De Raul Seixas a Gilberto Gil: Músicas brasileiras para o Dia de Finados

*por Raphael Vidigal Aroeira

“a dor surda, implacável, incessante; a sensação de que a vida não parava de fugir; a certeza de que a odiosa e temida morte se aproximava como a única realidade; e sempre a mesma mentira. Que importância tinham, portanto, as semanas, os dias, as horas?” Tolstói

Há uma cena tocante do filme britânico “Quatro Casamentos e um Funeral”, de 1994, quando o viúvo da personagem que está sendo velada lê um poema de W.H. Auden a respeito da morte. As palavras revelam a relação da espécie humana com esse acontecimento tão inevitável quanto inesperado, e como o fato de termos consciência da finitude, ao contrário dos outros animais, nos afeta. A tradição de lembrar os que se foram é parte da história da humanidade. Com a chegada do Dia dos Mortos, recordamos canções brasileiras que versam sobre essa temática, com direito a samba, toada, rock, blues e músicas de vanguarda.

“Fita Amarela” (samba, 1933) – Noel Rosa
Noel Rosa viveu sob a sombra da tuberculose por algum tempo e chegou, inclusive, a mudar-se para Belo Horizonte em busca de ares mais limpos. Mas a boemia o chamou e foi mais forte do que o temor da doença, naquela época praticamente uma sentença de morte. Todavia, Noel costumava manter o espírito galhofeiro diante de tudo, inclusive da própria morte. Aproveitando uma batucada de Mano Edgar que também inspirou o samba “Quando Você Morrer”, de Donga e Alto Taranto, gravado por Carmen Miranda, Noel compôs “Fita Amarela”. A música foi lançada com sucesso por Mário Reis e Francisco Alves, e, mais tarde, regravada por Aracy de Almeida.

“Quero Morrer Cantando” (samba, 1934) – Valfrido Silva
A morte de Francisco Alves, aclamado como o Rei da Voz, em acidente de carro em 1952, comoveu o Brasil inteiro. Não apenas as escolas de samba choraram, mas todos que eram fãs e parceiros do cantor, e por isso Wilson Batista e Nássara escreveram uma das mais tocantes músicas para se despedirem do amigo. Conhecido no meio musical por “Chico Viola”, o apelido serviu para expressar a dor que os compositores sentiam pela falta daquele que reinou absoluto nas primeiras décadas de ouro do rádio brasileiro, com direito à menção honrosa ao poeta Noel Rosa. Cantada na voz emocionada de Linda Batista, foi gravada em 1953. Em 1934, no auge do sucesso, Francisco Alves lançou o samba “Quero Morrer Cantando”, de Valfrido Silva, regravado por Carlos Galhardo, outro cantor de destaque.

“É Doce Morrer no Mar” (toada, 1941) – Dorival Caymmi e Jorge Amado
Érico Veríssimo, Clóvis Amorim, Dorival Caymmi e outros amigos estavam na casa do coronel João Amado de Faria, pai de Jorge Amado, quando a canção “É Doce Morrer no Mar” veio à tona. O romancista de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Capitães de Areia”, “Tieta do Agreste” e “Gabriela, Cravo e Canela” também estava presente, claro. Após Dorival criar uma melodia inspirada pelo romance “Mar Morto”, de Jorge Amado, o escritor não se faz de rogado e deu continuidade à toada. Houve um concurso entre os convidados ilustres para escolher a melhor letra. E Jorge foi o vencedor. A música foi lançada por Dorival.

“O Que Se Leva Dessa Vida” (samba, 1946) – Pedro Caetano
O bom compositor não se faz pelo nome, mas pelo conteúdo. Pedro Caetano nunca foi compositor, pelo menos era isso o que a formalidade lhe falava. Manteve seu lar com o dinheiro dos calçados e vestidos que vendeu por toda a vida, só aparecendo de corpo e cara para gravar um disco aos 64 anos. Ciro Monteiro tornou célebre outra composição de Pedro Caetano, o samba “O Que Se Leva Dessa Vida”, lançado por ele em 1946, com acompanhamento do regional de Benedito Lacerda e do clarinetista Caximbinho. A música tornou-se um dos estandartes da carreira de Ciro e imortalizou os versos leves e nobres da composição bem humorada sobre as possíveis asperezas da vida na Terra.

