Elza Soares cantou samba, rock e dor de cotovelo; Relembre os sucessos

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Deita-te depois e vibra tua garganta
Como se fosse o início de um cantar.
Não cantes todavia.
Aqui, zona de tato e calor, margem do ser
Larga periferia, olha teu corpo de carne
Tua medida de amor, o que amaste em verdade.
O que foi síncope.
Todavia não cantes na perplexidade.” Hilda Hilst

Você já ouviu a voz que toma corpo? Da favela vem magra, faminta, intacta e assim permanece. Carrega a cabeça uma lata d’água e nas mãos uma prece, que se estende aos quadris da mulata assanhada, sobe pelas paredes. E alcança no céu um Ary Barroso e um Louis Armstrong. É a mistura sem jeito, sem tato, aos barrancos, mancando ao sapato um tamanco de barro, suor e pilão. Chame de bossa negra, suingue, jazz, funk ou samba na avenida. Ela apenas destila o que chama de corpo é a voz que arrepia: Elza Soares da vida, patrimônio mal resolvido num país de descidas, sucata e música aborígene. “Se não fosse cantora, seria prostituta”, declarou Elza Soares, que, em 2019, se tornou Cidadã Honorária de Belo Horizonte.

“Se Acaso Você Chegasse” (samba, 1938) – Lupicínio Rodrigues e F. Martins
Escrito por Lupicínio Rodrigues em parceria com Felisberto Martins em 1938, o samba “Se acaso você chegasse” fez sucesso com Ciro Monteiro. Na estréia em disco de Elza Soares, no ano de 1959, a peça ganhou o contorno da voz jazzística da cantora, substituindo frases do refrão por sonetos sonoros que deixam no ar a real intenção dos personagens. À história de amor desfeito e amizade posta sob o perigo de Lupicínio Rodrigues, Elza adentrou com intimidade e atrevimento, sem perder a dor-de-cotovelo.

“Tenha Pena de Mim” (samba, 1938) – Ciro de Sousa e Babaú da Mangueira
Sílvio Caldas ficou injuriado com Ciro de Sousa quando ele deu o samba “Tenha Pena de Mim” para Aracy de Almeida. A música foi um sucesso absoluto no Carnaval de 1938, mas nasceu com outro nome. Inicialmente se chamaria “Ai, Ai, Meu Deus”, versos que também aparecem na parceria de Ciro de Sousa com Babaú, mas a censura getulista proibia a palavra “Deus” em canções.

Ciro conheceu Waldomiro José da Rocha, que atendia por Babaú da Mangueira, durante as peregrinações boêmias pelo morro carioca. O rapaz era responsável por trazer os comes e bebes em uma birosca ali nas redondezas. Logo, se revelou um bom sambista. Ciro ajeitou os versos e compôs a segunda parte para o futuro sucesso da dupla, já regravado pela intérprete Elza Soares.

“Fez Bobagem” (samba, 1942) – Assis Valente
Um mês depois do lançamento de “Brasil Pandeiro”, Assis Valente atirou-se do Corcovado e ficou preso em uma árvore, o que salvou sua vida do suicídio. Naquele mesmo ano, em janeiro, havia nascido sua única filha, Nara, fruto do casamento com Nadyle da Silva, 15 anos mais nova. O casamento não durou muito tempo, ao contrário da relação com a filha, que teve o nome tatuado no corpo do pai, na época considerada uma subversão.

Os desentendimentos amorosos foram mais uma vez retratados em música por Assis, no ano de 1942, em samba intitulado “Fez bobagem”, lançado por Aracy de Almeida. A letra escancarava o desacordo de um enciumado triângulo amoroso, e recebeu versões de Elza Soares, Teresa Cristina e Caetano Veloso. A dor trazida por Assis era dedilhada em versos: “dá vontade de chorar, e de morrer”.

