ter um samba na avenida

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Traz a pureza de um samba
Sentido, marcado de mágoas de amor
Samba que mexe o corpo da gente
E o vento vadio embalando a flor” Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho

Durante muito tempo acreditou-se que Dona Ivone Lara, a Dama do Samba, como também era chamada essa carioca que veio ao mundo no dia 13 de abril para sacudir o coreto com melodias inebriantes e versos simples e cheios de beleza, havia nascido em 1921, graças às suas certidões. Foi só com a publicação da biografia escrita pelo pesquisador Lucas Nobile, em 2015, que a confusão acabou desfeita. Nas páginas do livro, ele esclarece que a mãe de Dona Ivone aumentou a idade da filha em um ano para conseguir matriculá-la na tradicional Escola Municipal Orsina da Fonseca, já que, à época, ela ainda não possuía a idade mínima para ingresso. Seja como for, Dona Ivone Lara, cujo centenário se celebra agora, marcou pra sempre a história da nossa MPB.

“Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio” (samba-enredo, 1965) – Dona Ivone Lara e Silas de Oliveira
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça.

Foi ao lado de Silas de Oliveira que Dona Ivone Lara tornou-se a primeira mulher a derrubar barreiras e preconceitos e invadir esse ambiente marcadamente masculino, com a coautoria de “Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio”, périplo que reconta a história de magia, aventura e sedução do Brasil imperial e a chegada do período republicano. Não foi sem méritos que a Império Serrano tornou-se a grande vencedora daquele carnaval de 1965.

“Acreditar” (samba, 1976) – Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho
Roberto Ribeiro não era de inventar. Ele sabia que sua voz, límpida, bem timbrada, gostosa de se ouvir, era suficiente para contornar as emoções das canções. Logo, cantava com despojamento e simplicidade, duas características marcantes de sua personalidade. O samba que levou para os discos era o mesmo que tocava no seu terreiro e na quadra da Império Serrano. Filiado ao gênero mais tradicional do país, Roberto interpretou com requinte músicas do porte de “Acreditar”, parceria de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho, lançada em 1976, e que se tornou um verdadeiro clássico da música popular brasileira.

“Sonho Meu” (samba, 1979) – Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho
A maneira singular, perfeccionista e suingada de tocar o violão levou a comparações com Baden Powell, de quem Rosinha de Valença seria o modelo feminino, mas é redutor considerar que ela fosse apenas um “Baden de saias”. Rosinha tinha acento único: ao executar, produzir e compor. Além de apurado tino musical. Foi graças a ela que Maria Bethânia conheceu “Sonho Meu”, em um sarau organizado para apresentar as canções de Dona Ivone Lara. Assim, Bethânia e Gal Costa gravaram esse bonito samba em dueto, no ano de 1979.

“Alguém Me Avisou” (samba, 1980) – Dona Ivone Lara
Um ano depois de “Mel”, novamente uma música de Wally Salomão com Caetano Veloso deu título ao disco de Maria Bethânia. “Talismã” foi lançado em 1980, e se tornou o terceiro disco consecutivo da cantora baiana a superar a marca de um milhão de cópias vendidas, algo, até então, inédito na música popular brasileira. Nesse mesmo álbum, a anfitriã interpretou, ao lado de Gilberto Gil e Caetano, outro grande sucesso: “Alguém Me Avisou”, o samba de terreiro de Dona Ivone Lara, que marcou pra sempre a carreira da compositora.

“Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço” (samba, 1981) – Dona Ivone Lara e Hermínio Bello de Carvalho
Hermínio Bello de Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, no dia 28 de março de 1935. Compositor, poeta e produtor musical, ele esteve à frente de espetáculos históricos, como “Rosa de Ouro”, protagonizado por Clementina de Jesus, Aracy Cortes, Paulinho da Viola, Elton Medeiros e Nelson Sargento na década de 1960. Como compositor, tornou-se parceiro em canções célebres de Cartola, Paulinho da Viola e Dona Ivone Lara, além de colocar letra em chorinhos de Jacob do Bandolim e Pixinguinha, dois ases do gênero. Com Dona Ivone, ele compôs este clássico: “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”.