“Se Eu Morresse Amanhã de Manhã” (samba-canção, 1953) – Antônio Maria
Autor de lindas poesias publicadas em forma de crônica, criador de jingles inesquecíveis, Antônio Maria aprontava das suas fora das quatro linhas da arte. Conhecido pelas tiradas sarcásticas e bem humoradas, conta o escritor Carlos Heitor Cony da vez em que o compositor e amigo fez-se passar por ele a fim de levar para a cama uma mulher que paquerava no avião e que lia o livro de Cony. O que ocorreu de fato, só que Maria completava o caso para o amigo às gargalhadas: “Acontece que você broxou, Cony!”. Sem meio-termo, arrematava com a triste “Se Eu Morresse Amanhã de Manhã”, lançada por Dircinha Batista.

“Quero Morrer no Carnaval” (samba, 1961) – Luiz Antônio e Eurico Campos
O samba “Quero Morrer no Carnaval”, de Luiz Antônio e Eurico Campos, fez tanto sucesso que foi lançado, em 1961, em quatro versões, sendo a mais marcante a de Linda Batista, cantora condecorada com o título de Rainha do Rádio. Naquele mesmo ano, os Vocalistas Modernos, Gaúcho e Severino Araújo também registraram a canção, que assimila uma posição dionisíaca, de aproveitar a vida ao máximo enquanto ela durar, sobretudo na festa mais esperada do mundo, o Carnaval. Identificada com esse espírito, Elza Soares regravou a música em 1969, no LP “Elza Carnaval & Samba”, renovando seu sucesso com a devida pompa e circunstância.

“Na Cadência do Samba” (samba, 1962) – Ataulfo Alves e Paulo Gesta
Homônima de outra canção de sucesso, “Na Cadência do Samba” só tem em comum com a gêmea distante o seu nome. A música de Luiz Bandeira, mais conhecida pelo verso inicial “Que bonito é…”, é uma ode à alegria e tornou-se emblema de transmissões futebolísticas quando o Brasil dava as cartas no jogo. Já a composição de Ataulfo Alves e Paulo Gesta reflete sobre a despedida definitiva, ou seja, a morte. Lançada por Ataulfo Alves, ganhou regravação marcante da Divina Elizeth Cardoso, que foi seguida por Cássia Eller, Martinho da Vila, Novos Baianos e outros que não resistiram à cadência do belo samba.

“Lembranças” (samba-canção, 1962) – Raul Sampaio e Benil Santos
Miltinho é a voz do poema das mãos, da lágrima, da menina moça e da mulher de trinta. A voz que conta as estrelas do céu, as fases da lua e as gotas de água do mar. Na voz de Miltinho, o mundo ganha novas medidas, deixando um cheiro de saudade a cada instante. Miltinho divide os sambas com a destreza de quem esculpe uma pedra. Sambando com elegância por entre as notas. Juntando corações numa única batida de frases. E Miltinho se envolve com as “Lembranças” de um triste Raul Sampaio ao entoar a parceria do compositor capixaba com Benil Santos, lançada em 1962. “Lembro um olhar, lembro um lugar, teu vulto amado, lembro um sorriso e o paraíso, que tive ao teu lado…”.

“Funeral de um Lavrador” (canção, 1966) – Chico Buarque e João Cabral de Melo Neto
Poeta cerebral, de uma precisão matemática, dono de versos tão rígidos quanto impactantes, o pernambucano João Cabral de Melo Neto passou à eternidade como o autor do épico poema “Morte e Vida Severina”, publicado em 1955, e que narra a trajetória de um sertanejo que parte em busca de melhores oportunidades. Uma década depois, Chico Buarque musicou a obra do mestre, que, a princípio, ficou contrariado, pois era desconfiado em relação à música. O resultado, no entanto, agradou a João Cabral. “Funeral de um Lavrador”, uma das passagens mais fortes, reflete o valor da vida e da morte daqueles excluídos.

