De Jorge Aragão a Iza: Músicas brasileiras para o Dia da Consciência Negra

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Negro é uma cor de respeito
Negro é inspiração
Negro é silêncio, é luto
Negro é a solidão” Jorge Portela & Adilson Barbado

País da mistura e da diversidade, o Brasil ainda paga pela frase histórica de Joaquim Nabuco, incorporada por Caetano Veloso em música: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional”. A influência do negro e também do índio na cultura tupiniquim provém tanto desses dialetos, dos ditados populares, das expressões, quanto da dança, do jogo, da capoeira e, em especial, da canção. Assim como nos Estados Unidos, nossa maior vertente de composição popular se vê impregnada pela raiz africana. Do samba ao rock, à música soul, até a conformação da sigla MPB, também entendida como “música preta brasileira”, selecionamos importantes temas no combate ao racismo, essa prática tão carente de ritmo.

“O Canto dos Escravos” (domínio público, 1928) – Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Doca da Portela
Lançado pela Eldorado em 1982, o disco “O Canto dos Escravos” remonta a pesquisa empreendida por Aires da Mata Machado Filho na Chapada Diamantina no ano de 1928, quando recolheu “cantigas populares em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração”. Segundo ele próprio, foi através de “notas apressadas” que este tesouro da história nacional tomou forma e corpo, 53 anos depois, através das vozes de Clementina de Jesus, do sambista paulistano Geraldo Filme e do carioca Doca da Portela, trio extremamente identificado com as causas negras e o combate ao racismo no Brasil. Ao todo a coletânea apresenta 14 cantos e mais duas faixas extras.

“A Voz do Morro” (samba, 1955) – Zé Kéti
Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Kéti tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: “A Voz do Morro”, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela. Gravada por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme “Rio 40 Graus”, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e ganhou uma versão de Luiz Melodia em 1980.

“Na Cadência do Samba” (samba, 1962) – Ataulfo Alves e Paulo Gesta
O cantor e compositor Ataulfo Alves era também violonista, cavaquinhista e bandolinista, ou seja, um músico de primeira linha. Por tais qualidades inquestionáveis é que ficou em evidência até o fim de sua vida, mesmo com o advento da bossa nova e da jovem guarda em detrimento de seu particular samba, assim chamado pela intimidade que demonstrava nesse trato. Em 1962, compôs uma música com Paulo Gesta, interpretada por Elizeth Cardoso, de nome idêntico à outra que ficaria conhecida como fundo musical do futebol, assim chamada “Na Cadência do Samba”, em menção à despedida que ele desejava para si. Ficou marcada na memória da música popular brasileira a morosidade arrastada da melodia que encanta os versos alentadores: “Sei que vou morrer, não sei o dia. Levarei saudades da Maria. Sei que vou morrer não sei a hora. Levarei saudades da Aurora. Quero morrer numa batucada de bamba, na cadência bonita de um samba.” A cadência que seu autor deixou para a posteridade, como legado in contest de sua obra monumental, exposta nas melhores confraternizações e festejos musicais desse país chamado Brasil, rico de lendas para ninguém botar defeito.

“Chica da Silva” (samba-enredo, 1963) – Anescar do Salgueiro e Noel Rosa de Oliveira
Carnavalesco de primeira linha e horas a fio, Monsueto era também um grande intérprete, e foi o responsável por cantar na avenida o samba enredo do Salgueiro no ano de 1963, o histórico e inesquecível “Chica da Silva”, de autoria de Anescar do Salgueiro e Noel Rosa de Oliveira. A letra revive a trajetória de uma das mais simbólicas personagens do Brasil, a escrava mineira Chica da Silva, natural do Serro e que viveu em Diamantina, alforriada após se casar e ter treze filhos com o rico contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Chica aparece em outras letras do cancioneiro brasileiro, como, por exemplo, na música de Jorge Ben Jor. Embora tenha desfilado neste ano pelo Salgueiro, Monsueto nunca se vinculou a nenhuma escola de samba específica, sendo bem recebido em várias delas.

“O Morro Não Tem Vez” (samba, 1964) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes
“O Morro Não Tem Vez”, samba de andamento diferenciado, foi lançado no álbum “O Samba Como Ele É”, mas só alcançou reconhecimento quando Jair Rodrigues o cantou em dueto com Elis Regina no LP “Dois Na Bossa”, de 1965, acompanhados pelo Jongo Trio num pot-pourri que reunia ainda “Feio Não É Bonito” (de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri), “Samba do Carioca” (de Lyra e Vinicius de Moraes), “Este Mundo É Meu” (de Sérgio Ricardo e Ruy Guerra), “A Felicidade” (de Tom Jobim e Vinicius) e muitas outras canções de sucesso. Composta pela dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes, a composição chegava ao Brasil junto com o nefasto regime militar, que perduraria vinte anos, até 1985.

“Opinião” (samba, 1964) – Zé Kéti
A música composta por Zé Kéti sobre o processo de remoção de favelas que era executado pelo governo da Guanabara seria o mote perfeito para que, no final de 1964, os artistas pudessem dar o seu primeiro grito de liberdade silenciada. E foi também no ambiente do Zicartola, onde, segundo Zé Kéti, os compositores podiam cantar à vontade, que surgiu a ideia do musical homônimo. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, e com a direção de Augusto Boal, “Opinião” tornou-se um dos espetáculos mais bem sucedidos do teatro brasileiro, e consagrou definitivamente o sambista e poeta do povo Zé Kéti, que interpretava, mais uma vez, o malandro do morro carioca.

“Negro Gato” (Jovem Guarda, 1964) – Getúlio Côrtes
“O negro gato existiu mesmo. Era um gato que não me deixava dormir, ficava no telhado de zinco do meu barraco e toda noite me perturbava. E ele ficava me olhando, encarando. Pensei: ‘um dia isso vai me dar um retorno’. Mas demorou muito pra vir inspiração, foi quase um mês até ficar pronta essa música, que é também um pouco da minha história, porque eu sempre fui um cara sem recursos econômicos, então misturei as duas coisas”, conta Getúlio Côrtes, autor de “Negro Gato”, lançada pelo conjunto Renato e Seus Blue Caps em 1964 e regravada por Luiz Melodia em 1980, no disco batizado de “Nós”.

“Tributo a Martin Luther King” (sambalanço, 1967) – Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli
Wilson Simonal não era santo, e tampouco o diabo que o pintaram após o polêmico e controvertido envolvimento com as forças de segurança do Estado durante o período nefasto da ditadura militar do Brasil. Por outro lado, é inegável que representou uma vitória de classe, o negro que ascende de condição, circunstância rara no país, cuja exceção reside, justamente, em profissões de destaque e com pouco mercado, como a música e o futebol. Embora não fosse ligado a movimentos sociais, Wilson Simonal se afirmava, e identificava-se com a luta do negro nos Estados Unidos presidida por Martin Luther King, para quem compôs um tributo em parceria com Ronaldo Bôscoli.

“Sei Lá Mangueira” (samba, 1968) – Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho
Até hoje há fanáticos que não perdoam o fato de Paulinho da Viola, portelense de coração, ter criado a melodia para uma das canções mais emblemáticas em saudação à Mangueira, muito embora ele tenha feito, em seguida, “Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida” para a Portela. Hermínio Bello de Carvalho escreveu a letra de “Sei Lá Mangueira” logo após a sua primeira visita ao morro, inebriado com o que havia visto na companhia de Cartola e Carlos Cachaça. Lançada por Elizeth Cardoso em 1968, a música foi inscrita no IV Festival de Música Brasileira da Record, quando foi defendida por Elza Soares. A música levava Elizeth de volta a um ambiente que desde cedo ela aprendeu a apreciar.

“Negróide” (MPB, 1968) – Taiguara
Filho do bandoneonista gaúcho Ubirajara Silva e da cantora uruguaia Olga Chalar, o cantor Taiguara nasceu em Montevidéu, no Uruguai, no dia 9 de outubro de 1945, quando seus pais realizavam uma temporada de espetáculos no país sul-americano. Radicado no Brasil, Taiguara chegou a ser considerado o compositor mais censurado pela ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985, com 68 canções proibidas. Ao lado de artistas como Sérgio Ricardo e Gonzaguinha, ele jamais abandonou a militância política ligada à esquerda. Em 1968, Taiguara venceu o Festival Universitário de MPB, com a música “Helena, Helena, Helena”, e, no mesmo ano, levou o festival “Brasil Canta no Rio”, com “Modinha”. Também em 1968, gravou “Negróide”, com forte teor antirracista.

