*por Raphael Vidigal Aroeira
“Mas a morte uma guerra de enganos. As vitórias são só derrotas adiadas. A vida enquanto tem vontade vai construindo a pessoa.” Mia Couto
A primeira vez que a morte comparece é na terceira linha do primeiro parágrafo, e logo como plural. “Vamos tendo nossas mortes”, escreve Mia Couto, que, na sequência, define a oposição que estrutura toda a narrativa: “Mas parto foi um só”. A complexidade do conto “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar?”, decorre tanto da linguagem quanto da amplitude de assuntos capaz de evocar. No entanto, não passa despercebido que o acontecimento que dispara o falatório do narrador é um assassinato, questão que será discutida justamente a partir de uma concepção muito própria e pessoal sobre a morte – ainda que possa estar ancorada em uma noção de raiz profundamente cultural.
Dividido em quatro partes, o enredo se inicia com o protagonista dirigindo-se a um interlocutor, que, claramente, pertence a outro universo, sabidamente do ponto de vista social, como é explicitado no trecho: “O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever a minha história”. Ao leitor brasileiro, a identificação com o clássico “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, é imediata. Antes, é revelado o possível crime que levou ao encarceramento do narrador, numa fala repleta de nuances e sutilezas, que suspende uma suposta verdade inequívoca: “A minha mulher matei, dizem. Na vida real, matei uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela não tinha voz, morria sem queixar”.
Ora, nessa perspectiva, a morte ganha contornos mais positivos do que negativos. O ato do “assassino”, então, teria libertado a vítima, que, além de não se queixar, foi solta. Aqui, todavia, estamos diante somente da fímbria do adensamento proposto pelo autor. Afinal, somos autorizados a refletir acerca da essência ou identidade da mulher/pássaro libertada pelo narrador. Há apenas um fato incontestável: que essa libertação aconteceu através da morte.
E é à morte que o nosso protagonista também aspira, ou, ao menos, de aproximar-se dela: “Agora, doutor, quero só ser moribundo. Morrer é muito de mais, viver é pouco. Fico nas metades. Moribundo”. Essa condição entre a vida e a morte, mais precisamente da iminência da morte, é escolhida pelo narrador, que se explica, como ideal: “os moribundos tudo são permitidos. Ninguém goza-lhes. O respeito dos mortos eles antecipam, pré-falecidos. O moribundo insulta-nos? Perdoamos, com certeza. Cagam nos lençóis, cospem no prato? Limpamos, sem mais nada. Arranja lá uma maneira, senhor doutor. Desarasca lá uma maneira de eu ficar moribundo, submorto”.
A justificativa vem a seguir, retomando a oposição referida na abertura do texto: “Posso esperar, nunca consigo nada. O futuro quando chega não me encontra. Onde estou, afinal eu? O lugar da minha vida não é esse tempo?”. Os devaneios alcançam o leitor com a impressão de que a vida do narrador configurou-se num marasmo, e em que a esperança minguou até desaparecer. A opção pela morte, e mesmo a “proteção” de sua iminência, além de naturais surgem como a única saída possível.
É descrita, então, a história que culminou no desfecho, apenas aparentemente, “trágico”. O narrador conta que recebeu a visita do cunhado, Bartolomeu, desconfiado de que sua mulher fosse uma feiticeira, após dar vazão a gritos de hiena ao ser atingida pelas brasas de uma lenha acesa. A fim de tirar à prova se sua mulher não passa de uma feiticeira – como a irmã –, o narrador lança mão de artifício igualmente violento: “Olhei em volta e vi a panela com água a ferver. Levantei e reguei o corpo dela com fervuras”.
Com tal naturalidade e singeleza a cena vem à tona. O susto do leitor ante a violência é equiparável ao espanto do narrador. “Esperei o grito mas não veio. Não veio, mesmo. Ficou assim, muda, chorando sem soltar barulho”, escreve Mia Couto. A inevitabilidade da finitude dá as cartas nessa espécie de capítulo do conto, intitulado poeticamente “Asas no chão, brasas no céu”: “Mas a morte uma guerra de enganos. As vitórias são só derrotas adiadas”.
Medindo a morte de sua mulher, Carlota, o narrador chega à conclusão de que ela era um pássaro, por ter se despedido da existência sem revolta, aceitando, abnegadamente, toda violência lhe imposta. Ao sonhar com a falecida, ela conta que está a pilar suas lágrimas. “os mortos nascem todos no mesmo dia. Só os vivos têm datas separadas”, conjectura, a determinada altura, esse narrador que balança, continuamente, entre a poesia e a loucura, talvez irmãs gêmeas tanto quanto a vida e a morte, as duas faces da mesma moeda.
A gargalhada no enterro da mulher reflete essa concepção outra da morte, uma concepção não compartilhada por seus pares. Ao frio vil de uma insistência insalubre, o narrador vinga-se não com a perspectiva de quem avança em direção ao fim, mas com o calor de uma concentrada dedicação para seus interiores. Na concepção do narrador do conto, a morte não é um ponto de chegada, ela é vivida continuamente, com a paciência sub-reptícia de “uma pedra fechada à espera de ser areia”.
Referência
COUTO, Mia. Vozes anoitecidas. Lisboa: Caminho, 2006.