“Beija-me” (samba, 1943) – Roberto Martins e Mário Rossi
A pitada de jazz acrescentada por Elza Soares ao samba que pratica garante a autenticidade sonora de seus retumbantes graves, agudos e tudo mais que endossa sua voz inigualável. Sejam rasgadas as interpretações, ou disfarçadas sob a fantasia de um macio véu, a música espalha-se em Elza Soares ao deleite de desvios maternos, femininos, vorazes.

“Beija-me”, samba de 1943 de autoria de Roberto Martins e Mário Rossi, sucesso de Ciro Monteiro, é um convite irrecusável, feito pela cantora do milênio, segundo a BBC de Londres. Gravado por Elza Soares em 1961. “Beija-me, deixa o teu rosto coladinho ao meu…”.

“Chuvas de Verão” (samba-canção, 1949) – Fernando Lobo
Lançada em 1949, por Francisco Alves, cantor que ficou conhecido como o Rei da Voz durante a Era de Ouro do Rádio, “Chuvas de Verão” é um samba-canção de Fernando Lobo que fala sobre um amor passageiro, inebriante como as chuvas de verão. A música foi regravada por Orlando Silva, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves, Noite Ilustrada e Elza Soares, confirmando a sua beleza, mas ganhou a sua versão definitiva em 1969, com a voz de Caetano Veloso.

“Antonico” (samba, 1950) – Ismael Silva
Composto em 1950 por Ismael Silva, o samba “Antonico” foi registrado por ele próprio em disco em 1973, fruto do espetáculo “Se você jurar”, dirigido por Ricardo Cravo Albin. Em 1967, Elza Soares já o havia gravado no disco “Elza, Miltinho e Samba”, em que cantava algumas músicas ao lado do cantor Miltinho.

Apesar das constantes negativas de Ismael, especula-se que a música seja autobiográfica, devido às dificuldades financeiras que o compositor passou após sair da prisão. Em uma carta escrita por Pixinguinha em 1939, endereçada ao musicólogo Mozart de Araújo, ele dizia: “Espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim.” Quase os mesmos versos presentes no samba “Antonico”.

“Estatutos de Gafieira” (samba, 1954) – Billy Blanco
A menina Elza da Conceição Soares, casou-se, obrigada pelo pai aos 12 anos de idade, com um menino de 17. Mãe aos 13, viúva aos 18 anos, viu a vida precoce deslizar no asfalto. Soube manter a pose e equilibrar-se no morro, apreciada em sua imaturidade pelos “Estatutos da Gafieira”.

Retirando deles a melodia para superar as adversidades, Elza Soares, já nascida cantora e desde sempre acalentada por seu canto rompedor, regravou em 1966 o samba dançante e esguio de Billy Blanco, conferindo-lhe sua pulsação singular. Como diz a biografia da cantora lançada em 1997, escrita por José Louzeiro, é Elza “cantando para não enlouquecer”.

“Edmundo – versão de In The Mood” (samba, 1954) – Aloysio de Oliveira
Aloysio de Oliveira aproveitou-se de uma interpretação vocal para transformar o sucesso americano de Glen Miller, composto por Joe Garland e Andy Razaf, In The Mood, no sucesso brasileiro de proporção internacional, “Edmundo”, em que se vale das trapalhadas de seu protagonista. Lançada por seu “Bando da Lua” em companhia de Carmen Miranda em 1954, a música recebeu regravação de Elza Soares e entrou para a galeria de estouros de seu repertório. Sem perder o requebrado e o bom humor, Elza mantém a forma ao interpretar diversas mancadas e peripécias no universo musical em que ressoa a vida.

“Mulata Assanhada” (samba, 1956) – Ataulfo Alves
Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão.

Regravada em 1960, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personalíssima Elza Soares, tornou-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”.

“Ziriguidum” (samba, 1961) – Monsueto
Em 1961, Monsueto reaparece nas paradas de sucesso, com uma das poucas canções em que não apresenta parceiros. “Ziriguidum” traz no título uma das expressões tornadas populares por ele no programa de humor “Noites Cariocas” no qual interpretava o personagem “Comandante” na TV Rio, desde 1959.