“Lapinha” (afrosamba, 1968) – Paulo César Pinheiro e Baden Powell
Valdemar de Tal ficou conhecido na Bahia como Besouro e também Cordão de Ouro, graças à sua valentia e habilidade como capoeirista. Figura lendária, ele inspirou o afrosamba “Lapinha”, que Baden Powell compôs com o, à época iniciante, Paulo César Pinheiro, um dos mais requintados letristas da música brasileira. Besouro foi assassinado por um golpe de faca, e seu nome correu ainda mais forte na Bahia a partir de sua morte. “Lapinha” fala sobre a passagem do herói para lenda. Lançada por Elis Regina na 1ª Bienal do Samba, promovida pela TV Record, venceu o concurso. A “Lapinha” da letra seria um local de festas.

“Sentinela” (clube da esquina, 1969) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Em 1967, Milton Nascimento apareceu para todo o Brasil com “Travessia”, parceria com Fernando Brant que tirou o segundo lugar no Festival Internacional da Canção. Apontado por muitos como uma das vozes mais bonitas e sagradas da música mundial, Milton teve suas composições gravadas por Elis Regina, Agostinho dos Santos, Nana Caymmi, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Wilson Simonal, Fafá de Belém, Maria Bethânia, Simone, Zélia Duncan e Telma Costa. Milton Nascimento e Fernando Brant criaram juntos a bela “Sentinela”, música lançada em 1969. “Morte, vela, sentinela sou/ Do corpo desse meu irmão que já se vai/ Revejo nessa hora tudo o que ocorreu”, afirma.

“Só Morto” (rock, 1970) – Jards Macalé e Duda Machado
Lançado em um compacto ao lado da faixa “Soluços”, o rock “Só Morto” precedeu o primeiro álbum de Jards Macalé, gravado com Lanny Gordin e Tutty Moreno em 1972. Parceria com Duda Machado, a música seria revista pelo cantor no disco “Jards”, de 2011. Com o estilo experimental de Macalé, dá o prenúncio da “morbeza romântica” que ele inauguraria com Wally Salomão nos anos 1970, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza. Os versos condensados de “Só Morto” estilhaçam imagens como num intrincado jogo de palavras ao ouvinte.

“Depois da Vida” (samba, 1971) – Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Paulo Gesta
Com uma religiosidade fervorosa, o bamba Nelson Cavaquinho tinha na relação com a morte uma das suas principais inspirações. Alguns clássicos saíram dessa obsessão, como “Rugas”, “Luz Negra”, “Folhas Secas” e “Juízo Final”. A mais pitoresca, no entanto, certamente é “Depois da Vida”. Parceria com Guilherme de Brito e Paulo Gesta (parceiro de Ataulfo Alves em “Na Cadência do Samba”), “Depois da Vida” foi lançada por Paulinho da Viola em 1971. Para se aclimatar ao ambiente fúnebre da canção, Paulinho criou um arranjo sombrio, como se um vento uivante lentamente se aproximasse de nossos ouvidos com sua nostalgia.

“Quando Eu Me Chamar Saudade” (samba, 1972) – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito compuseram “Quando Eu Me Chamar Saudade” anos antes de a música ser lançada no disco solo de Nelson, em 1972. A típica canção de despedida do compositor tinha outros versos, que depois foram modificados por aqueles que passaram à posteridade. O instinto de efemeridade era delineado ao final do samba, que pedia “flores em vida”. A canção recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Nora Ney, Noite Ilustrada e se tornou uma das mais conhecidas do repertório da dupla. “Quando Eu Me Chamar Saudade” é o exemplo perfeito da capacidade de transformar essa dor.

“A Morte” (MPB, 1972) – Gilberto Gil
Integrado a uma profunda melancolia que marca boa parte de sua obra, Jards Macalé lançou “A Morte”, de Gilberto Gil, em seu primeiro LP, de 1972. Alocada ao lado de “Farrapo Humano”, de Luiz Melodia, a canção participa do bloco que versa sobre a implacabilidade do desaparecimento. O registro de “A Morte”, no entanto, sublinhado pelo violão irrequieto de Macalé, explicita a influência de João Gilberto tanto no canto quanto no toque do artista. Os versos de Gil são de uma beleza ímpar, com a reconhecida capacidade do baiano para refletir sobre temas imensos com bonita simplicidade: “A morte é rainha/ Que reina sozinha…”.

