*por Raphael Vidigal Aroeira
“Eles se habituam logo com o deboche. Basta um pouco de tédio…” Jean Genet
Uma jarra de sangria com uma porção de azeitonas e queijinhos variados. “Poder tocar, se divertir e ainda não ter que pagar a conta é o ó do borogodó!”, celebra Bob Gallo, que relembra a forma gastronômica que tomou o primeiro cachê de seu conjunto, com o qual ele se apresenta nesta segunda (21), em BH, o famoso e afamado João Penca e Seus Miquinhos Amestrados. “Voltamos pra casa felizes da vida!”, conta.
O cardápio da noite promete ressuscitar velhos sucessos, que tocaram em novelas da Globo na década de 1980, como “Matinê no Rian”, tema de “O Sexo dos Anjos”, a incorrigível “Calúnias”, mais conhecida como “Telma, Eu Não Sou Gay”, versão que ganhou uma gravação de Ney Matogrosso, “Popstar”, “Lágrimas de Crocodilo”, “Como o Macaco Gosta de Banana”, dentre outras.
Trajetória. A trupe formada por Avellar Love, Selvagem Big Abreu e Bob Gallo surgiu de maneira despretensiosa. Adolescentes, eles tocavam pra “se divertir e arrumar namorada”. Foi Leo Jaime, até então conhecido como Leo Guanabara, quem deu a letra: “Dava pra fazer tudo isso e descolar uma grana”. Dos festivais universitários, eles passaram para o circuito de bares, com o empurrãozinho de Leo, que passou a integrar a banda. “Foi amor à primeira vista. Leo veio como excelente cantor, compositor, e nos conquistou”, diz Gallo.
Outro encontro essencial aconteceu com Eduardo Dussek, também ligado a Leo Jaime. “Rock da Cachorra”, grande hit de Dussek, foi composto por Leo. “Dussek foi assistir a um show nosso no Rio, não sei se ele estava bêbado, mas gostou”, graceja Gallo. O irreverente compositor de “Brega Chique” (a popular “Doméstica”), “Aventura” e “Barrados no Baile” (parcerias com Luís Carlos Góes), se identificou imediatamente com os Miquinhos e foi ao camarim.
Sucesso. Na época, Dussek gravava o seu segundo disco, “Cantando no Banheiro”, de 1982, que se consagrou como o maior sucesso do artista. No camarim, ele recrutou os integrantes do João Penca e Seus Miquinhos Amestrados para participarem do álbum. Era a estreia do trio nos estúdios. “Antigamente, era uma coisa louca, aqueles equipamentos, salas enormes, botão pra caramba”, compara Gallo. Aquela molecada não deixou nada barato.
Além de arrebentarem em faixas que invadiram as rádios, como “Barrados no Baile” e “Cantando no Banheiro”, e farrearem na irresistível marchinha “Quero Te Beber no Gargalo”, dos provocativos versos: “Fica difícil, neném/ Que eu não me abalo/ Eu fumo, eu bebo, embalo/ Só quero te beber no gargalo”, a trupe botou medo nos técnicos e executivos. “Os caras ficavam preocupados, eles falavam que era pra gente não mexer em nada porque, se quebrasse algo, ia precisar trabalhar vinte anos pra conseguir pagar”, diverte-se Gallo aos risos.
Geração. No Rio de Janeiro ensolarado e boêmio dos anos 80, Cazuza e Lobão eram companhias frequentes de Bob Gallo e seus amigos. “A gente estava sempre se esbarrando em shows ou na noite, tomando um chope no Leblon, comendo uma pizza na Guanabara, falando besteira, foi uma década bem gostosa, fluida”, afirma. Gallo se define como “o mais quietinho e ermitão” da banda, o que não o impediu de ter esses encontros. Avellar e Big Abreu também viam o cantor Júlio Barroso, da Gang90, quando iam para São Paulo.
“Nossa geração teve o papel de abrir as portas para o pop rock nacional, mostrar que era possível você acreditar nos seus sonhos e mandar ver”, opina. Segundo ele os anos 80 descendiam de alguma forma de nomes como Rita Lee, Novos Baianos, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tim Maia, etc. “Lembro que no primeiro Rock in Rio, apesar de a gente ser sucesso no Brasil, os gringos cagavam pra gente, nosso som era bem pior. Hoje, acho que as coisas evoluíram, tocamos de igual pra igual. Demos esse pontapé”, avalia.
Diversão. Gallo não esconde que o som do João Penca e Seus Miquinhos Amestrados é para divertir a galera, aliviar a tensão de tempos polarizados, e, quem sabe, trazer a lembrança de uma época mais inocente. “Hoje em dia, fico bem mais receoso de dar mole na rua, a violência está exacerbada”, observa. Para espantar o terror, o antídoto são músicas da trupe que detém o selo de garantia de alegria. “Tenho certeza que todos vamos nos divertir, inclusive eu”.
“Sei que o lugar é pequeno, mas estão todos convidados, só não sei como colocar todo mundo pra dentro”, brinca. Ele promete repetir a dose em breve, e também anuncia canções inéditas para esse ano. E, finalmente, desfaz um dos maiores mistérios do grupo. Como nasceu o nome João Penca e Seus Miquinhos Amestrados? “Não teve nenhum trabalho de numerologia nem de astrologia”, debocha Gallo. “A gente era moleque pra caramba e assistia muita TV, então tinha aquele culto a um ser. E o João Penca era tipo uma entidade”.
Batismo. Sobre um suposto “batismo” para conseguir entrar na banda, Gallo desfaz tal engano. Na verdade, o ritual era para entrar no Clube Lee, que eles fundaram quando tinham entre 12 e 13 anos. “Não sei se todos se lembram disso, quem tem mais idade vai lembrar. Antigamente não existia calça jeans, era só calça Lee, que era uma marca muito forte e vinha com um pedaço de couro, na parte onde se amarra o cinto, escrito o nome da marca”, explica ele.
O “batismo” para fazer parte do clube de adolescentes incluía “pisar na merda descalço, tomar um balde de água misturado com xixi e imitar um veado na rua, que hoje é politicamente incorreto, mas, na época, era só uma brincadeira”, detalha Gallo. Esse espírito zombeteiro, um pouco infantil, perpassa os hits do mais longevo grupo de rockabilly do Brasil, eternizado, por exemplo, na faixa “S.O.S. Miquinhos”, que traz o subtítulo: “versão censurada”.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.