Já que não apresentava parceiros na autoria, a música foi lançada desta maneira, afinal Monsueto não era do tipo que andava sozinho, desta vez com a companhia de Elza Soares, no filme “Briga, Mulher e Samba”, de Sanin Cherques, e que contava no elenco, ainda, com Violeta Ferraz, Ronaldo Lupo e Matinhos. O sentido rítmico da expressão é utilizado pelos cantores e explorado, com excelência, na letra da música.

“Boato” (samba, 1961) – João Roberto Kelly
O violão paterno e os ouvidos grudados no rádio deram à Elza Soares a oportunidade de conhecer Noel Rosa, Geraldo Pereira e Ary Barroso, que lhe abriu as portas pessoalmente para o estrelato, depois de zombar de sua roupa e arrepender-se, mesmo que veladamente, nomeando aquela menina humilde e tempestuosa de estrela. Interpretada com a avidez de sempre, Elza Soares soube dar ritmo certo ao samba de 1961 de João Roberto Kelly, “Boato”, em que sua voz alerta triste os infortúnios sombrios do ilusionismo.

“Volta Por Cima” (samba, 1962) – Paulo Vanzolini
“Samba é que nem osso, uma vez que tá na rua, vai na boca de qualquer cachorro”, riu-se Vanzolini, quando perguntado por Zé Henrique o que fazer com a música que este havia ganhado, e que por briga com a gravadora, não poderia gravá-la. Foi então que “Volta por cima” encontrou Noite Ilustrada, e por três semanas consecutivas angariou o primeiro lugar nas paradas de sucesso do ano de 1962.

Notícia que seu autor só veio a ter quando voltou de sua viagem à Amazônia, entretido com os afazeres da zoologia, e ouviu no rádio sua exaltação para aquilo que ficaria conhecido no dicionário Aurélio da Língua Portuguesa como “ato de superar uma situação difícil”, cantada com emoção ímpar por Elza Soares. Para ele, a parte mais importante da letra não está no título, mas no verso ‘reconhece a queda’.

“Devagar Com a Louça” (samba, 1963) – Haroldo Barbosa e Luiz Reis
Elza Soares viveu um tórrido romance com Mané Garrincha que lhe valeu muita tristeza e também muita felicidade. O filho do casal, Garrinchinha, morreu em acidente automobilístico em 1986, abalando muito a cantora, que já havia perdido filho para a fome. No entanto, Elza soube superar as agruras que lhe foram impostas, e “devagar com a louça”, recuperou seu terreno. A voz acoplada à melodia que lhe é impregnada pelo timbre aguçado e intransferível marca a releitura da cantora no samba composto em 1963 por Haroldo Barbosa e Luiz Reis: “Devagar com a louça que eu conheço a moça vai devagar…”.

“Palmas no Portão” (samba, 1967) – Valter Dionísio e D’Acri Luiz
Em 1967 Elza Soares iniciou parceria com o cantor Miltinho que acabou por render três antológicos discos, combinando o suingue da cantora e a apurada noção rítmica do colega. Mais tarde, em 1972, bancou parceria com o iniciante Roberto Ribeiro, o que provaria seu certeiro faro para descobrir talentos. Mas é de 1967 a composição “Palmas no portão”, de Valter Dionísio e D’Acri Luiz. Nela, Elza abusa no samba com o privilégio de sua voz sinuosa, e reclama de saudade: “Ôôôôô há mais de uma semana que eu não vejo meu amor…”.

“O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” (samba-enredo, 1967) – Batista da Mangueira, Darcy da Mangueira, Luiz, Dico, Jurandir e Hélio Turco
Em 1967, a pioneira Elza Soares tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, de autoria de Batista e Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Jurandir, Luiz e Dico. A relutância em ser precoce não infringiu à Elza a fuga de seu destino. Tudo lhe veio cedo, lhe foi cedo, muito permaneceu. Por exemplo, o canto, a vontade, a luta cotidiana contra o infortúnio, a certeza da alegria. Como diz o bloco criado por ela própria, “Deu a Elza” na avenida!