“Abundantemente Morte” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Wally Salomão compara a poesia de Luiz Melodia, com suas saídas inesperadas e soluções cheias de quebras e elipses, à própria geografia das favelas cariocas, onde o “Negro Gato” foi nascido e criado. “Abundantemente Morte”, lançada no álbum de estreia do compositor, certamente se integra a esse conceito. Já o título se vale de palavras aparentemente distantes, mas que se atraem feito ímã pela sonoridade. A morte, que seria a ausência de tudo, é posta lado a lado, ou frente a frente, com aquilo que ocupa tanto espaço a ponto de explodir, vazar, transcender. Por isso, ao final da faixa, Luiz Melodia decreta: “Ninguém morreu”.

“Página 13” (MPB, 1973) – Gonzaguinha
Não espanta que no terceiro disco de Gonzaguinha o clima sombrio se imponha. O Brasil sofria o período da ditadura militar e o compositor era um dos mais hábeis em reportar essa situação na forma de metáforas sensíveis e ásperas. Uma das canções do álbum de 1975 engana no título, e traz ironia semelhante à da canção “Comportamento Geral”. A música “Contos de Fadas” alude a brincadeiras típicas do “Dia das Bruxas”: “Balas, doces, chocolates/Brindes, prendas e anzóis/ (…) Dorme bem minha criança/Se não essa bruxa avança/Corta língua, olhos e ouvidos/Faz da vida escuridão”. Antes, em 1973, ele compôs “Página 13”, no mesmo clima sombrio, mortal e soturno.

“De Frente Pro Crime” (samba, 1975) – João Bosco e Aldir Blanc
Em 1964, impactada pela notícia que leu no jornal, Clarice Lispector escreveu uma crônica sobre os 13 tiros que mataram o ladrão Mineirinho, personagem que inspirou o filme “Mineirinho, Vivo ou Morto” (1967), de Aurélio Teixeira. No início da década de 80, Elis Regina interpretou “Onze Fitas”, música de Fátima Guedes, que dizia: “Onze tiros fizeram a avaria/ E o morto já tava conformado”. A indiferença diante da violência também inspirou João Bosco e Aldir Blanc. Em 1975, eles criaram “De Frente pro Crime”, que se tornaria um dos maiores sucessos da dupla. A música foi regravada pelo conjunto vocal MPB-4, em 1975.

“Cartão Postal” (blues, 1975) – Rita Lee e Paulo Coelho
Paulo Coelho desfrutava do sucesso como compositor ao lado de Raul Seixas quando Rita Lee o convocou para participar do álbum que a antiga vocalista dos Mutantes gravara com o grupo Tutti Frutti. “Cartão Postal” foi lançada no disco “Fruto Proibido”. O blues reflexivo tecia considerações sobre a morte, afirmando a necessidade de não a encarar como um acontecimento terrível. Cazuza, já bastante abatido pela Aids, regravaria a música em seu derradeiro álbum “Burguesia”, de 1989. Já Gal Costa a reviveria no registro do espetáculo “Estratosférica”, em 2017, realçando a premência da canção lançada em 1975.

“Canto Para Minha Morte” (tango, 1976) – Raul Seixas e Paulo Coelho
Raul Seixas é um desses casos raros na história da arte, capaz de combinar uma alta carga reflexiva a um sucesso popular de arrasar quarteirões. O existencialismo do “Maluco Beleza” aparece em letras clássicas, como “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”, “Gita”, “O Dia Em Que a Terra Parou”, “Medo da Chuva”, “A Maçã” e muitas outras. Nenhuma delas, no entanto, coloca tanto o dedo na ferida de uma questão essencial para Raul como “Canto Para Minha Morte”, parceria com Paulo Coelho que ele transformou em tango, com direito a declamação: “que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar”, filosofa ele.