“Lapinha” (afrosamba, 1968) – Paulo César Pinheiro e Baden Powell
Valdemar de Tal ficou conhecido na Bahia como Besouro e também Cordão de Ouro, graças à sua valentia e habilidade como capoeirista. Figura lendária, ele inspirou o afrosamba “Lapinha”, que Baden Powell compôs com o, à época iniciante, Paulo César Pinheiro, um dos mais requintados letristas da música brasileira. Besouro foi assassinado por um golpe de faca, e seu nome correu ainda mais forte na Bahia a partir de sua morte. “Lapinha” fala sobre a passagem do herói para lenda. Lançada por Elis Regina na 1ª Bienal do Samba, promovida pela TV Record, venceu o concurso. A “Lapinha” da letra seria um local de festas.

“Heróis da Liberdade” (samba-enredo, 1969) – Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola
Silas de Oliveira morreu e nasceu numa roda de samba. Embora o pai não tenha concordado, por suas convicções pastorais e protestantes, Silas começou a ser Silas quando fundou, junto de seus pares, dentre eles o inseparável Mano Décio da Viola, a Escola de Samba do Império Serrano, e para sempre foi batizado entre batuques, pandeiros e tamborins. Mas é inegável que a principal contribuição de Silas se dá, em especial, nos terreiros dos sambas-enredo. Foi ao lado dele que Dona Ivone Lara tornou-se a primeira mulher a derrubar barreiras e preconceitos e invadir esse ambiente marcadamente masculino, com a coautoria de “Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio”, périplo que reconta a história de magia, aventura e sedução do Brasil imperial e a chegada do período republicano. Não foi sem méritos que a Império Serrano tornou-se a grande vencedora daquele carnaval de 1965. Também conta no vasto currículo de sambas-enredo criados por Silas de Oliveira, e que ultrapassaram as barreiras do tempo, a canção “Heróis da Liberdade”, que sofreu retaliações da censura.

“Negro É Lindo” (samba-rock, 1971) – Jorge Benjor
Jorge Benjor esbanjava sincretismo no álbum “A Tábua de Esmeralda”, um marco da cultura nacional, lançado em 1974. Três anos antes, porém, a posição de orgulho da raça se fazia enxergar no título do álbum de 1971, “Negro é Lindo”. Samba-rock bem ao caráter do compositor, que infundiu uma marca única e indissociável no nosso cancioneiro, tratado por muitos como revolucionário, a canção prega bem os valores de Jorge. Com seu habitual sotaque, sua inconfundível dicção e o ritmo próprio do violão, Jorge Benjor afirma sem meias palavras as qualidades da sua cor, e lança um aviso aos preconceituosos: “Negro é lindo/Negro é amor/Negro também é Filho de Deus”.

“Black Is Beautiful” (música soul, 1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Em plena ditadura militar no Brasil, no ano de 1971, os irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle lançaram um hino à beleza e força dos negros. Para tanto, fizeram uso de um dentre os inúmeros ritmos identificados com a causa, a “soul music”. Neste mesmo ano, Elis Regina, como era de costume ao interpretar qualquer canção, acrescentou ainda mais charme e vigor à música. “Black Is Beautiful” reage com indignação e coragem a todo o histórico de discriminação contra os negros, aos estereótipos e condições petrificadas pela escravidão, e ainda arremata com versos de erotismo e sensualidade pungentes: “Eu quero um homem de cor/ Um Deus negro/ Do Congo ou daqui/ Que se integre no meu sangue europeu…”.

“Oração de Mãe Menininha” (samba, 1972) – Dorival Caymmi
“Oração de Mãe Menininha” é um agradecimento sincero de Dorival Caymmi à iluminação que ele e a Bahia recebem da mãe-de-santo mais reverenciada de Salvador, apregoando sua crença no candomblé. Feita em comemoração aos 50 anos da ialorixá, Caymmi afirmou que o título da canção se pronuncia na boca do povo: “de Mãe Menininha”, assim como dizem “de Santo Antônio”. Samba lançado em 1972 que marcou terreiro nas vozes de Gal Costa, Maria Bethânia e Clementina de Jesus.

“Das 200 Pra Lá” (samba, 1972) – João Nogueira
Eliana Pittman nasceu no dia 14 de agosto de 1945, no Rio de Janeiro, e começou a carreira acompanhando o padrasto em shows de jazz e bossa nova em boates do Rio. Graças a sucessos como “Sinhá Pureza” e “Dança do Carimbó”, de Pinduca, ela ficou conhecida como a Rainha do Carimbó. Em 1972, Eliana lançou o primeiro sucesso de sua carreira, “Das 200 Pra Lá”, de João Nogueira, também conhecida como “Esse Mar É Meu”. Era a primeira gravação de uma música do promissor sambista e ela fez tanto barulho que chegou até a Venezuela, pela voz da cantora Nancy Ramos.

“Fio Maravilha” (samba-rock, 1972) – Jorge Benjor
Jorge Benjor é talvez o compositor brasileiro que mais escreveu sobre futebol. Porém, entre seus inúmeros sucessos no tema o maior deles é, sem dúvida, “Fio Maravilha”, lançado pela mineira Maria Alcina no Festival da Canção da TV Globo em 1972. A interpretação esfuziante de Alcina e os versos simples e bem harmonizados ao ritmo por Benjor certamente contribuíram para o êxito. Outro fato importante relacionado à música é a polêmica envolvendo o homenageado. João Batista de Sales, o Fio Maravilha, atacante do Flamengo famoso pela aparência exótica e por marcar gols esquisitos, acionou o compositor na Justiça exigindo o pagamento de direitos autorais pelo uso do apelido, o que levou Benjor a cantar “Filho” em versões posteriores. Fio acabou voltando atrás e permitindo que Jorge cantasse a música como no original. Mas o que ficou pra história, sobretudo, é o grito de gol dos fãs e da torcida brasileira.

“Podes Crer, Amizade” (música soul, 1972) – Tony Tornado e Major
Tony Tornado foi um estouro para os palcos de todo o país ao invadir a casa das pessoas pela televisão no Festival Internacional da Canção empunhando a música “BR-3” e dançando de maneira eufórica e entusiasmada, com o molejo próprio dos negros. Um ano depois, em 1971, invadiu com o punho em riste a apresentação de Elis Regina, no mesmo Festival, para saudá-la pela interpretação da música “Black Is Beautiful”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Saiu de lá algemado. Ícone da cultura negra, da resistência, do sucesso e da superação, Tony escreveu sua história na música, nas novelas e no cinema do Brasil. “Podes Crer, Amizade” confirma essa força do Tornado.

“Pérola Negra” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Luiz Melodia era contestado por ser negro e não compor samba, ainda mais sendo filho do histórico bamba Oswaldo Melodia, que lhe valeu o sobrenome artístico. Por essas e outras foi rotulado, quando de seu aparecimento, como “maldito”, ao lado dos compositores Sérgio Sampaio, Jorge Mautner e Jards Macalé, acusados de criações herméticas, de difícil assimilação pelo público. O sucesso de vendagens de discos e a popularidade crescente desmentiu o rótulo da mídia. Com sua poesia afiada, ferina, distante das obviedades, mas, ainda assim, comunicativa, Luiz Melodia compôs odes para a beleza, como a música “Pérola Negra”, uma canção de amor de 1973. Sem distinção plausível.

“O Rei Pelé” (rojão, 1974) – Jackson do Pandeiro e Sebastião Batista
No ano de 1974, já fora da Seleção Brasileira, Pelé realizou os seus últimos jogos com a camisa do Santos, que defendeu com galhardia e habilidade. Ao todo, foram 1.116 jogos e 1.091 gols vestindo o manto do Peixe, sem contar as cinco conquistas consecutivas de Taça Brasil, de 1961 a 1965, só interrompidas pelo Cruzeiro de Tostão que, em 1966, aplicou uma goleada de 6 a 2 no time da Vila Belmiro e ficou com o caneco. Para completar, Pelé levantou com o Santos duas Libertadores da América, em 1962 e 1963. O currículo era mais do que suficiente para que Jackson do Pandeiro, torcedor do Treze da Paraíba, prestasse as reverências com o rojão “O Rei Pelé”, a parceria com Sebastião Batista de 1974.