“Sorriso Negro” (samba, 1981) – Jorge Portela e Adilson Barbado
País da mistura e da diversidade, o Brasil ainda paga pela frase histórica de Joaquim Nabuco, incorporada por Caetano Veloso em música: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional”. “Sorriso Negro” foi um presente dos amigos Jorge Portela e Adilson Barbado para Dona Ivone Lara gravar no álbum de 1981, que recebeu este título. Verdadeira música de afirmação e de combate ao racismo, ela confirma em seus versos: “Negro é a raiz da liberdade”. Essa música foi regravada pelo Fundo de Quintal e por Mart’nália, mas ficou, sobretudo, identificada com esta trajetória de Dona Ivone.

“Força da Imaginação” (samba, 1982) – Dona Ivone Lara e Caetano Veloso
Em 1982, a admiração dos baianos por Dona Ivone Lara se tornou parceria. Ela e Caetano Veloso compuseram “Força da Imaginação”, samba que entrou em rotação pela voz de Beth Carvalho na novela “Maçã do Amor”, da TV Bandeirantes. A própria Beth lançou a canção no álbum “Traço de União”, e tratou de torna-la conhecida em todo o Brasil. “Força da Imaginação” ainda recebeu as regravações de Arlindo Cruz, do grupo Arranco de Varsóvia e de Caetano em dueto com Dona Ivone Lara, em um encontro bonito e afetuoso.

“Meu Samba É Luz É Céu E Mar” (samba, 1985) – Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho
“Dona Ivone é imensa. Compositora, criadora, sambista, mulher, negra que desde o início da carreira, enquanto enfermeira, teve uma luta grande ao lado da psicanalista Nise da Silveira contra os manicômios. Enfrentou toda a sorte de preconceito. Em casa, na escola de samba, no meio artístico, para se firmar como artista. Venceu e deixou seu legado, fez uma história importante que conta parte do enredo sobre a música no Brasil”, enaltece Fabiana Cozza, que, em 2019, regravou “Meu Samba É Luz É Céu E Mar”, belo samba de Dona Ivone, em mais uma parceria com Délcio Carvalho, companheiro de sucessos.

“Nas Asas da Canção” (samba, 1990) – Nelson Sargento e Dona Ivone Lara
Os bonitos vocalises de Dona Ivone Lara sublinham a poesia de “Nas Asas da Canção”, composta pela Dama do Samba com Nelson Sargento em 1990, e regravada por ambos. A versão de Dona Ivone conta com um arranjo solar e um coro de vozes. É uma gravação para cima, animada. Nelson optou por um registro mais contido e melancólico. A essência, no entanto, se mantém nos dois exemplos.

“Nas Asas da Canção” é uma espécie de resumo, um compêndio das experiências que uma vida dedicada à música garante. “Ó musa/ Me ajude como outrora/ Não me abandone agora/ No ocaso da vida/ Sei que a minha mente está cansada/ Foram tantas madrugadas/ Quantas ilusões perdidas/ Quero versos com muito lirismo/ Para tirar do abismo, meu pobre coração/ Rica melodia emoldurando a fantasia da minha imaginação…”, desfilam Nelson e Ivone Lara.

“É Natal” (samba, 1999) – Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho
Através da pena de Celso Viáfora, Nei Lopes, Paulo César Pinheiro e Adoniran Barbosa, o Natal ganhou cores próprias em terras brasileiras. “Um detalhe fascinante é a diversidade rítmica das canções natalinas feitas no Brasil. Predominam as marchas, mas você tem valsa, sambas, cantos de domínio público, como pastoris, marujadas”, enumera Luiz Antonio Simas, coautor do “Dicionário da História Social do Samba”, em parceria com Nei Lopes, que participa do álbum “Um Natal de Samba”, colocado na praça em 1999. Ali também comparece a singela “É Natal”, de Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]