“Sei Lá Mangueira” (samba, 1968) – Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho
Até hoje há fanáticos que não perdoam o fato de Paulinho da Viola, portelense de coração, ter criado a melodia para uma das canções mais emblemáticas em saudação à Mangueira, muito embora ele tenha feito, em seguida, “Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida” para a Portela. Hermínio Bello de Carvalho escreveu a letra de “Sei Lá Mangueira” logo após a sua primeira visita ao morro, inebriado com o que havia visto na companhia de Cartola e Carlos Cachaça. Lançada por Elizeth Cardoso em 1968, a música foi inscrita no IV Festival de Música Brasileira da Record, quando foi defendida por Elza Soares.

“Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” (MPB, 1973) – Gonzaguinha
Ao longo do repertório de “Planeta Fome”, Elza Soares reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “Passei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está passando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma. Lançada originalmente por Gonzaguinha, em 1973, a “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” foi cantada por ele durante a turnê que empreendeu ao lado do pai, Luiz Gonzaga, e naquele ano de 1981.

“Comportamento Geral” (MPB, 1973) – Gonzaguinha
O inconformismo de Gonzaguinha já denunciava, logo no primeiro disco, o peso de suas “canções de protesto”. Identificado como “compositor-rancor” por críticos e detratores de sua obra, o filho de Luiz Gonzaga, que no início da carreira ainda assinava Luiz Gonzaga Júnior, nunca aceitou a mediocridade, fosse política, social, de gênero e, principalmente, de felicidade.

É valendo-se da habilidosa ironia, que o calo da vida no morro de São Carlos e a ausência do aclamado pai lhe deram, que Gonzaguinha extirpa uma a uma todas as hipocrisias perpetradas através dos anos pelo costume, a tradição e a intolerância da raça humana com o seu semelhante, na brilhante e ousada letra de “Comportamento Geral”, lançada em 1973, como um dardo afiado, no alvo. A música foi regravada por Elza Soares em 2019, com direito a um videoclipe.

“Pranto Livre” (samba-canção, 1974) – Eduardo da Viola e Dida
“d’O pranto que é privilégio de quem sabe amar”. Elza ama, amou, amará. Essa é sua sina. Que perpassa aos berros melodiosos, ritmados, harmônicos de uma voz que exulta infinita a beleza que há em cantar, cantar, cantar… ouvir Elza Soares. “Pranto Livre”, samba-canção de 1974, de Eduardo da Viole e Dida, liberta a melancolia para que sobre ela se aviste a dor, apinhada de busca da felicidade.

“Salve a Mocidade” (samba de carnaval, 1975) – Luiz Reis
Elza Soares sempre puxou pela força do canto as barreiras que tentaram derrubá-la. Cantou o samba de carnaval de Luiz Reis, escrito em 1975, exaltando a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas também o que existe de “mais quente”, o povo e sua festa, sendo ela mesma, o carnaval na essência, superando toda quarta-feira que foi cinza em sua vida. Ansiando a folia.

“Juízo Final” (samba, 1975) – Nelson Cavaquinho e Élcio Soares
É com a palavra “esperança” que Elza Soares define “Juízo Final”, clássico de Nelson Cavaquinho regravado por ela em 2020, lançado a bordo de um videoclipe esperto que a transformou em desenho animado e não teve dúvidas em apontar o vilão cadavérico que atualmente ocupa Brasília. “Juízo Final” a encontrou na maturidade, mas em um período conturbado.