“Ébano” (MPB, 1975) – Luiz Melodia
Zezé Motta descobriu que Melodia se preparava para gravar alguns sucessos da carreira. “Fui ver e descobri que as músicas eram as mesmas que eu pretendia registrar, todas as que eu gosto muito, ‘Ébano’, ‘Pérola Negra’, ‘Questão de Posse’”, enumera. Daí o projeto deu uma nova guinada. “Desisti de imediato desta ideia, não podia competir com o autor!”, assume com outra sonora risada. Zezé resolveu então telefonar para Zé Pedro e confessar a incerteza, não sabia se fazia um disco em homenagem a Macalé ou a Luiz Melodia, mas priorizaria as canções menos conhecidas, deixando de fora os hits. Com sua verve exagerada, Zé Pedro não deixou por menos: “Ora, faça com os dois!”.

“O Mestre-Sala dos Mares” (samba, 1975) – João Bosco e Aldir Blanc
João Cândido Felisberto, conhecido como “Almirante Negro”, foi um militar da Marinha Brasileira que, em 1910, liderou a Revolta da Chibata, movimento que se rebelou contra os cruéis castigos, originários da época da escravidão, que continuavam a ser aplicados contra os marujos negros, mesmo após a abolição. Cansados de terem os seus corpos retalhados pela chibata, os marinheiros se revoltaram. Expulso, discriminado e perseguido pela Marinha, João Cândido morreu aos 89 anos, vítima de câncer, pobre e esquecido, no município de São João de Meriti, no Rio, onde se recolheu. Para saudar sua memória, João Bosco e Aldir Blanc compuseram, em 1975, o samba “O Mestre-Sala dos Mares”. A música foi lançada pelo próprio Bosco e regravada com primor por Elis Regina.

“Canto das Três Raças” (samba, 1976) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
Enquanto o coro do samba lhe monta um altar, a sereia do mar de Minas faz evocar a mata, o povo, a prata, o céu do sabiá e as forças da natureza. Clara Nunes acende velas, meche os chocalhos, leva fé para os corações que batucam samba e se banham em manjericão. Espalha alegria da Bahia a Minas, passando pela Portela. Rodando seu vestido longo e branco, Clara segue o ritmo da morena de Angola com sua voz brasileira de profissão esperança. Uma voz que traz o ouro de Minas banhado pelo mar salgado da Bahia e acompanha um sorriso espontâneo coroado por flores e conchas que lhe enfeitam os cabelos. Um brilho mestiço que se encontra nos olhos, no sorriso e no canto místico de Clara Nunes. No folclore da sereia brasileira que iluminou as minas de ouro dos corações marejados. Em 1976, Clara lançou “Canto das Três Raças”, samba de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte.

“Manhã Brasileira” (samba, 1977) – Manacéia
“Quando amanhece/ O céu resplandece/ Os raios do sol a brilhar/ Os passarinhos começam a cantar/ Anunciando a manhã brasileira/ Gorjeando sobre a mais alta palmeira/ Todos cantam com alegria/ Como é tão lindo ver o romper do dia”. São de Manacéia a voz e o cavaquinho que introduzem os primeiros versos de “Manhã Brasileira”, na gravação feita em 1979 para o disco “Negritude”, de Zezé Motta, que surge em cena logo em seguida. A música foi lançada em 1977, no álbum “Samba Pé no Chão”, da cantora Luiza Maura. Em 2008, Zeca Pagodinho voltou a interpretar Manacéia, em um pot-pourri que contemplava, além de “Manhã Brasileira”, as músicas “Falsas Juras” e “Pecadora”. O álbum coletivo “O Samba É Minha Nobreza” trouxe nova versão.

“Mandamentos Black” (baile, 1977) – Gerson King Combo, Augusto César e Pedrinho
Gerson King Combo talvez tenha representado como ninguém a voz dos que não eram ouvidos naqueles idos de 1970. Num país amordaço pela ditadura militar e a censura prévia, os silêncios se faziam muitos, por toda parte. No entanto, havia uma parcela da população que, mesmo em tempos ditos, institucionalmente, democráticos, eram os últimos da fila. A periferia se apoderou, paulatinamente, dos meios de comunicação, até alcançar o rap e o funk carioca. No entanto, foi com Gerson King Combo, em 1977, que esses bailes começaram a ferver. “Mandamentos Black”, parceria com Augusto César e Pedrinho, fala, de maneira simples, o que o povo queria ouvir e dizer.

“Negra Melodia” (reggae, 1977) – Jards Macalé e Wally Salomão
Jards Macalé e Wally Salomão escreveram “Negra Melodia” pensando em Luiz Melodia, amigo de ambos. A música é uma exaltação bem ao estilo da dupla, e também ao feitio do homenageado. Prepondera a mistura de influências e a miscigenação de linguagens que formou a própria sociedade brasileira. Não por acaso, o idioma português se mescla ao inglês em determinadas passagens da letra. Lançada por Jards Macalé em 1977, no álbum “Contrastes”, ela só recebeu a voz de Luiz Melodia em 2005, em dueto com Macalé. Antes, foi regravada por Itamar Assumpção, Margareth Menezes e Lenine, até dar nome ao disco lançado por Zezé Motta em 2011, dedicado ao repertório de Luiz Melodia e Jards Macalé. O ritmo de reggae se abre a fusões.

“Dia de Graça” (samba, 1978) – Candeia
O impulso é irresistível. Não se passam cinco minutos de conversa sem que Luiz Antonio Pila, solte a voz. “Negro acorda é hora de acordar, não negue a raça/ Torne toda manhã dia de graça/ Negro não se humilhe nem humilhe a ninguém/ Todas as raças já foram escravas também/ E deixa de ser rei só na folia e faça da sua Maria uma rainha todos os dias/ E cante o samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de verdade”, entoa o diretor de “Candeia”, documentário em homenagem ao sambista carioca Antonio Candeia Filho (1935-1978), nascido e criado no bairro de Oswaldo Cruz.

“Sarará Miolo” (tropicália, 1979) – Gilberto Gil
O tropicalista Gilberto Gil sempre empunhou, dentro de suas principais propostas e demandas, a bandeira do movimento negro e contra o preconceito racial no Brasil. Figura de destaque, proativa, Gil conta ainda com uma gama de recursos e influências, raramente se valendo do artifício panfletário. O compositor costuma abordar o tema de maneira perspicaz, sábia, a que melhor atingia o coração e a consciência. Além dos trabalhos relacionados a Bob Marley, trafegou pelos blocos negros do carnaval da Bahia, como o “Ilê Ayê”, e dedicou o disco “Realce” quase que inteiramente a esse tema, só que em múltiplas abordagens. Um dos exemplos é a espirituosa “Sarará Miolo”, de 79.

“Nego Dito” (vanguarda, 1980) – Itamar Assumpção
São raros os artistas de vanguarda que não se valem de uma sólida formação pautada na tradição. O pintor Wassily Kandinsky, inventor do abstracionismo nas artes plásticas, baseava suas criações no folclore, nos rituais xamânicos dos índios de sua região e nos contos de fada. Qualquer semelhança com a música de vanguarda proposta por Itamar Assumpção em terras tupiniquins não é mera coincidência. Sua obra está recheada de referências desse tipo, por exemplo, nas canções “Sutil” (“muita areia para o meu caminhãozinho”) e “Aprendiz de Feiticeiro”. Mas é em “Nego Dito”, lançada no álbum de estreia, em 1980, que Itamar tece este encontro da maneira mais radical. A expressão popular pinçada não poderia ser outra do que “mato a cobra e mostro o pau”.

“Brasil Mestiço, Santuário da Fé” (samba, 1980) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
A mineira Clara Nunes, natural de Caetanópolis, no interior do estado, foi, sem dúvida alguma, a principal voz do sincretismo religioso no Brasil. Ao aderir à umbanda e ao candomblé, cravou sua marca no nosso samba já de tantas intérpretes e interpretações. Além dos adereços, das danças, e do cabelo, Clara se portava como uma autêntica filha da influência africana no país. Interpretava as músicas com esse sentimento. O samba “Brasil Mestiço, Santuário da Fé”, composição feita especialmente para ela pelo marido Paulo César Pinheiro e o parceiro Mauro Duarte, em 1980, comprova essa tese. O batuque da Cabala, da Umbanda e da Luanda se integram no canto de Clara.