“Sujeito de Sorte” (MPB, 1976) – Belchior
Majur, que se define como não binária, ambientou o clipe de “Africaniei” na sua cidade natal, Salvador. “É uma aula sobre a história do nosso povo. Somos um país laico que tem a diversidade como qualidade”, aponta. Em junho de 2019, ela gravou, com Emicida e Pabllo Vittar, o clipe de “AmarElo”, que considera “um ‘start’ para o mundo”. “Nós três temos histórias de luta e resistência e encontramos um jeito de deixar uma mensagem de ânimo, utilizando a música como tecnologia de afeto”, avaliza. Capitaneada pelo rapper Emicida, a composição traz um sample da música “Sujeito de Sorte”, lançada por Belchior em 1976, no histórico disco “Alucinação”. Os versos iniciais tornaram-se cada vez mais atuais no Brasil. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.

“Menino” (clube da esquina, 1976) – Milton Nascimento e Ronaldo Bastos
No dia 28 de março de 1968, o estudante Edson Luís foi brutalmente assassinado pela Polícia Militar enquanto jantava no restaurante universitário Calabouço, no Rio de Janeiro. Em plena ditadura militar, a morte gerou comoção na sociedade brasileira, que se uniu para protestar contra o regime e foi igualmente reprimida. Impactado pelo episódio, o escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveria a respeito no livro “Dias e Noites de Amor e de Guerra”, em 1977. Um ano antes, Milton Nascimento finalmente conseguiria lançar a música que fizera com Ronaldo Bastos sobre o crime, “Menino”, um grito contra o horror.

“Então Vale a Pena” (MPB, 1978) – Gilberto Gil
O disco “Cigarra”, lançado por Simone em 1978, trouxe um verdadeiro desfile de hits, a começar pela música-título, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos. “Medo de Amar Nº 2”, de Sueli Costa e Tite de Lemos, “Diga Lá, Coração”, de Gonzaguinha, “As Curvas da Estrada de Santos”, de Roberto e Erasmo Carlos, e “Ela Disse-me Assim”, de Lupicínio Rodrigues, completavam o repertório de sucessos. Em meio a essas canções, “Então Vale a Pena”, de Gilberto Gil, traduzia liricamente a percepção da morte. E era assertiva na conclusão: “Se a morte faz parte da vida/ E se vale a pena viver/ Então morrer vale a pena”, dizia.

“Meio Termo” (MPB, 1978) – Cacaso e Lourenço Baeta
Poeta ligado ao movimento marginal, o mineiro Cacaso, de Uberaba, migrou para o Rio de Janeiro e logo passou a estreitar conexões com a música, travando parcerias com Edu Lobo, Sueli Costa, Nelson Angelo, Elton Medeiros e outros. Em 1978, ele teve a honra de ser gravado pela maior cantora em atividade do país, Elis Regina, que registrou “Meio Termo”, parceria com Lourenço Baeta, no apoteótico espetáculo “Transversal do Tempo”, depois transformado em disco. A música era acoplada no show a “Corpos”, de Ivan Lins e Vítor Martins. Ambas perpassavam as questões inerentes à morte, que, segundo Cacaso, era radical.

“Infortúnio” (vanguarda, 1980) – Arrigo Barnabé
Arrigo Barnabé tomou a cena de assalto dos anos 1980 com proposta completamente diferente àquela que tocava nas rádios e que reviveu a onda do rock nacional naquele período. Fundamentados em sólida formação musical – a maioria das vezes, erudita – grupos como “Rumo”, “Premeditando o Breque”, “Isca de Polícia” e, especialmente Arrigo e Itamar Assumpção inauguraram a vanguarda paulista, com proposta ousada estética e conceitualmente. O experimentalismo era o mote, e entre as influências mais fortes da música de Arrigo estavam a construção dodecafônica e as histórias em quadrinhos. Trocando em miúdos: sofisticado e popular convergiam. Assim ele criou, ao lado de Mário Lúcio Côrtes, a saga de “Clara Crocodilo”, com o seu “Infortúnio”.

