A poética do precário em “Menina a Caminho”, conto de Raduan Nassar

*por Raphael Vidigal Aroeira

“mal apanhadas no alto por um laço encardido que cai feito flor murcha” Raduan Nassar

Na prosa de Raduan Nassar, a poesia não está alheia à realidade, mas, ao contrário, uma converge para outra. Não é preciso mais do que sete linhas, atendo-se ainda ao primeiro parágrafo da história para se constatar que, a exemplo de João Cabral de Melo Neto, a secura da linguagem está a serviço da criação de imagens metafóricas que, ao usurpar do mundo real o referente para sua elaboração literária, preenche-o de sentidos sensíveis que, dessa maneira, aguçam características invisíveis ao olhar apressado, tornando-as latentes.

Estamos falando de “Menina a Caminho”, conto publicado na coletânea homônima de 1994, que, quatro anos depois, rendeu um Prêmio Jabuti ao autor. Logo no início da narrativa, surge a protagonista em sua caminhada, cujo corpo magro é comparado, de pronto, a um “tubo”. É a primeira intervenção no texto da poética sobre o precário. Feita uma descrição de suas roupas, o narrador passa para os cabelos, em que uma das tranças, “toda esfiapada, é presa por dois grampos se engolindo”. E, na sequência, as mechas da outra aparecem “mal apanhadas no alto por um laço encardido que cai feito flor murcha”.

Tal recurso se estende durante as próximas quarenta páginas, fato que demonstra o domínio literário do escritor paulista, ao criar e recriar continuamente inúmeras imagens poéticas em meio a uma narrativa de fôlego, não sacrificando o labor da palavra nem privilegiando o andamento da história em detrimento de seu projeto estético, fundado nessa mediação do real através do sensível, que, mais especificamente, confere espessura poética ao precário.

A base que sustenta o conto é, justamente, esse trajeto da protagonista, uma menina pobre, presumivelmente jovem, que, ao peregrinar por uma cidade interiorana do Brasil, num dia comum, se depara com acontecimentos tão banais quanto aterradores, sempre com a perspectiva do espanto de quem observa algo pela primeira vez e descobre o mundo. Ao mesmo tempo, essa condição de observadora demarca a exclusão da protagonista do círculo onde se desenrolam os eventos, o que é reforçado por frases ditas por diferentes bocas que a enxotam dos lugares quando ela é finalmente notada.

Fiquemos na primeira cena interativa do conto, quando a menina flagra alguns meninos, provavelmente da sua idade, arrastando “pelas orelhas” sacos de palha. Eis um dos poucos momentos em que ela não será tratada com hostilidade. Quando aparece Zuza, “rapazote que marcha na calçada do outro lado”, a trama muda de figura e insinua-se um conflito entre ele e os outros meninos, cujo ápice é o gesto obsceno do rapazote, logo captado, com malícia, por dona Ismênia, que tem “o rosto colorido que nem bunda de mandril”.

Também nesse trecho é inserida uma das questões prementes da narrativa, e que permanece oblíqua: a fofoca que se instala em torno do filho de seu Américo, dono do armazém da cidade. Ao término do diálogo entre Zuza e Ismênia, a menina é “expulsa” do local pelo jato de urina do cavalo sob o qual está acocorada para observar tudo. “Só quando o cavalo distancia as patas traseiras é que a menina repara, escondido no alto entre as pernas, e se mostrando cada vez mais volumoso, no seu sexo de piche”, descreve o narrador.

Assustada, ela se põe a correr “de boca aberta”, e só estaca quando um caminhão atravessa seu caminho. Ali, a menina com “o dedo enfiado no nariz”, vê passar o seu Giovanni, “com aquela cara triste de dor de cabeça (…) Anda sem parar, o olhar solto, o coração apertado. (…) passa os dias falando sozinho, como se procurasse um menino”, instante de rara beleza e melancolia que insere uma epifania quase chapliniana àquele contexto áspero.

Novo contraste se impõe à precariedade exposta pela menina diante de uma outra, igualmente menina, porém “de uniforme” que contém “saia azul e blusa branca”, com “andar altivo”, ao contrário da protagonista “suja e descalça, que come também com os olhos as tranças curtas, douradas, dois biscoitos de padaria”. Mas o autor reservará uma pequena vingança à sua menina, quando, mais adiante, na sala de aula da rígida professora Eudóxia, a dona das tranças douradas será responsabilizada pela flatulência que empesteia o ambiente. É a ironia como forma de chacoalhar uma existência opressiva, em que tudo se mostra insólito para a protagonista, sufocada por uma cultura de violência, machista, patriarcal, excludente e profundamente injusta.

Pois o título do conto de Raduan Nassar nos revela que essa menina, afinal, está a caminho desse beco sem saída, em que a violência perpetra a ignorância e aniquila corpos como o dela, mantidos na sombra da iniquidade, sem direito a reconhecer-se no espelho. Já no final, “a tala da cinta larga vibra no ar, um estalo terrível quando o couro desce na bunda da costureira”, e, assim, o pai tortura a mãe da menina, que, por enquanto, ainda brinca com as vizinhas…

Referência
NASSAR, Raduan. Menina a caminho. In: NASSAR, Raduan. Obra Completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 363-383.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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