“Sorriso Negro” (samba, 1981) – Jorge Portela e Adilson Barbado
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça. “Sorriso Negro” foi um presente dos amigos Jorge Portela e Adilson Barbado para gravar no álbum da cantora de 1981, que recebeu este título. Verdadeira música de afirmação e de combate ao racismo, ela confirma em seus versos: “Negro é a raiz da liberdade”. Essa música foi regravada pelo Fundo de Quintal e por Mart’nália.

“Olhos Coloridos” (música soul, 1982) – Macau
Sandra de Sá surgiu no embalo da soul música brasileira capitaneada por Tim Maia, e que contava ainda com Cassiano, Hyldon e Lady Zu. Com sua voz rascante e interpretação visceral era chamada por Cazuza de “a nossa Billie Holiday”. As atitudes de Sandra dentro e fora do palco sempre foram indissociáveis, exemplo de artista que se entrega ao ofício e vive a vida em cada música. “Olhos Coloridos” encontrou a intérprete perfeita em Sandra. Essa música de Macau, lançada em 1982, tornou-se emblema e manifesto do orgulho negro, além de um puxão de orelhas aos desavisados. “Todo brasileiro tem sangue crioulo”, avisa antes de entrar no refrão que exalta o cabelo sarará.

“Zé do Caroço” (samba, 1985) – Leci Brandão
Leci Brandão nasceu no Rio de Janeiro, no dia 12 de setembro de 1944. Cantora e compositora, ela iniciou a carreira na década de 1970, tornando-se a primeira mulher a participar da ala de compositores da Mangueira, sua escola de coração. Ela também atuou na novela “Xica da Silva”, da Manchete. Entre seus maiores sucessos, estão músicas como “Zé do Caroço”, “Só Quero Te Namorar”, “Fogueira de Uma Paixão” e “Negro Zumbi”. Primeira cantora de destaque da música brasileira a se declarar homossexual publicamente, numa entrevista, em 1978, para o jornal “Lampião da Esquina”, dedicado ao público LGBTQIA+, a sambista Leci Brandão filiou-se ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em 2010 e se elegeu deputada estadual por São Paulo, com mais de 85 mil votos.

“Lágrimas do Sul” (Clube da Esquina, 1985) – Milton Nascimento e Marco Antônio Guimarães
A linguagem das melodias e das letras do “Clube da Esquina” e de seu mentor mais conhecido, o mineiro de coração, mas carioca de nascimento Milton Nascimento, se harmonizam numa aparente discrição, cuja força perene dos versos ressoa pela suavidade das notas, da imprescindível elegância. Porém, e mais de uma vez, quando é necessário, essa voz se insurge de maneira arrebatadora e menos quieta. Exemplo pronto é a música “Lágrimas do Sul”, parceria com Antônio Guimarães que integra o disco de Milton “Encontros e Despedidas”, lançado em 1985. Sem abrir mão da poesia, da delicadeza, da sensibilidade, Milton Nascimento combate o racismo e exalta a força africana.

“Coisa de Pele” (samba, 1986) – Jorge Aragão e Acyr Marques
Copo na mesa, borbulha a cerveja e ferve o salão. Com o corpo ajeitado para segurar no laço o cavaquinho, Jorge Aragão dá início à festa. Sem cerimônia, convida para apreciar o barulho que vem do fundo do nosso quintal. Um sem número de sucessos postos à boca do povo enquanto todos se balançam no ritmo do pagode, confraternização acima de tudo, antes conceito do que número. Vindo do centro do Rio de Janeiro, coração do samba, Jorge Aragão põe raiz no seu pagode, revigora-se com pitadas de espontaneidade, e sorrisos difusos para o público, a quem trata como amigos, reunidos na roda da vida. Em 1986, ele lançou o sucesso “Coisa de Pele”, parceria com Acyr Marques.

“Meu Homem” [Carta a Nelson Mandela] (samba, 1988) – Martinho da Vila
Com o acompanhamento de Raphael Rabello no violão de 7 cordas, Martinho da Vila registrou, em 1990, no álbum “Martinho da Vida”, a composição de sua autoria que já havia sido lançada dois anos antes, em 1988, por Beth Carvalho, no LP “Alma do Brasil”. Na canção, o sambista descreve um sonho em que, libertos de preconceitos, os ensinamentos do líder sul-africano, Nelson Mandela, são seguidos, até que no final lembra-se dos tristes tempos do Apartheid e roga para que um dia os sonhos sejam somente doces. “Meu Homem [Carta a Nelson Mandela]” combina, em seu percurso, melancolia e sensualidade, tanto na interpretação de Martinho da Vila quanto na de Beth Carvalho.

“Protesto do Olodum” (axé, 1988) – Tatau
Um dos maiores sucessos carnavalescos de 1988, a música “Protesto do Olodum” contraria em muito a fórmula utilizada pela maioria para emplacar canções de axé no período. Com um texto forte que cobra melhorias do estado para a população nordestina em geral e de moradores do município de Cubatão, no interior de São Paulo, que sofriam com a poluição, e de Moçambique, assolada pela fome, a música de Tatau, um dos líderes do grupo Araketu, apela, como não poderia deixar de ser, ao exemplo de Nelson Mandela e Desmond Tutu na África do Sul. Regravada por nomes como Banda Mel, Margareth Menezes e Daniela Mercury, recebeu um registro com a presença das duas últimas mais o seu autor para a trilha do filme “Ó Paí Ó”, de 2007, estrelado por Lázaro Ramos e Wagner Moura e ambientado no Pelourinho, tradicional bairro de Salvador. A música foi lançada em disco no mesmo ano de 1988, em “Núbia Axum Etiópia”, pelo bloco-afro de carnaval posteriormente transformado em grupo cultural Olodum, criado em 1979 na capital da Bahia.

“Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós” (samba-enredo, 1989) – Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentino e Jurandir
Responsável por dar à Imperatriz Leopoldinense o título do Carnaval de 1989, o samba-enredo “Liberdade, Liberdade, Abre as Asas sobre Nós” é um marco da canção popular brasileira, tanto que o seu título tornou-se praticamente um ditado nacional, repetido para representar as mais diversas situações em que se apresenta a necessidade de escapar à repressão e clamar pela liberdade. Ainda hoje, este samba é considerado um dos mais representativos da história do Carnaval carioca. Niltinho Tristeza, o autor mais conhecido, ficou famoso depois que sua canção “Tristeza”, parceria com Haroldo Lobo, foi gravada por Jair Rodrigues, em 1966. Como se constata, Niltinho sabia versar sobre tristeza e liberdade com igual compreensão da força desses sentimentos na nossa vida. A composição foi regravada por Dominguinhos do Estácio, no LP “Gosto de Festa”, e Dudu Nobre.

“Dona Zica e Dona Neuma” (samba, 1990) – Nei Lopes, Carlinhos 7 Cordas e Zé Luiz
Duas personalidades do Carnaval carioca, ligadas à Estação Primeira de Mangueira, são homenageadas no samba “Dona Zica e Dona Neuma”, composto pela tríade formada por Nei Lopes, Carlinhos 7 Cordas e Zé Luiz. Última esposa de Cartola, Dona Zica tornou-se conhecida Brasil afora quando fundou com o marido o histórico bar Zicartola, que recebia bambas como Paulinho da Viola, Zé Kéti, Nara Leão, Nelson Cavaquinho, dentre outros. Fundadora do Bloco dos Arengueiros, que deu origem à Mangueira, e considerada Primeira-Dama da escola, Dona Neuma recebia em casa Noel Rosa, Villa-Lobos, Tom Jobim, Chico Buarque. Nesse samba contagiante, de 1990, Alcione diz: “Foi descoberta a vacina que vence e domina, cura e fortifica”.

“Mandela” (música soul, 1990) – Guto Graça Mello e Ronaldo Barcellos
Em 1990, Sandra de Sá já havia acrescentado o “de” ao nome artístico, por uma questão de numerologia, e também era nome consagrado na cena da soul music brasileira. Com um histórico de canções que não cansavam de incensar o orgulho da cultura negra, a intérprete deu o seu pitaco na história de Nelson Mandela ao gravar no álbum “Sandra!” a composição “Mandela”, composta por Guto Graça Mello e Ronaldo Barcellos. Com a habitual agilidade e leveza Sandra conduz o ouvinte ao percurso de paz e liberdade plantado pelo líder sul-africano no continente da África e em outros lugares do mundo, como o próprio Brasil e Portugal.