Em 1975, ela voltou ao Brasil grávida do único filho que teve com Garrincha, e que morreria em um acidente de carro, aos 9 anos. O casal se exilou em Roma, na Itália, durante seis anos, depois que agentes da ditadura militar metralharam a casa em que moravam. Mas Elza sempre teve a música como aliada, tanto que gravou, naquele mesmo ano, “Nos Braços do Samba”, que tinha uma composição de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito: “Saudade, Minha Inimiga”.

“Malandro” (samba, 1976) – Jorge Aragão e Jotabê
A música de Elza Soares, tal qual a perfeita expressão da personalidade, combina rítmica, harmonia, melodia e letras bem trabalhadas, embelezadas por seu canto instigante e bardo, nas mais altas prateleiras da atemporalidade. “Malandro”, samba de 1976, foi lançado por Elza juntamente com o compositor Jorge Aragão, que divide a autoria da música com Jotabê. Os versos relatam um aviso de que o amor representa perigo. Mas vale o risco, tão bem ritmados pela cantora.

“Fadas” (tango, 1978) – Luiz Melodia
Jards Macalé, que escreveu “Negra Melodia” pensando no amigo, chama atenção para dois aspectos essenciais da obra de Luiz Melodia: as divisões do violão e a batida peculiar. “Ele fala que a mão direita do Luiz era uma valsa e um carnaval, destaca esse lado imprevisível, de a gente ficar sem saber para onde aquilo vai”, relata Toninho Vaz, autor da biografia “Meu Nome É Ébano: A Vida e a Obra de Luiz Melodia”, de 2020, e cita como exemplo a canção “Fadas”, um tango estilizado de Melodia, que fecha o LP “Mico de Circo” (1978) e foi regravada por Elza Soares. “É uma música que começa com ‘devo de ir’, onde já se viu isso? Melodia era um artista extremamente original”, enaltece.

“Oração de Duas Raças” (samba, 1980) – Gérson Alves
Interpretada por Elza Soares no álbum “Negra Elza, Elza Negra”, em 1980, o samba de Gérson Alves, à época casado com a cantora, não menciona o nome de Nelson Mandela, mas faz referência óbvia às lições do mestre, com um discurso de igualdade entre negros e brancos no qual afirma: “Aqui somos todos iguais/ E quando acontece uma guerra/ Morre o negro e morre o branco/ Chora toda a humanidade/ Sem saber a cor do pranto/ A mente fica confusa/ A guerra é um desespero e não se escolhe pela cor/ Gente pra morrer primeiro”. A própria Elza Soares dedicou a canção ao líder sul-africano quando foi anunciada a morte de Nelson Mandela.

“Língua” (samba rap, 1984) – Caetano Veloso
Houve quem quisesse destruir Elza Soares (policiais covardes, jornais sensacionalistas), sem perceber que estímulos sonoros são inquebrantáveis. Qual então a força do canto que remete aos primórdios do haver humano, e mais ainda, bulido à margem do trompete de metal que se ergue aos ombros de quem sassarica sem vergonha de querer ser feliz.

Tudo através da música que rege a vida. A onda sonora que abate oportunistas desventurados no caminho da rainha de argila, feita de água e terra, com a verdade que compreende conquistas. Por isso a “Língua” de Elza Soares soa tão afiada e cortante como lâmina para quem a quiser corrompê-la de hipocrisia. Aos prazeres modestos, sem a imoralidade insólita, ela se derrete, sem medo. E junta sua língua à de Caetano Veloso, em 1984, rap esperto e afinado. Um ano depois, gravou disco produzido por Caetano e Lobão.

“O Tempo Não Para” (rock, 1988) – Cazuza e Arnaldo Brandão
Todas as músicas do espetáculo de lançamento do álbum “Ideologia” já estavam definidas quando Cazuza apresentou a Ney Matogrosso uma novidade. O antigo vocalista do grupo Secos e Molhados era o responsável pela direção, iluminação e cenografia do show. Amigos de longa data, Cazuza e Ney haviam sido namorados em meados da década de 1970.