“O Circo Místico” (MPB, 1983) – Chico Buarque e Edu Lobo
Em 1982, Chico Buarque e Edu Lobo receberam a incumbência de criar a trilha sonora para o balé “O Grande Circo Místico”, que Naum Alves de Souza criou em cima do poema homônimo do alagoano Jorge de Lima. O espetáculo deu vazão a um álbum lançado em 1983, com a nata da MPB: Milton Nascimento, Gal Costa, Gilberto Gil, Simone, Tim Maia e outros. Ficou a cargo de Zizi Possi dar voz à sofisticada “O Circo Místico”, que passava de soslaio sobre a morte: “Não sei se é nova ilusão/ Se após o salto mortal/ Existe outra encarnação”. A música possibilitou ao público a nova oportunidade de conhecer Jorge de Lima.

“Boas Novas” (rock, 1988) – Cazuza
Após ser diagnosticado com o vírus da Aids, uma verdadeira sentença de morte na época, Cazuza passou uma temporada em Boston, nos Estados Unidos, na tentativa de se curar da doença. Foi nesse ambiente que ele compôs grande parte das canções que integram o álbum “Ideologia”, de 1988, dentre elas “Boas Novas”. Pessoal até a medula, a música invoca o martírio que o artista vivia, e é das poucas composta apenas por Cazuza, sem parceria. Como era de seu feitio, o poeta exagerado encarava a situação sem volteios ou meias palavras, disposto a investir na vida até o final: “Eu vi a cara da morte e ela estava viva”, declarava.

“Essa Noite, Não” (balada, 1989) – Lobão, Bernardo Vilhena e Daniele Daumerie
Lobão nunca teve vida fácil. Tanto seu pai quanto sua mãe cometeram suicídio, e ele próprio chegou a tentar tirar a própria vida. Em 1989, Lobão ainda convivia com a perseguição da polícia e as acusações de porte de drogas, pelas quais foi condenado à prisão, onde passou três mesas em uma cela comum com outros presos. Nesse cenário pra lá de atribulado, ele colocou na praça o álbum “Sob o Sol de Parador”, em 1989, que teve como principal destaque a faixa “Essa Noite, Não”, uma balada escrita com Bernardo Vilhena e Daniele Daumerie, com o curioso subtítulo “Marcha a Ré em Paquetá”. A música toca no tema do suicídio.

“Cobaias de Deus” (blues, 1989) – Angela Ro Ro e Cazuza
Cazuza era fã de Angela Ro Ro desde que se entendia por gente, e via nela uma referência comportamental e musical de rebeldia e transgressão. Para a musa, ele compôs, com Frejat, “Malandragem”, mas Ro Ro não negou a fama de impulsiva e renegou a canção, mais tarde gravada com enorme sucesso por Cássia Eller. Sem se dar por satisfeito, Cazuza propôs a Ro Ro uma parceria. Juntos, eles compuseram o lancinante blues “Cobaias de Deus”, que não fazia concessões às esperanças humanas. Inspirada no martírio que Cazuza enfrentava em decorrência da Aids, ganhou a interpretação vigorosa de Ro Ro.

“Canção do Lobisomem” (MPB, 1993) – Guinga e Aldir Blanc
Com Aldir Blanc, Guinga estreou em disco no ano de 1991, com “Simples e Absurdo”, que trazia 11 composições da dupla, e as participações de Chico Buarque, Leny Andrade, Ivan Lins, Zé Renato e Leila Pinheiro, dentre outros. Em 1996, Leila dedicaria “Catavento e Girassol” ao repertório de Guinga e Aldir. Nesse meio-tempo, “Delírio Carioca”, de 1993, agregava mais 12 parcerias dos compositores, casos de “Saci” e “Canção do Lobisomem”. “A vaga do Aldir Blanc vai estar sempre em aberto porque é impossível preencher. Aldir só tem um, como Noel (Rosa), Chico (Buarque), Caetano (Veloso), Gilberto Gil, Milton (Nascimento), Tom (Jobim)”, enumera Guinga. “Perdi um amigo, um irmão e um parceiro genial que me ajudou muito”, completa. Ele revela que só gravou os seis primeiros discos graças à determinação do letrista de “O Bêbado e a Equilibrista”.

