*por Raphael Vidigal Aroeira
“A vida quebra os homens, sem barulho, sem gritos, sem soluços, sem ninguém perceber…” Máximo Górki
À realidade, às vezes, confunde-se a ficção. Como, por exemplo, o caso de uma boneca tão real que se ignora a presença do ventríloquo, embora os traços de uma boneca como essa sejam sempre exagerados, para que os fios e a mão do ventríloquo passem pela boca e através de seu corpo de pano. Uma menina prodígio, que começou a carreira artística ainda na infância, é o mote do filme “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”, um dos maiores sucessos de bilheteria da história do cinema hollywoodiano, que tomou as salas de projeção de todo o mundo em 1962, protagonizado por Betty Davis e Joan Crawford, duas irmãs cheias de talento que se digladiam – e, segundo as más línguas, as intérpretes repetiam essa rivalidade fora das telas, com fervor.
Mas é também, em termos, a história de Dircinha Batista (1922-1999), cantora nascida há um século, que iniciou sua trajetória aos seis anos de idade, incentivada pelo pai, um ventríloquo de profissão, e cuja irmã, Linda Batista, seguiu o mesmo caminho. Dircinha, a mais nova, apareceu primeiro. Linda teve uma carreira de mais fôlego. Ambas foram coroadas Rainhas do Rádio, então a premiação mais cobiçada pelas cantoras brasileiras naquela ocasião. Linda se tornou alcóolatra. Na década de 1980, vivendo na penúria e relegada a um ostracismo tortuoso, Dircinha acudiu com um telefonema desesperado ao músico e amigo José Ricardo, dizendo que havia sido espancada pela irmã. Antes disso, porém, muita coisa aconteceu, e com sucessos em grande escala.
Holofotes. Depois da estreia cantando “Morena Cor de Canela”, quando ainda era uma criança, Dircinha dedicou certa atenção aos estudos, ao mesmo tempo em que acompanhava o pai em suas apresentações. Com apenas oito anos, ela gravou o primeiro disco, mas ainda assinava Dircinha de Oliveira, privilegiando o sobrenome de batismo. Na década de 1930, foi descoberta pelo cantor Francisco Alves, intitulado “O Rei da Voz”, e subiu ao palco da Rádio Cajuti. O encontro com o cinema não tardou. Em 1935, participou da chanchada “Alô, Alô, Brasil”, enorme sucesso de público. O período também foi de ascensão das marchinhas carnavalescas, muitas delas com o carimbo da voz inconfundível de Dircinha Batista, tão doce e melodiosa na mesma medida.
Ela interpretou composições folionas de Nássara, Ary Barroso e Roberto Martins que fizeram estrondo nas ruas e nos salões do Rio de Janeiro. Já nos anos 1940, se deparou com o samba malandro de Wilson Batista, que acabou sofrendo com a censura do ditador Getúlio Vargas, um dos mais entusiasmados e públicos admiradores do trabalho de Dircinha e Linda Batista. Talvez a maior realização musical de Dircinha tenha sido, justamente, em sua derradeira fase de aclamação popular, quando ela entoou dois sambas-canções especiais de Lupicínio Rodrigues e Antônio Maria, respectivamente “Nunca” e “Se Eu Morresse Amanhã de Manhã”, ambos nutridos por uma melancolia magoada, ressentida, com pouco ou nenhum espaço para o perdão.
Desgosto. A decadência que viria a partir de 1960 se acentuou com a ascensão da bossa nova, o suicídio de Vargas e o advento da televisão. Era um novo Brasil que surgia agora voltado para outros matizes, distante do canto empostado e trágico de Dircinha e suas colegas de geração, como Angela Maria, Dalva de Oliveira, Marlene, Emilinha Borba e a irmã Linda Batista. Juscelino Kubistchek era a expressão deste Brasil radiante e substituía Vargas, assim como o aparelho de TV tomava o lugar do rádio e a bossa enfim dava as cartas em contraposição ao samba-canção. Desenganada, Dircinha afundou na depressão, indo e voltando em clínicas de reabilitação, e abandou a carreira, ou foi abandonada por ela. O mundo cruel do show business. “O Que Terá Acontecido a Baby Jane?”. Linda Batista se afogou na bebida. Ficaram pobres.
