*por Raphael Vidigal Aroeira
“O que importa é a não-ilusão. A manhã nasce.” Frida Kahlo
Ao cantar os versos “nas noites de frio você vai pedir agasalho/ e eu não dou”, foi impossível conter aquela risada sarcástica, debochada, direcionada ao homem que prometeu arruiná-la, como um dardo que atinge a presa no alvo. A reação do carrasco foi de seriedade, claramente incomodado, constrangido mesmo durante a apresentação da estrela Dalva de Andrade. Esse momento impagável, único, em que a cantora dá vazão ao prazer da vingança – bem ao estilo de Lupicínio Rodrigues, o mestre da dor de cotovelo –, pode ser conferido no LP “Prece”, de 1964, onde ela homenageou o amigo Marino Pinto.
Foi o último ato de Dalva nos palcos, com uma coincidência incômoda. O Brasil se despedia da democracia, enquanto ela abria mão do canto remunerado. Decepcionada, a voz de sucessos como “Serenata Suburbana”, “Prece”, a citada “Reverso” (de Marino Pinto e Vadico, célebre parceiro de Noel Rosa), “Segredo”, “Cigana”, “Cubanacan”, etc., se recolhia a uma função no anonimato do serviço público. A imprensa se tornou cúmplice daquela situação estapafúrdia ao anunciar que ela havia largado o ofício por ter ficado surda, algo que nunca se comprovou. Na verdade, Dalva fora enganada pelo marido.
Equívoco. Aos 86 anos, vivendo em uma casa humilde no Rio de Janeiro, cercada pelos santos de sua devoção, ela se refere a José Ribamar, o ex-marido, como “um equívoco”. Ingênua, a moça que aparece nas capas de seus discos com olhares penetrantes e uma boca de onça confessa que era perdidamente apaixonada por aquele com quem converteu matrimônio. Mas a vida em casal, pós-noite de núpcias, desmanchou seus sonhos. O comportamento do companheiro revelava algo de sórdido, covarde, ganancioso a ponto de passar por cima de colegas, mais outras infidelidades imperdoáveis.
Apesar de estar tocando constantemente em todas as rádios do país, convidada para apresentar programas matutinos, evocada como a herdeira da xará Dalva de Oliveira – uma das maiores cantoras da história do Brasil –, Dalva de Andrade não via a cor do dinheiro, e aumentou suas desconfianças sobre o marido. Após uma discussão áspera, decidiu pela separação, e ele prometeu arruiná-la, mas Dalva não baixou aqueles olhos de faísca. Ao modo de Maysa, que disse que o mundo caiu, mas não ela, Dalva retrucou que ele poderia arruinar a carreira da cantora, mas não a cantora, que era indestrutível.
Vingança. Ribamar deu início à sabotagem mentindo sobre ela, inventando viagens ao exterior para os que desejavam contratá-la, e desviando os valores provenientes do trabalho de Dalva para sua própria conta. Esgotada, Dalva decidiu que aquela briga não valia a pena, ao contrário da xará Dalva de Oliveira, que se engalfinhou com o ex-marido e também compositor Herivelto Martins em um arranca-rabo público que movimentou a imprensa e a canção brasileira, rendendo, por exemplo, hits como “Segredo”, “Cabelos Brancos”, “Caminhemos”, “Errei, Erramos”, e outras preciosidades. Dalva largou o ringue.
O ex-marido ficou golpeando sozinho, e ela seguiu a vida, ao lado da família, do filho, a quem passou a dedicar tempo e carinho, podendo estar presente em todos os aniversários, algo que a carreira de artista não permitia. Lá atrás, quando gravou o derradeiro LP dedicado a Marino Pinto, a Odeon já havia rompido seu contrato, mas o compositor homenageado disse que só permitia o tributo com a voz de Dalva de Andrade: “a única capaz de sentir cantando o que eu senti escrevendo”, vaticinou. Marino estava certo. Basta ouvir “Reverso”, com aquela risada gostosa, libertadora, no meio duma canção dolorida e amarga, cheia de ressentimento, como, aliás, é a nossa própria vida, que precisa do respiro do cantar: “você vai sofrer muito mais do que eu já sofri”.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.