“Vila do Adeus” (MPB, 1999) – Roberto Mendes e Jorge Portugal
É aquela velha história: Maria Bethânia saiu da Bahia, mas a Bahia não saiu de Maria Bethânia. Sempre atenta aos compositores de sua terra, a abelha-rainha da canção brasileira resolveu gravar, em 1999, uma preciosidade da dupla Roberto Mendes e Jorge Portugal. “Vila do Adeus” integrou o álbum “A Força Que Nunca Seca” e, na sequência, ganhou registro ao vivo em “Diamante Verdadeiro”, do mesmo ano. Posteriormente, o próprio Roberto Mendes, um dos autores da faixa, a regravou no álbum ao vivo “Tempos Quase Modernos”, de 2005. Prenhe de delicadeza, a música versa sobre “o silêncio e o som de Deus”.

“Morre-se Assim” (tropicalista, 2002) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
O Brasil vivia em 2006 o auge do governo Lula, reeleito naquele ano para o segundo mandato, do qual sairia com 87% de aprovação, um recorde até hoje difícil de ser batido. Aquela tinha sido a última vez em que Jorge Mautner lançara um disco de inéditas, com “Revirão”. Alegre, solar e elétrico, o álbum refletia uma nação cheia de orgulho e esperança. Como de praxe, o carioca Mautner, filho de judeus que vieram para o país fugindo do holocausto e definido por Caetano Veloso como “hipertropicalista”, colocava o Brasil no centro de suas inquietações artísticas, em composições como “O Executivo Executor” e “A História do Baião”. Antes, em 2002, ele gravou um disco com Caetano Veloso, e cantou “Morre-se Assim”, parceria com Nelson Jacobina.

“Anteontem” (vanguarda, 2003) – Itamar Assumpção
Itamar Assumpção lutava contra um câncer de estômago que o mataria quando realizou o seu último show, em 2003. Nessa apresentação, o músico recebeu no palco a multiartista Elke Maravilha, que o auxiliou a cantar “Anteontem”, num dueto que dialogava com a morte. A música foi composta por Itamar numa de suas internações, e, não por acaso, tinha o subtítulo jocoso de “Melô da UTI”. Lançada apenas após sua morte, a canção aparece no álbum “Pretobrás III: Devia Ser Proibido”, de 2010, e mantém o espírito de vanguarda que conduziu toda a carreira de Itamar. “Foi me visitar a morte/ Mesmo sedado senti…”, entoa.

“A Velha da Capa Preta” (frevo, 2007) – Siba
Um dos compositores mais talentosos da contemporaneidade, o pernambucano Siba lançou a música “A Velha da Capa Preta” no álbum “Toda Vez Que Eu Dou Um Passo o Mundo Sai do Lugar”, de 2007. Igualmente talentosa, a carioca Juçara Marçal não perdeu a chance de conceber uma versão teatralizada e dramática para esse frevo sem disfarce que versa sobre aquela que todos preferem evitar. Fica claro que a figura referida no título é a tão temida morte. Juçara interpretou “A Velha da Capa Preta” no álbum “Encarnado”, de 2014, com uma pungente arte gráfica que dialogava com o conjunto de canções escolhidas.

“Não Tenho Medo da Morte” (MPB, 2008) – Gilberto Gil
Todo o existencialismo de Gilberto Gil aparece condensado na letra de “Não Tenho Medo da Morte”, lançada em 2008 no álbum “Banda Larga Cordel”. O compositor tece uma comparação simples, mas salutar, acerca da diferença entre morte e morrer. “É que a morte já é depois/ Que eu deixar de respirar/ Morrer ainda é aqui/ Na vida, no sol, no ar”, reflete. Habituado a investigar a condição humana, Gil voltaria ao tema na faixa “Prece”, de seu disco mais recente, após uma longa internação hospitalar. Não custa lembrar que, além do discurso afiado, Gil conta sempre com um violão único para nos embalar a alma.