Uma realidade muito distinta do ápice nas décadas de 1940 e 1950, quando elas chegaram a possuir 14 carros importados. Em seus últimos dias, após sofrer um derrame, Dircinha passou a se locomover em uma cadeira de rodas, como a personagem de Joan Crawford no filme com Bette Davis, dirigido por Robert Aldrich. Mas, afinal, o que era mais real? A trama hollywoodiana tem contornos de realidade. A vida de Dircinha e Linda Batista também. A boneca do filme e o boneco no colo do ventríloquo, pai das duas irmãs, por vezes nos convence da sua realidade. No fundo, no entanto, nada é mais fictício e incrível do que a vida que Dircinha e Linda levaram no auge do sucesso, com a qual se iludiram e se enganaram mutuamente. Já a realidade estava na solidão do fim.
“Na Batucada da Vida” (samba, 1934) – Ary Barroso e Luiz Peixoto
O Flamengo foi o primeiro time a ter seus gols comemorados no rádio através de uma gaita. Invenção do fanático Ary Barroso, que não se preocupava em disfarçar o amor pelo clube. Fazia de tudo: invadia o campo, achincalhava o juiz e até recusava propostas de se mudar para o exterior, sob a alegação: “Lá não existe Flamengo de Futebol e Regatas”. Anos mais tarde, em 1960, ele se tornaria vice-presidente do departamento cultural e recreativo do clube. Nascido desse estilo acalorado tomou forma um samba que teve na passional Elis Regina a sua intérprete mais festejada. A música foi lançada por Carmen Miranda em 1934, e regravada por Dircinha Batista em 1950, com acompanhamento de Ary Barroso ao piano, em uma gravação cheia de beleza.
“Periquitinho Verde” (marcha de carnaval, 1938) – Nássara e Sá Róris
“Periquitinho Verde” é um desses casos onde Nássara faz uso de sua verve cômica e sua conhecida habilidade em incorporar frases famosas de outras canções. Nessa marcha de 1938 ele costura com bom humor os enlaces matrimoniais sob o ponto de vista da mulher, que diz que não atura “mamãe eu quero mamar”. Amigo do ventríloquo Batista Júnior, pai das irmãs Batista, Nássara teve a oportunidade de ouvir a menina Dircinha Batista cantar e definir que ela lançasse a música, uma de suas parcerias com seu professor de desenho Sá Róris, também compositor. A marcha foi um sucesso de Carnaval!
“Inimigo do Batente” (samba, 1940) – Wilson Batista e Germano Augusto
Wilson não se acanhava em tirar um sarro de quem lhe cruzasse o caminho. Tinha por hábito se intitular “Cabo”, e requerer ajuda aos outros com o seguinte maneirismo: “Tem um dinheirinho aí, major?”. Esses trejeitos salientes eram utilizados com muito brio para inspirar seus sambas, num deles, “Inimigo do Batente”, de 1940, em parceria com o amigo português Germano Augusto, Wilson Batista tripudia sem dó em cima daqueles que duvidavam de seus talentos artísticos, ironizando a fala da mulher: “Ele dá muita sorte, é moreno, é mesmo um atleta, mas tem um grande defeito, ele diz que é poeta”, como quem diz: vá arrumar trabalho de verdade. Ao que este responde: quem pode, pode, major. A música foi lançada, com sucesso, pela cantora Dircinha Batista.
“Chico Brito” (samba, 1949) – Wilson Batista e Afonso Teixeira
As margens sempre interessaram a Wilson Batista, por ser ele próprio, parte integrante delas. Por isso em seus sambas retratam-se comportamentos dos ditos inadequados, de gente simples, posta de canto. “Chico Brito”, de 1949, em parceria com Afonso Teixeira, é o herói dos pequenos que se deteriora em razão de maus tratos. Afinal “se o homem nasceu bom, e não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou.” Não por acaso, é feita a primeira referência à maconha na música brasileira. Registrada por seu autor, foi lançada por Dircinha Batista, e regravada, com esmero, por Paulinho da Viola.
“Nunca” (samba-canção, 1952) – Lupicínio Rodrigues
Em 2017, o pesquisador e jornalista Zuza Homem de Mello lançou o livro “Copacabana: A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958)”, que, em mais de 500 páginas, discorre sobre a formação e a influência do gênero no qual se consagraram Maysa, Lupicínio Rodrigues, Dolores Duran, Nora Ney, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Dick Farney e tantos outros.