Ao se deparar com a letra arrebatadora de “O Tempo Não Para”, Ney não teve dúvidas de que a música daria nome à turnê. Parceria com Arnaldo Brandão, “O Tempo Não Para” mescla a batalha pela vida de Cazuza com as agonias de um país em constante crise. “A música é sobre essa velharia que está aí e vai passar. Vão ficar as ideias de uma nova geração”, disse Cazuza. Elza Soares a gravou.

“Espumas ao Vento” (balada, 1997) – Accioly Neto
Fagner não chegou a conhecer pessoalmente Accioly Neto (1950-2000), mas foi um dos maiores divulgadores da obra do compositor pernambucano, de quem regravou, na década de 1990, “Espumas ao Vento” e “Lembrança de um Beijo”. Em seguida, ele participou de um disco duplo em homenagem a Accioly, que enfileirou 30 novas gravações feitas por 30 diferentes artistas, como Elba Ramalho, Chico César, Zélia Duncan, Lucy Alves, Mariana Aydar e Zé Manoel.

A, então inédita, “Casa Comigo”, chegou ao conhecimento do público pela voz do cantor cearense. “Accioly sempre foi um autor muito conhecido no Nordeste, mas infelizmente morreu cedo, com apenas 50 anos. Ele teve uma carreira prolífica, principalmente em Pernambuco, onde nasceu”, atesta Fagner. “Espumas ao Vento” já foi gravada por Flávio José, Elza Soares e Chico César.

“Façamos [Vamos Amar]” (jazz, 2000) – Cole Porter em versão de Carlos Rennó
No primeiro ano do novo milênio, o letrista, produtor e jornalista Carlos Rennó colocou na praça um projeto ousado: músicas de Cole Porter e George Gershwin, dois dos maiores estandartes do jazz norte-americano, traduzidas para o português em versões interpretadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Mônica Salmaso, Jussara Silveira, entre outros. Coube a Elza Soares, com sua voz elástica, cantar as artimanhas sensuais da irresistível balada “Façamos (Vamos Amar)”, ciceroneada pelo compositor Chico Buarque.

“Dor de Cotovelo” (samba-canção, 2002) – Caetano Veloso
No renovador álbum na carreira discográfica de Elza Soares, “Do cóccix até o pescoço”, lançado em 2002, a cantora gravou um samba-canção magnífico de Caetano Veloso, em que ressalta com toda sua voz vitimada por carinhos e torturas as malícias de um relacionamento complicado, tardio, enfim, desfeito por artimanha do ciúme. “O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés…”.

“Bambino” (tango-brasileiro, 2002) – Ernesto Nazareth e Zé Miguel Wisnik
Ernesto Nazareth começou a ter problemas de audição quando caiu de uma árvore, ainda criança. Desde então, eles passaram a acompanhá-lo tal qual o piano. Diagnosticado com sífilis em estado avançado e já praticamente surdo, teve que ser internado na colônia Juliano Moreira, dedicada a pessoas com certo grau de loucura.

Não foram raras as vezes em que fugiu e foi encontrado tocando compulsivamente um piano. Até que não mais voltou e faleceu nas águas de uma represa, dizem, em posição de criar mais uma das obras clássicas brasileiras, a exemplo de “Bambino”, o tango brasileiro que recebeu em 1913 letra de Catulo da Paixão Cearense, e mais recentemente, no ano de 2002, novos versos de José Miguel Wisnik, e a interpretação arrebatadora de Elza Soares.

“Flores Horizontais” (MPB, 2002) – Oswald de Andrade e Zé Miguel Wisnik
Este poema escrito por Oswald de Andrade, um dos principais nomes do modernismo brasileiro, e da “Semana de Arte Moderna de 1922”, foi resgatado por Zé Miguel Wisnik, que colocou melodia na letra para que ela pudesse ser interpretada magistralmente por Elza Soares no ano 2002, quando lançou o revigorante álbum “Do Cóccix até o Pescoço”.