“Sem Fim” (vanguarda, 2019) – Rogério Skylab e Lívio Tragtenberg
Rogério Skylab já cansou de se declarar “um cadáver dentro da música brasileira”, frase que ele justifica com o fato de sua extensa obra jamais ter despertado o interesse de intérpretes relevantes. Sem aderir completamente a nenhum movimento ou gênero, mantendo uma postura crítica diante desse cenário, o músico admite pontos de identificação com uma vasta e diversificada gama de artistas, dentre eles Tom Zé e Décio Pignatari. Presente em seu contundente álbum “Crítica da Faculdade do Cu”, de 2019, a faixa “Sem Fim” apresenta uma visão sombria e exasperante sobre a morte e o desaparecimento.

“Termo Morte” (balada, 2020) – Arnaldo Antunes
Quando completou 50 anos, Arnaldo Antunes compôs “Envelhecer”. Para o disco “O Real Resiste”, de 2020, ele resolveu resgatar um antigo poema às vésperas de comemorar seis décadas de vida. “Termo Morte” reflete, justamente, sobre a finitude, na busca de um acordo com a morte, para que ela “seja rápida e indolor”, como diz o cantor. “Venha/ Sem aviso/ Invisível/ E me leve o mais/ Subitamente/ Possível”, afirmam os versos da música. Cada vez mais hábil no trato das canções desde que deixou os Titãs para alçar voo solo, Arnaldo cria uma balada que trata sobre um dos temas mais ásperos da humanidade sem perder a leveza.

“Esquadrão da Morte” (MPB, 2021) – Jorge Mautner e Cecília Beraba
“Esquadrão da Morte” nasceu de uma crônica escrita por Jorge Mautner na década de 1970, repercutindo a notícia assustadora de uma execução pela milícia carioca. “Morto, triturado/ Que nem porco/ Que nem gado/ No padrão e no esporte/ Às seis para as seis/ No facão e no corte/ Das leis sem leis/ Do esquadrão da morte”, descrevem os versos interpretados pela carioca Cecília Beraba, autora da melodia, que bramem contra a realidade de um país que elegeu a presidente da República o candidato que durante três décadas de atividade parlamentar defendeu e incentivou as milícias, e cuja ficha corrida contém uma condenação em três instâncias por apologia ao estupro. Em “Esquadrão da Morte”, Cecília ainda recita um poema sobre as diferenças entre bonobos e chimpanzés, duas espécies distintas de macacos: a primeira guiada pelo prazer sexual e, a segunda, pela violência. A música foi lançada no disco “Eterno Meio-Dia: Parcerias com Jorge Mautner”, estreia de Cecília no mercado.

“Viramos Pó?” (MPB, 2021) – Zélia Duncan e Juliano Holanda
A carioca Zélia Duncan homenageou dois vanguardistas paulistas: Itamar Assumpção (1949-2003), em “Tudo Esclarecido” (2012); e Luiz Tatit, com “Totatiando” (2013); e também prestou tributo à obra não menos singular de Milton Nascimento, na parceria com o violoncelista Jaques Morelenbaum, que resultou no álbum “Invento +” (2017). Para completar, colocou na praça uma coleção de sambas, com “Antes do Mundo Acabar” (2015), a exemplo do que Adriana Calcanhotto havia feito em 2011. Em 2021, num cenário de pandemia, lançou “Pelespírito”, em que apresentou parcerias sensíveis com Juliano Holanda, como “Viramos Pó?”, que reflete as agruras eternas da humanidade.

*Bônus
“Pé na Cova” (tema de abertura, 2013) – Mart’nália

De 2013 a 2016, a série humorística “Pé na Cova”, escrita e idealizada por Miguel Falabella, ocupou as madrugadas da Rede Globo com enorme sucesso, consagrando personagens como Ruço, vivido pelo próprio autor, Darlene, último papel de Marília Pêra na TV, Abigail, Odete Roitman, Luz Divina e Juscelino. Outro destaque ficou por conta do tema de abertura. Como indicava o nome, o seriado tratava sobre a morte de maneira divertida e ácida, aproveitando o ensejo para combater preconceitos, já que a finitude iguala a todos. Mart’nália, que deu vida à personagem Tamanco, também cantarola a música de abertura.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]