“O samba-canção é a música dos fracassados do amor, o cara chora em cima das perdas, é sobre as várias maneiras sobre como o romance fracassa”, constata Zuza, que define o papel dos principais artífices do gênero. “Lupicínio é o grande letrista. Nora Ney, a grande voz feminina, e Dick Farney, a masculina”. “Nunca”, lançada por Dircinha Batista em 1952, é belo exemplar de Lupicínio.
“Alguém Como Tu” (samba-canção, 1952) – José Maria de Abreu e Jair Amorim
“Alguém me disse/ Que tu andas novamente/ De novo amor, nova paixão/ Toda contente/ Conheço bem tuas promessas/ Outras ouvi iguais a essas/ E esse teu jeito de enganar/ Conheço bem”. Os versos da música de Evaldo Gouveia e Jair Amorim já foram cantados por Gal Costa, Alcione, Emílio Santiago, Ana Carolina, Agnaldo Timóteo, Nelson Gonçalves, Joanna e Simony, mas a gravação de Anísio Silva foi a responsável pelas mais de dois milhões de cópias vendidas, consagrando-o como o primeiro cantor brasileiro a faturar um disco de ouro. Antes, em 1952, e com outro parceiro, no caso José Maria de Abreu, o compositor Jair Amorim emplacou o sucesso “Alguém Como Tu”, lançado por Dick Farney, e regravado por Dircinha Batista com idêntica beleza.
“Se Eu Morresse Amanhã de Manhã” (samba-canção, 1953) – Antônio Maria
Autor de lindas poesias publicadas em forma de crônica, criador de jingles inesquecíveis, Antônio Maria aprontava das suas fora das quatro linhas da arte. Conhecido pelas tiradas sarcásticas e bem humoradas, conta o escritor Carlos Heitor Cony da vez em que o compositor e amigo fez-se passar por ele a fim de levar para a cama uma mulher que paquerava no avião e que lia o livro de Cony. O que ocorreu de fato, só que Maria completava o caso para o amigo às gargalhadas: “Acontece que você broxou, Cony!”. Sem meio-termo, arrematava com a triste “Se Eu Morresse Amanhã de Manhã”, lançada por Dircinha Batista.
“Canção da Volta” (samba-canção, 1955) – Antônio Maria e Ismael Neto
Dolores Duran e Antônio Maria foram amigos de mesa de bar, copo e coração. Dois geniais e apaixonados compositores homenageados no especial “Brasileiro Profissão Esperança”, dirigido por Paulo Fontes e estrelado por Paulo Gracindo e Clara Nunes. Pelas semelhanças de que partilhavam, tanto em vida quanto em obra, tiveram as canções costuradas num misto de irreverência e alarde. Alarde de um coração partido. “Canção da Volta”, samba-canção escrito em 1955, com Ismael Neto, foi lançado por Dolores Duran, e recebeu uma regravação de Dircinha Batista, em 1957, e com o mesmo primor.
“Conceição” (samba-canção, 1956) – Jair Amorim e Dunga
É impossível não ligar “Conceição” ao nome de Cauby Peixoto. Ela é resultado da inspiração de dois compositores para tratarem o tema e do poder que um intérprete pode exercer sobre a música. Se não é possível afirmar que todos sabem o nome dos autores Jair Amorim e Dunga, é provável apostar que Cauby tornou-se mais dono da canção que quem a germinou. Isso porque a verdadeira germinação popular deu-se quando ela atravessou sua voz extensa. Não à toa Cauby cantando “Conceição” tornou-se um verdadeiro espetáculo à parte. Com direito a todas as pompas que o cantor sempre adorou. Dircinha Batista a regravou e soube manter a força, o impacto dessa canção prodigiosa.
“Minha Belo Horizonte” (marcha, 1957) – Rômulo Paes e Eli Murilo
Mineiro de Paraguaçu, Rômulo Paes nasceu no dia 27 de julho de 1918, e morreu no dia 4 de outubro de 1982, aos 64 anos. Primo de Ary Barroso, Rômulo foi jornalista e vereador em Belo Horizonte. Em 1935, começou a carreira de cantor de rádio, mas não chegou a gravar discos. Depois, tornou-se diretor artístico da Rádio Guarani e comandou a Rádio Mineira. Rômulo foi responsável por lançar Dalva de Oliveira no rádio. A sua primeira composição gravada recebeu as vozes do conjunto Anjos do Inferno. Em 1957, ele compôs, com Eli Murilo, a marcha “Minha Belo Horizonte”, gravada por Dircinha Batista.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.