“Mama África” (MPB, 1995) – Chico César
Chico César conta que estava em um táxi quando melodia e letra de “Mama África” apareceram em sua cabeça e, sem estar munido de lápis, caneta, ou um gravador, começou a repeti-las insistentemente na cabeça para não esquecer, deixando inclusive de dar atenção à irmã. Natural de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, a inspiração apareceu quando, de mudança para São Paulo, ele observou, em um grande mercado, diversas mães que em meio ao trabalho também tinham que se preocupar em amamentar os filhos. Daí os versos que descrevem essa realidade. No fundo a música é uma homenagem não só à figura da mãe, mas, acima de tudo, um hino à coragem da mulher brasileira, que contra todos os preconceitos e percalços traça o seu caminho com determinação e coragem.

“Axé de Olorum” (axé, 1996) – Tuca, Wellington Epiderme Negra e Nego do Barbalho
O mais antigo bloco-afro da cidade de Salvador, na Bahia, foi criado em 1974 por Antônio Carlos dos Santos, conhecido como o Vovô, e Apolônio de Jesus, no bairro da Liberdade. Com participação na coletânea “Tropicália – 30 anos”, ao lado de nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Pepeu Gomes, Daniela Mercury e outros, o “Ilê Aiyê” lançou através dos compositores Tuca, Wellington Epiderme Negra e Nego do Barbalho em 1996 o “Axé de Olorum”, no disco “Canto Negro”. A canção, além de conter no nome uma referência ao Criador de acordo com a religião yorùbá, e discorrer ao longo de toda a letra sobre figuras e locais emblemáticos da história da África, não deixa de fora uma menção honrosa ao líder sul-africano Nelson Mandela, segundo contam acompanhados das batidas dos tambores: “E desde os tempos passados que os negros sofrem/ Mas reivindicam os direitos até a morte/ Ilê Mandela, Ilê Aiyê Mandela/ A felicidade lhe espera”.

“Mand’ela” (MPB, 1996) – Chico César e Zeca Baleiro
De forma bem humorada e espirituosa a dupla de nordestinos Chico César e Zeca Baleiro, o primeiro paraibano e o segundo maranhense, criou em 1996 uma inusitada homenagem para o líder sul-africano Nelson Mandela. Lançada pelo mineiro Maurício Tizumba, em seu álbum de estréia “África Gerais”, no qual incluiu uma citação à cidade de Sabará, a canção usa e abusa do jogo de palavras para se referir à cultura negra em vários dos seus aspectos, além de uma impagável brincadeira com o nome do arcebispo da Igreja Anglicana, Desmond Tutu, um dos principais aliados de Nelson Mandela na luta para a implantação da paz e contra o “Apertheid”, o regime de discriminação racial contra negros e a favor dos brancos na África do Sul. “Mand’ela” foi posteriormente gravada por Chico César, um dos seus autores, no álbum “Cuscuz Clã”, no mesmo ano de 1996.

“Diário de Um Detento” (rap, 1997) – Mano Brown e Jocenir Prado
O presidente Jair Bolsonaro afirmou que pretendia conceder um indulto para perdoar policiais envolvidos em massacres, entre eles o do Carandiru, que em 1992 terminou com a morte de 111 detentos. A chacina inspirou a música com a qual o grupo Racionais MC’s faturou os prêmios de melhor vídeo de rap e videoclipe do ano no Video Music Brasil, da MTV, em 1998, além de conseguir a segunda colocação na lista que elegeu o melhor videoclipe brasileiro de todos os tempos, em votação promovida pelo jornal Folha de S. Paulo, em 2012. Lançada em “Sobrevivendo no Inferno” (1997), a faixa “Diário de um Detento”, com seus oito minutos de duração, é um desses capítulos históricos e controvertidos na trajetória do Racionais. A despeito da vontade do presidente, o Código Penal brasileiro vetaria os indultos, por se tratar de casos não encerrados judicialmente ou enquadrados na categoria de crimes hediondos.

“Sá Rainha” (MPB, 1999) – Mauricio Tizumba
Mauricio Tizumba é um militante da causa negra nas Minas Gerais e no Brasil. Ator, compositor e cantor, natural de Belo Horizonte, movimenta a cena na capital e pelo interior do Estado, com participações em peças de teatro pela “Cia. Burlantins”, formada exclusivamente por atores negros, e até em especiais de televisão, como no caso da novela “Saramandaia”, exibida pela Rede Globo em 2013. Tizumba é um dos principais entusiastas do Congado, da Folia de Reis e de outras manifestações típicas do interior de Minas trazidas pelos povos africanos ao Brasil. Na música “Sá Rainha”, lançada no álbum “África Gerais”, o músico utiliza sua descontração para criticar o preconceito.

“Identidade” (samba, 1999) – Jorge Aragão
Jorge Aragão é bem direto na música “Identidade”, ao abordar o preconceito que acontece de maneira velada no país. Ao discriminar o elevador como o ambiente dessa prática, Aragão faz um recorte para ser mais incisivo ao diagnosticar costumes tristemente enraizados. O samba lançado em 1999 discorre também sobre frases de preconceito racial históricas no Brasil, dentre elas a do tal “preto de alma branca”. Sem perder o ritmo e o suingue, Aragão mostra o descompasso de país formado essencialmente pela miscelânea, mas que relega muitos daqueles que o construíram a posições inferiores, com pouca perspectiva de ascendência social. A não ser pelo elevador de serviço…

“Festa de Caboclo” (samba, 2001) – Martinho da Vila
Martinho da Vila foi buscar em suas raízes angolanas a inspiração para trabalhos mais recentes. Observador arguto do cotidiano, cronista dos nossos costumes em músicas, o segundo compositor mais famoso de Vila Isabel sempre aliou o humor às suas críticas sociais, como no exemplo de “Pequeno Burguês” que, sem se dirigir diretamente ao negro, mostra a triste situação do pobre no país, que invariavelmente possui a cor dos escravos que, segundo Joaquim Nabuco, ainda determinam nossa característica nacional. “Festa de Caboclo” é celebrada no terreiro de Martinho da Vila, que estende a todos o convite, sem distinção de gênero, cor, ou classe. A união que a música aspira.

“Sou Negrão” (rap, 2001) – Rappin’ Hood
Desde os primórdios, o rap nacional bebia na fonte do samba e suas diversas intersecções com a música negra. Os próprios Racionais MC’s e Mano Brown já apresentavam influências trazidas por Jorge Ben Jor, assim como o rapper Athalyba Man se aproximava da canção de tradição romântica. O histórico de engajamento político e da crítica social presente nas letras dos Racionais MC’s, Sabotage, MV Bill, Rappin’ Hood e Black Alien legou à música brasileira canções potentes e atemporais, que não disfarçavam a dura realidade. Um dos exemplos mais bem acabados é “Sou Negrão”, rap em que Rappin’ Hood não abaixa a cabeça nem abre mão da sua liberdade de ir, vir, ser e estar: “Sou negrão, certo sangue bom/ 20 de novembro temos que repensar/ A liberdade do negro, tanto teve de lutar/ O negro não é marginal, não é perigo”, dispara.

“A Carne” (rap, 2002) – Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti
Composição de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, a letra de “A Carne” explora o racismo estrutural presente na sociedade brasileira. Interpretada por Elza Soares, a faixa está presente no álbum “Do Cóccix Até o Pescoço”, lançado em 22 de abril 2002. Já ao longo do repertório de “Planeta Fome”, de 2019, Elza reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “Passei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está passando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma.

“Respeitem Meus Cabelos, Brancos” (MPB, 2002) – Chico César
Ao se nutrir de “músicas que apontam para a questão negra”, Xenia França trouxe referências ligadas a jazz, música cubana, samba-reggae, rock e candomblé. “Tudo o que vem dessa ancestralidade me atravessou, e eu transmiti essa diáspora com o meu jeito de fazer música”, observa. Xenia ainda ressalta que, na verdade, foi “escolhida pelas canções”. Uma dessas a marcou desde a infância, quando ela ouvia, no rádio, “Respeitem Meus Cabelos, Brancos”, do paraibano Chico César.