Como Oswald morreu em 1954, aos 64 anos, a poesia data de muito antes, o que evidencia não só a presença de prostitutas entre a sociedade e os intelectuais brasileiros como a preocupação afetiva e sentimental para com elas. Mais do que uma indignação social o que a interpretação de Elza Soares comprova é a profunda admiração que Oswald nutria por essas mulheres batalhadoras e cheias de coragem, “flores brancas de papel, flores da vida”.

“A Carne” (rap, 2002) – Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti
Composição de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, a letra de “A Carne” explora o racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Interpretada por Elza Soares, a faixa está presente no álbum “Do Cóccix Até o Pescoço”, lançado em 22 de abril 2002.

Já ao longo do repertório de “Planeta Fome”, de 2019, Elza reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “Passei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está passando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma.

“Brasis” (rock, 2005) – Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano
Elza Soares já havia afirmado com todas as letras em seu disco anterior que “Deus É Mulher”. Pouco mais de um ano depois, ela colocou na praça “Planeta Fome”, onde clama por um país materno. “Não pode deixar a criança no chão quando ela precisa de colo, o Brasil sempre foi um país acolhedor, que as pessoas gostavam de visitar, hoje não está mais assim”, lamenta.

Ao regravar “Brasis”, de Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano, Elza brada: “Oh, Pindorama eu quero o seu porto seguro/ Suas palmeiras, suas feiras, seu café/ Suas riquezas, praias, cachoeiras/ Quero ver o seu povo de cabeça em pé”. A música ainda fala: “Brasil do ouro/ Brasil da prata/ Brasil do balacochê/ Da mulata”.

“Não Recomendado” (pop, 2014) – Caio Prado
Na faixa “Não Recomendado”, a cantora Elza Soares dispara contra a perseguição à comunidade LGBT. Os recentes episódios de censura na Bienal do Livro do Rio, com o recolhimento de exemplares a pedido do prefeito Marcelo Crivella, e o cancelamento de produções cinematográficas por parte da Ancine, a mando do presidente Jair Bolsonaro, têm incomodado a artista. “É um absurdo tão grande que eu não sei nem o que falar. Homofobia é crime, já conquistamos essa vitória. Deixem a liberdade do povo em paz”, desabafa. A música foi composta por Caio Prado, e também lançada por ele, em um disco solo de 2014.

“Maria da Vila Matilde” (pop-rock, 2015) – Douglas Germano
Não é de hoje que Elza Soares representa a mulher sobrevivente, batalhadora, livre, dona de seus desejos e vaidades. Para coroar a carreira da octogenária intérprete nada melhor do que a canção “Maria da Vila Matilde”, peça que conjuga samba e música eletrônica, na veia da nova MPB, modernidade sem esquecer a tradição, bem ao estilo ousado e inquieto de Elza Soares. Denúncia clara à violência contra a mulher, a canção serviu para suscitar debates e cumpriu sua função social. Mais do que isso, exprimiu a arte de uma mulher talentosa, guerreira, determinada, que não abre mão de seus prazeres e é um símbolo de perseverança. Para a qual não existe idade, credo, gênero ou raça.

“Mulher do Fim do Mundo” (vanguarda paulista, 2015) – Alice Coutinho e Rômulo Fróes
Os tiros que fulminaram Marielle ainda ecoam, já que, até hoje, o Estado não identificou os mandantes do assassinato. Aquela noite sinistra de março de 2018, quando o seu motorista Anderson também foi executado, parece que nunca mais se dispersou. Na fatídica sequência, o ex-presidente Lula foi preso, abrindo espaço para a eleição do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro, defensor da tortura, da ditadura militar, do trabalho infantil e escravo, com uma pauta anticomunista três décadas após a queda do Muro de Berlim.