“O Processo” (rap, 2003) – BNegão
Pouco tempo depois de ser anunciado o fim da banda Planet Hemp, BNegão gravou seu primeiro disco com os Seletores de Frequência, inaugurando uma nova fase na carreira. Mas pouca gente no Brasil ficou sabendo disso. No aniversário de 15 anos do lançamento de “Enxugando Gelo”, o álbum ganha uma reedição em vinil e prometida turnê, ainda sem datas definidas. “Esse é um disco fundamental na minha trajetória. Quem quiser saber qual é o meu lance tem que ouvi-lo. Ele marca essa quebra geral. Desde então, meu norte é misturar o social com o espiritual, algo que comecei um pouco antes desse disco”, destaca BNegão. Colocado no mercado em 2003, o álbum trouxe faixas como “O Processo”.

“Brasis” (rock, 2005) – Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano
Elza Soares já havia afirmado com todas as letras em seu disco anterior que “Deus É Mulher”. Pouco mais de um ano depois, ela colocou na praça “Planeta Fome”, onde clama por um país materno. “Não pode deixar a criança no chão quando ela precisa de colo, o Brasil sempre foi um país acolhedor, que as pessoas gostavam de visitar, hoje não está mais assim”, lamenta. Ao regravar “Brasis”, de Seu Jorge, Gabriel Moura e Jovi Joviniano, Elza brada: “Oh, Pindorama eu quero o seu porto seguro/ Suas palmeiras, suas feiras, seu café/ Suas riquezas, praias, cachoeiras/ Quero ver o seu povo de cabeça em pé”. A música ainda fala: “Brasil do ouro/ Brasil da prata/ Brasil do balacochê/ Da mulata”.

“Som de Preto” (funk, 2005) – Amilcka, Chocolate e Baby
“Pulsos e camadas sutis que se acumulam, como um pano de fundo misterioso, uma camada de suspense que é liderada por um ponto minimalista, sinuoso, causando uma sensação estranha, um ritmo deslizante, solto, um tanto imprevisível”. Com essas palavras, o pesquisador e jornalista Gabriel Albuquerque, natural do Recife, procura desvendar a marca de um gênero que, não raro, é tachado de pobre, violento e pornográfico. Em 2005, o trio MC Amilcka, Chocolate e Baby colocou na praça um dos maiores sucessos do gênero, o “Som de Preto”, que ia fundo e direto na questão do preconceito racial. “É som de preto, de favelado/ Mas quando toca ninguém fica parado…”.

“Te Amo, Família” (pop, 2007) – Carlinhos Brown e Michael Sullivan
Carlinhos Brown foi casado com Helena Buarque, filha de Chico Buarque e Marieta Severo, e teve, com ela, quatro filhos, incluindo Francisco e Clara, que participaram do último disco do avô famoso, “Caravanas”, de 2017. Como se vê, a árvore genealógica de Carlinhos Brown é poderosa. Logo, não espanta que, em 2007, ele tenha lançado “Te Amo, Família”, um pop cheio de ambientações, em parceria com o hitmaker Michael Sullivan. Na letra da canção, o mais paternal dos jurados do programa The Voice Brasil homenageia a memória de sua família: “Eu me lembro, tia Nazaré/ Eu me lembro, tia Salomé/ Não esqueço, tio João…”.

“Sinhá” (MPB, 2011) – Chico Buarque e João Bosco
Questões sobre a formação da identidade nacional aparecem em “Sinhá”, composição que reúne os craques Chico Buarque e João Bosco, e que ganhou uma versão com matizes africanas que a aproxima do período escravocrata abordado na letra. “A música africana tem vigor suficiente para se fazer reverberar. Vez por outra, ela nos obriga a reverenciá-la diante de sua força e memória. Infelizmente, acredito que hoje nós estamos ainda mais distantes de deixarmos de ser um país racista. A escravidão ainda existe no Brasil, não só em sua versão original, como em outras formas aperfeiçoadas pela ‘casa grande’ atual”, lamenta João Bosco, que a regravou em 2019 no CD “Mano Que Zuera”.

“Velhos de Coroa” (MPB, 2012) – Sérgio Pererê
“Por ser compositor e ter muito a dizer, eu acabei priorizando, a vida inteira, as minhas composições, mas, ao mesmo tempo, convivi, desde cedo, com influências trazidas pelo meu pai, que era seresteiro, e cresci escutando, ao lado de minhas irmãs, muita MPB e até artistas de fora, como Michael Jackson e James Brown”, conta Sérgio Pererê. Em 2012, Titane lançou uma de suas mais bonitas canções, “Velhos de Coroa”, que recebeu regravação da cantora Fabiana Cozza em 2015, no álbum “Partir”. “É de lei e é de vera/ É de lua, é de luar/ Quando um negro velho canta/ Faz as estrela brilhar/ E a lua canta junto/ Com o negro no congá”, diz a letra.

“Mandume” (rap, 2015) – Emicida, Drik Barbosa, Rico Dalasam, Raphão Alaafin, Muzzike e Amiri
Canção do álbum “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa”, de 2015, do Emicida. Gravada com a participação de Drik Barbosa, Rico Dalasam, Raphão Alaafin, Muzzike e Amiri, a música presta homenagem a Mandume, um rei angolano que resistiu bravamente às invasões europeias, e que serve de inspiração para as novas gerações. “A primeira fase do rap no Brasil era festiva. Ser realista não é ser pessimista. Tivemos grandes cronistas que cantavam sua realidade sonhando com dias melhores”, garante Emicida, e dá como exemplos a música “Senhor Tempo Bom”, de Thaíde, e a ida do grupo Black Juniors ao programa “Os Trapalhões”, em 1984.

“É O Poder” (rap, 2016) – Karol Conká
No augue do sucesso, o rap, enquanto gênero, sofreu com a febre do meme “Nutella x Raiz”. O rap Nutella supostamente priorizaria um discurso calcado nas relações afetivas e na ostentação de bens materiais, em detrimento do histórico engajamento político e da crítica social presentes nas letras de nomes fundamentais como Racionais MC’s, Sabotage, MV Bill, Rappin’ Hood e Black Alien. “É O Poder”, de Karol Conká, pertence a esse segundo time, o chamado rap Raiz, onde a crítica social e o engajamento ditam as regras. “É o poder, aceita porque dói menos/ De longe falam alto, mas de perto tão pequenos/ Se afogam no próprio veneno, tão ingênuos/ Se a carapuça serve, falo mesmo”, diz.

“As Caravanas” (MPB, 2017) – Chico Buarque
Era um projeto tão secreto que nem os envolvidos sabiam de tudo. O telefone de Rafael Mike tocou e, do outro lado da linha, o empresário do músico avisou que ele deveria ir correndo para os estúdios da gravadora Biscoito Fino, no Rio. Mike imediatamente entrou em contato com o seu produtor e pediu que ele levasse um celular, pois a bateria do seu aparelho estava acabando. Ainda brincou: “Vai que é o Chico Buarque que está lá?”. Mais tarde, a ousadia da traquinagem se confirmou como espécie de premonição. “De repente, entra o Chico Buarque na sala falando: ‘Cadê o Mike?’”, recorda. Logo, os dois começaram a conversar sobre futebol e a lamentar o momento do Fluminense, time do coração de ambos. Além disso, gravaram o videoclipe de “As Caravanas”, faixa que batizou o mais recente disco de Chico, de 2017, e que contou com uma batida de funk feita por Mike. A música retrata o abismo social.

“Ponta de Lança” (rap, 2017) – Rincon Sapiência
Rincon Sapiência começou a chamar atenção na cena com seu discurso moderno e contemporâneo. Uma das provas é o comentário mais “curtido” no link de seu primeiro álbum, disponibilizado no YouTube. “Gosto de ouvir Rincon Sapiência porque me sinto empoderada”, escreveu Ivy Vasconcelos, uma jovem fã do rapper paulistano que, ao surgir, ainda assinava Rincon X, MC Shato ou Manicongo, sendo que esta última alcunha aparece numa das faixas de “Galanga Livre” (2017), com a produção e 13 faixas autorais de Rincon. Ao longo do álbum, títulos como “Crime Bárbaro”, “A Coisa Tá Preta”, “Ostentação à Pobreza” e “Ponta de Lança” anunciam, de cara, o que vem por aí, reforçados por versos do tipo: “meu verso é livre/ ninguém me cancela/ tipo Mandela/ saindo da cela/ (…) partiu para o baile, fugiu da balela/ batemos tambores, eles: panela”.

“Breu” (pop, 2017) – Lucas Cirillo
Música do primeiro álbum solo de Xênia França, escrita por Lucas Cirillo, é uma homenagem a Cláudia Silva Ferreira, conhecida como Cacau, que foi assinada pela Polícia Militar, no Rio de Janeiro, em 2014, enquanto caminhava para comprar comida para seus quatro filhos. A canção relata as dificuldades de ser uma mulher negra no Brasil. Depois de gravar com Emicida e chamar atenção da crítica na banda Aláfia, ela estreou no mercado fonográfico com “Xenia”, indicado ao Grammy Latino de 2018 nas categorias melhor álbum pop e melhor canção em língua portuguesa, por “Para Que Me Chamas?”. “Sou uma mulher baiana e preta vivendo na cidade de São Paulo. Busquei expressar as agressões que sofri e que ainda me incomodam, para eu me sentir representada”, afirma.

“Bluesman” (blues, 2018) – Baco Exu do Blues
Um homem de pele morena, olhos castanhos, de estatura mediana, com barba e cabelos crespos. Depois de pesquisas com especialistas forenses em reconstruções faciais realizadas na Inglaterra, parte do mundo científico resolveu oferecer esta como a verdadeira imagem de Jesus Cristo, contrariando séculos de identificação europeia com o sujeito loiro de cabelos claros e pele branca, retratado inúmeras vezes em consagradas obras de arte. Pois o rapper Baco Exu do Blues, que acaba de lançar seu segundo álbum, dispensa a ironia em favor de uma contestação explícita. O filho de Deus é citado nominalmente em duas faixas de “Bluesman”, que, além de ser o nome do disco, batiza a música de abertura, onde ele afirma: “Jesus é blues”. A explicação da sentença vem imediatamente antes: “Tudo que quando era preto era do demônio e depois virou branco e foi aceito eu vou chamar de blues”.

“Boca de Lobo” (rap, 2018) – Criolo, Daniel Ganjaman e Nave
Mais de uma vez, Criolo passou pela mesma situação. Acompanhado por seu pai, ele entrava em um pequeno mercado no centro da cidade de São Paulo, e o fato se repetia. “Os seguranças ficavam nos seguindo até a gente perceber. O Brasil é um país racista”, declara. Foi esse constrangimento cotidiano que, aliado ao caso de Rafael Braga (condenado à prisão por portar uma garrafa de desinfetante durante as manifestações de junho de 2013), deu o primeiro disparo para “Boca de Lobo”, parceria com os músicos Daniel Ganjaman e Nave. A canção, com mais de 60 versos, traz citações que vão do líder religioso Dalai Lama ao escritor argelino Albert Camus, passando pelo sucesso cinematográfico “La La Land”. A música também ganhou um videoclipe com outras referências.

“O Bicho” (MPB, 2018) – Doralyce
“Essa música está no repertório para que a gente não se esqueça dos nossos heróis e nossas heroínas. Marielle é mais do que uma pessoa, ela é as ideias que tinha, ela é tudo o que construiu, é uma fonte de inspiração para as mulheres pretas. Todas as mulheres pretas olham para ela como olham para Luísa Mahin, para Anastácia, para Dandara. Como uma heroína, como um símbolo de resistência, como uma mulher que lutou contra o racismo. Ela precisa ser lembrada”, introduz a pernambucana Doralyce, antes de entrar nos versos de “O Bicho”, onde ela não economiza na revolta contra a política que matou Marielle.

“Marielle Franco” (rap, 2018) – MC Carol
Ícones da nova geração de mulheres empoderadas, representando, cada uma a seu estilo, o reconhecimento em gêneros historicamente fechados a elas no papel de compositoras como o rap e o funk, MC Carol e Karol Conká, negras, faveladas e muito talentosas, uniram forças na música “100% Feminista”, lançado em 2016, cujo título dispensa explicações. Afilhada artística de Tati Quebra-Barraco e amiga de Marielle Franco, MC Carol dedicou uma música à vereadora do PSOL, depois que ela foi assassinada. Em 2018, a convite da deputada Jandira Feghali, MC Carol concorreu a uma cadeira no Congresso pelo PCdoB, com o apoio da União da Juventude Socialista, porém ela não foi eleita.

“Nega Braba” (pop, 2018) – Lellêzinha, Rafael Mike e Pedro Breder
Cantora, compositora, dançarina e atriz. Alessandra Aires Landim, a popular Lellêzinha, apresenta esse currículo do alto de seus 20 anos e avisa: “Não pretendo parar por aí”. Em 2018, ela lançou nas plataformas digitais o single “Nega Braba”, que inaugura oficialmente a sua carreira-solo, paralela à do grupo Dream Team do Passinho, do qual participa. “Nega Braba” surgiu de outra estreia. Escalada para o longa-metragem “Correndo Atrás”, ela foi provocada pelo diretor Jefferson De a também compor para o filme. A ideia era fazer referência às protagonistas. “Falei: caraca, estou ferrada! Nunca tinha feito uma música desse jeito. Então, olhei para mim e entendi que falar dessas mulheres é falar de todas nós; minha irmã, minha avó, minha mãe, e até de uma mulher negra que está do outro lado do mundo, porque todas passamos pelas mesmas coisas”, avalia a artista.

“Dona de Mim” (pop, 2018) – Arthur Marques
Não é preciso muito esforço para notar que a dança é um dos pontos fundamentais na arte da cantora Iza. A carioca, que estourou em 2015 depois de publicar vídeos na internet, lançou, em 2018, o seu primeiro disco. “Dona de Mim” deixa claro já no título o seu discurso, assim como anuncia, logo na primeira faixa, o ritmo da sonoridade: “Ginga” abre os trabalhos. A música traz o reforço do rapper Rincon Sapiência e abre o leque de participações especiais. E mais, serve como síntese tanto das qualidades quanto dos defeitos dessa estreia. A força do trabalho de Iza é, justamente, se comunicar de maneira direta, graças à verdade que emana dessa escolha.

“Mina” (pop, 2018) – Fábio Brazza, Vulto e André Drum
Liliane de Carvalho, mais conhecida como Negra Li, nasceu em São Paulo, no dia 17 de setembro de 1979. Ela começou cantando hinos na igreja que frequentava ainda criança, e logo chamou atenção. Solista do coral da Universidade de São Paulo, Negra Li iniciou a carreira profissional no grupo de rap RZO, e se destacou com sua voz de contralto. De 2005 a 2018, Negra Li lançou quatro discos de estúdio em sua carreira-solo e realizou duetos com nomes das mais variadas vertentes musicais, como Skank, Projota, Charlie Brown Jr., Gabriel, o Pensador, entre outros. Negra Li também investiu na carreira de atriz, e participou das séries “Antônia”, “Z4” e “O Dono do Lar”. Em 2018, ela lançou “Mina”, que cita Maju Coutinho, Érika Badu e Winnie Mandela.

“História pra Ninar Gente Grande” (samba-enredo, 2019) – Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Deivid Domenico, Tomaz Miranda, Mama, Ronie Oliveira, Marcio Bola e Danilo Firmino
Marina Íris estava ao lado de Marielle Franco (1979-2018) durante a campanha que a elegeu à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2016, com mais de 46 mil votos. Maria Bethânia lançou o álbum “Mangueira: A Menina dos Meus Olhos”, onde regravou o samba-enredo da Mangueira que saiu vencedor em 2019, “História pra Ninar Gente Grande”, que enaltece o legado de Marielle. O citado samba-enredo foi interpretado também por Marina Íris em uma sessão solene na Câmara dos Deputados, em Brasília, em março, um ano após a morte de Marielle. E também entrou como uma das faixas de “Voz Bandeira”, seu terceiro disco, dedicado à vereadora que ajudou a eleger, mas que ficou apenas um ano e dois meses no cargo. Além de Marielle, outras mulheres são exaltadas.

“AmarElo” (rap, 2019) – Emicida, Felipe Vassão e DJ Juh
Majur, que se define como não binária, ambientou o clipe de “Africaniei” na sua cidade natal, Salvador. “É uma aula sobre a história do nosso povo. Somos um país laico que tem a diversidade como qualidade”, aponta. A carreira artística teve início aos cinco anos de idade, no Coral da Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador. Em junho de 2019, ela gravou com Emicida e Pabllo Vittar o clipe de “AmarElo”, que considera “um ‘start’ para o mundo”. “Nós três temos histórias de luta e resistência e encontramos um jeito de deixar uma mensagem de ânimo, utilizando a música como tecnologia de afeto”, avaliza. Capitaneada pelo rapper Emicida, a composição traz com sample da música “Sujeito de Sorte”, lançada por Belchior em 1976, no histórico disco “Alucinação”.