Dali poucos dias, Elza Soares realizou um show gratuito em Buenos Aires, na Argentina, e discursou para o público presente: “Querem matar os nossos sonhos, prender as nossas liberdades, não irão conseguir. Viva a democracia!”. Esse espírito indômito surge em “Mulher do Fim do Mundo”, disco renovador e emblemático da carreira de Elza, cuja faixa-título foi composta por Alice Coutinho e Rômulo Fróes, em uma mistura típica da nova geração de músicos paulistas, influenciados pelo samba, pelo rock e pela música eletrônica atual.

“O Que Se Cala” (vanguarda, 2018) – Douglas Germano
Embora retome a denúncia de temas urgentes como racismo e homofobia e clame pela liberdade sexual da mulher, Elza Soares procurou uma maneira distinta de embasar seu discurso em “Deus É Mulher”, disco de 2018. “Eu acho que ‘A Mulher do Fim do Mundo’ tinha uma coisa mais fechada, sisuda. Agora a gente queria algo mais solar, que desse a clareza e abertura, e a gente conseguiu, felizmente. Estamos de bocas e braços abertos”, disse.

“Eu Quero Comer Você” (Alice Coutinho e Romulo Fróes) reforça o tal “lugar de fala” a que Douglas Germano faz referência em “O Que Se Cala”, que abre o disco. “Acho de uma grandiosidade a mulher poder falar ‘eu quero dar pra você’, com toda a liberdade. A mensagem é de uma mulher forte, porque nós sempre abrimos caminhos, mas agora o nosso eco é mais ouvido”, assegura. 

“Não Tá Mais de Graça” (pop, 2019) – Rafael Mike
Em “Não Tá Mais de Graça”, Rafael Mike retoma a história da anfitriã Elza Soares, e rebobina os versos emblemáticos de “A Carne” (2002) a fim de atualizar o sentido daquele protesto. “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça/ O que não valia nada agora vale uma tonelada”, dispara, no refrão. A mesma composição menciona Wakanda, lar do super-herói Pantera Negra, e a vereadora Marielle Franco, cujo brutal assassinato ainda não foi solucionado pelas autoridades do Estado. “Estou gritando contra o racismo há muito tempo, demos uma acordada, mas ainda não é suficiente”, reclama Elza.

“Negão Negra” (rap, 2020) – Flávio Renegado e Gabriel Moura
“Nunca foi fácil, nunca será/ Para povo preto do preconceito se libertar/ Sempre foi luta/ Sempre foi porrada/ Contra o racismo estrutural barra pesada”, entoa Elza Soares, eleita a Voz do Milênio pela BBC de Londres, em “Negão Negra”, rap de Flávio Renegado e Gabriel Moura. “Essa música é tão importante para os dias de hoje. Não é só para o Brasil, não, cara. É para o mundo todo”, alerta ela.

No mês de maio, quando o estrangulamento de George Floyd, um homem negro, por um policial branco, desencadeou uma onda de protestos nos Estados Unidos, Elza se comoveu e disse: “Foi uma coisa que me machucou muito, mas eu só posso sentir e sofrer”. Em abril de 2021, em uma decisão que impactou todo mundo, o policial que assassinou Floyd foi condenado à prisão em seu país.

“Black Power” (samba rap, 2021) – Renegado, Umberto Tavares e Jefferson Júnior
“Renegado é um presente de Deus, que a gente ganha não sabe como, mas merece”, exalta Elza Soares. Em 2020, a dupla colocou na praça o clipe de “Negão Negra”, parceria do rapper com Gabriel Moura. As imagens trazem cenas impactantes e palavras de ordem. Surgem, depois, notícias de jornais escabrosas: “Exército dispara 80 tiros em carro de família no Rio e mata músico”. “Tiro que matou Eduardo no Alemão partiu de PM, mas nenhum é indiciado”. “Assassinatos de negros no país crescem 29% enquanto de brancos caem 25%”. Na mesma toada de combate ao racismo, Renegado e Elza lançaram, em 2021, o samba rap “Black Power” com mais um clipe de impacto.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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