“Não Tá Mais de Graça” (pop, 2019) – Rafael Mike
Em “Não Tá Mais de Graça”, Rafael Mike retoma a história da anfitriã Elza Soares, e rebobina os versos emblemáticos de “A Carne” (2002) a fim de atualizar o sentido daquele protesto. “A carne mais barata do mercado não tá mais de graça/ O que não valia nada agora vale uma tonelada”, dispara, no refrão. A mesma composição menciona Wakanda, lar do super-herói Pantera Negra, e a vereadora Marielle Franco, cujo brutal assassinato ainda não foi solucionado pelas autoridades do Estado. “Estou gritando contra o racismo há muito tempo, demos uma acordada, mas ainda não é suficiente”, reclama Elza.

“Ladrão” (rap, 2019) – Djonga
Djonga não é dado a modéstia, ainda mais se ela for falsa. Com letras que exalam as cruas verdades de quem viveu na pele o que canta, o rapper se tornou o principal nome da música mineira contemporânea, extrapolando, inclusive, o território do rap. Prova disso é a presença de um samba de Jorge Aragão em seu mais recente disco, no caso, “Moleque Atrevido”. E é com a voz de Elis Regina interpretando trecho de “Romaria”, de Renato Teixeira, que Djonga encerra o elogiado álbum “Ladrão”. “A ideia do ‘Ladrão’ que dá nome ao disco é de resgate, de recuperar o que foi tirado do nosso povo e mostrar que a gente pode chegar longe”, explica. Na faixa-título, ele dispara: “Máquina de fazer rap bom/ Aquelas rima que você queria ter escrito”. Djonga é mineiro da capital BH.

“Jamais Serão” (rap, 2019) – Black Alien e Papatinho
Em 2019, Black Alien colocou na praça o álbum “Abaixo de Zero: Hello Hell”, o terceiro de uma carreira solo iniciada em 2004, permeada por longos hiatos. “Não sou obrigado a lançar disco para atender ao mercado”, declara ele. Livre do álcool e da cocaína, mas sem abrir mão da maconha, Gustavo Ribeiro é conhecido como Black Alien desde que surgiu, em 1993, com rimas aceleradas e inundadas de referências. Na faixa “Jamais Serão”, parceria com Papatinho, ele manda um recado direto: “Presidentes são temporários/ Meu despertar, temporão/ Música boa é pra sempre/ E esses otários jamais serão”. “O Brasil e suas mazelas estão num nível tenebroso de trevas, e só piora”, avalia o rapper.

“Abram os Caminhos” (pop, 2019) – MC Tha
Não é de hoje que Elza Soares representa a mulher sobrevivente, batalhadora, livre, dona de seus desejos e vaidades. Para coroar a carreira da nonagenária intérprete, nada melhor do que a canção “Maria da Vila Matilde”, peça que conjuga samba e música eletrônica, na veia da nova MPB, cheia de modernidade sem esquecer a tradição, bem ao estilo ousado e inquieto de Elza. Denúncia clara à violência contra a mulher, a canção serviu para suscitar debates e cumpriu com sua função social. Mais do que isso, exprimiu a arte de uma mulher talentosa, guerreira, determinada, que não abre mão de seus prazeres. A música ganhou uma versão do bloco feminista Sagrada Profana para o Carnaval de BH, que também canta “Abram os Caminhos”, de MC Tha.

“Macaca” (pop, 2019) – Livia Nery
Em seu disco de estreia, batizado de “Estranha Melodia”, a baiana Livia Nery registrou a música “Macaca”, de sua autoria, onde lança mão da fêmea animal para falar de relacionamentos eróticos: “Eu sou uma macaca e quero/ Ficar pendurada no seu tronco nu/ E na boa temporada vir de lá/ Abocanhada no seu fruto”. Um dos clubes mais antigos do futebol brasileiro, fundada em 1900, a Ponte Preta foi pioneira em contratar atletas negros para o elenco, o que gerou reações racistas na torcida rival. Por isso, o clube adotou a macaca de mascote.

“Pardo” (MPB, 2019) – Caetano Veloso
A trama de “Pardo” capta um relacionamento homoafetivo entre dois homens de pele escura. “Veio um beijo preto/ Sangue sob a pétala/ Veio um papo reto/ Língua sobre a úvula”, canta Céu na faixa. “O Caetano disse que achou fantástico eu, como mulher, interpretar essa música. Foi por isso que ele a entregou para mim. Temos muito que refletir sobre o lugar de fala. É de extrema importância que a gente alcance um cenário mais equalizado, onde as pessoas tenham voz. A defesa racial, de gênero e LGBT precisa, de fato, ser colocada”, sublinha a artista, que amplia a reflexão. Em “Pardo”, outra presença especial é a de Seu Jorge, que comparece nos vocais.

“2 de Junho” (MPB, 2020) – Adriana Calcanhotto
A frase te pega pela garganta. “País negro e racista” cabe melhor à bandeira verde-amarela do que o “ordem e progresso” que a estampa hoje, abolindo o princípio do lema formulado por Auguste Comte que Noel Rosa poetizou: “O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim…”. Tergiversações à parte, a voz ainda encorpada de Maria Bethânia, aos 74 anos, segue vibrando como um metal que é despertado por um leve toque: “País negro e racista”. O que vem depois é bem pior, mais aterrador, pois nos lembra que essa inscrição, gravada com ferro em brasa no corpo dos escravos, representa a morte de uma criança negra, que Adriana Calcanhotto, autora da discursiva letra, compara a Ícaro, aquele do mito grego que morreu ao se aproximar do Sol.

“Negão Negra” (rap, 2020) – Flávio Renegado e Gabriel Moura
“Nunca foi fácil, nunca será/ Para povo preto do preconceito se libertar/ Sempre foi luta/ Sempre foi porrada/ Contra o racismo estrutural barra pesada”, entoa Elza Soares, eleita a Voz do Milênio pela BBC de Londres, em “Negão Negra”, rap de Flávio Renegado e Gabriel Moura. “Essa música é tão importante para os dias de hoje. Não é só para o Brasil, não, cara. É para o mundo todo”, alerta ela. No mês de maio, quando o estrangulamento de George Floyd, um homem negro, por um policial branco, desencadeou uma onda de protestos nos Estados Unidos, Elza se comoveu e disse: “Foi uma coisa que me machucou muito, mas eu só posso sentir e sofrer”. Em abril de 2021, em uma decisão que impactou todo mundo, o policial que assassinou Floyd foi condenado à prisão em seu país.

“Pretambulando” (MPB, 2020) – Taslim
“‘Pretambulando’ é um conceito que eu criei para simbolizar uma experiência individual e também coletiva, que entende que a vida do povo preto é movimento. Iniciada forçadamente pela escravidão, a diáspora negra forma a nossa identidade até hoje, e assim será também com as próximas gerações. Da mesma forma, até os africanos que nunca saíram do continente são atingidos pelos efeitos dessa emigração. Então, ‘Pretambulando’ surgiu quando me vi, uma mulher negra, viajando por vários países em vários continentes do mundo, muitas vezes sem saber exatamente o que procurava, mas entendendo que estar em movimento era uma necessidade. Para cada pessoa negra, ‘pretambular’ pode ter seu significado específico, mas, de uma forma geral, a ancestralidade nos une indiscriminadamente”, afirma a compositora Taslim.

“Revolução” (MPB, 2021) – Gabi da Pele Preta
Gabriella Freitas já havia assinado de várias formas e usado todos os nomes que estão em sua certidão de nascimento quando resolveu dar atenção a um comentário despretensioso da amiga e atriz conterrânea Isadora Lima, que a abraçou e disse: “Eu gosto tanto desse povo da pela preta”. No dia seguinte, ela operou uma mudança simples no Facebook, mas que teve efeitos significativos em sua vida. “Quando eu pensei em voltar ao nome anterior, muita gente sinalizou que eu tinha encontrado um nome poderoso”, conta a cantora, que, desde então, atende por Gabi da Pele Preta. Agora, ela coloca na praça o seu primeiro single, “Revolução”, que ganhou videoclipe e prepara o disco de estreia.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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