De Zé Ramalho a Rita Lee: Ouça músicas brasileiras para o Dia das Bruxas

*por Raphael Vidigal Aroeira

“mas o reino da fantasia, assim como o da realidade evidente, pertence às bruxas.” Reinaldo Arenas

“Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”, esta frase, que pode ser traduzida como: “eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem”, tornou-se tão presa ao imaginário popular que hoje pertence a todos. Presente no livro “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, há quem afirme que o próprio autor a recolheu da sabedoria popular. Certo é que mesmo os que não acreditam em bruxas as conhecem, já viu ou ouviu falar. O dia 31 de outubro é o dia delas, citadas na música brasileira a torto e direito.

Embora não seja tradição nacional, o Brasil, país antropofágico por excelência, rapidamente assimilou o Dia das Bruxas ao seu calendário. A comemoração por essas bandas, no entanto, conta com as próprias lendas e fantasmas e, também, claro, músicas de sua autoria. Daí que Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Tetê Espíndola, Zé Ramalho, Geraldo Azevedo, Luhli, a turma dos Secos & Molhados e alguns outros sejam conclamados. A música deles, como se constata, é um assombro. Pois do susto para a admiração basta um salto. E é com as notas e versos musicais que espantaremos todos os males.

“O Vira” (MPB, 1973) – Luhli e João Ricardo
Antes mesmo de iniciar parceria de enorme sucesso com a cantora, compositora e instrumentista Lucina, a carioca Luhli conheceu duas figuras que mudariam sua trajetória artística: o português João Ricardo e o pantaneiro, como o próprio nome artístico dizia, Ney Matogrosso. Juntos eles foram parte de uma das bandas mais expressivas do Brasil, especialmente em tempos de ditadura militar, responsáveis por provocar e escandalizar o regime com vestes, maquiagens e movimentos corporais que lhes transformavam em figuras híbridas em cima do palco. Tais gestos, porém, não teriam o mesmo impacto se não estivessem acompanhados de frases tão ou mais emblemáticas. É o caso da música “O Vira”, que aludia a universo mágico e fantástico em 1973.

“Filme de Terror” (bolero, 1973) – Sérgio Sampaio
Embora a faixa mais conhecida do disco solo de estreia do compositor capixaba Sérgio Sampaio tenha sido a que nomeia “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, ela, de alguma forma, destoa do restante do trabalho. O ritmo exaltado certamente combina pouco com o tom quase mórbido das canções, expresso já na capa que apresenta o nome ensanguentado do cantor e frames de um “Filme de Terror”. É isso mesmo, nesta música menos conhecida da lavra de Sampaio ele passeia por um universo recheado de cemitérios, medos, suspiros e, claro, bruxas. Foi lançada em 1973.

“Contos de Fadas” (MPB, 1975) – Gonzaguinha
Não espanta que no terceiro disco de Gonzaguinha o clima sombrio se imponha. O Brasil sofria o período da ditadura militar e o compositor era um dos mais hábeis em reportar essa situação na forma de metáforas sensíveis e ásperas. Uma das canções do álbum de 1975 engana no título, e traz ironia semelhante à da canção “Comportamento Geral”. A música “Contos de Fadas” alude a brincadeiras típicas do “Dia das Bruxas”: “Balas, doces, chocolates/Brindes, prendas e anzóis/ (…) Dorme bem minha criança/Se não essa bruxa avança/Corta língua, olhos e ouvidos/Faz da vida escuridão”.

“A Bruxa de Mentira” (MPB, 1975) – Gilberto Gil e João Donato
O baiano Gilberto Gil e o acreano João Donato resolveram dar cores brasileiras ao mito da bruxa. Tanto que na canção de 1975, lançada no disco “Lugar Comum”, de Donato, ela aparece como “A Bruxa de Mentira”. A dupla voltava a repetir parceria que já havia alcançado sucesso com “A Paz” e “Bananeira”. Os versos se aproveitam da sonoridade da melodia para brincar: “A bruxa de mentira/Bombom de rapadura/Esdrúxula figura/Bruxinha gostosa/Neném rapadoçura”. Pouco conhecida, a canção ganhou novo lançamento em 1977, no álbum “Satisfação: Raras e Inéditas”, de Gil.

“Cachorro Babucho” (vanguarda, 1975) – Walter Franco
Walter Franco foi um dos compositores mais inventivos da música brasileira, difícil de ser etiquetado pelo mercado fonográfico, cabendo a ele, apenas, a alcunha de músico de vanguarda. Em 1972, no Festival Internacional da Canção, o júri formado por Nara Leão, Décio Pignatari, Júlio Medaglia, Roberto Freire e Rogério Duprat, elegeu “Cabeça”, de Franco, como a melhor canção, mas ele jamais recebeu o prêmio, porque as vaias da plateia e a presença dos militares da ditadura resultaram na troca de jurados. Em 1975, compôs, a pedido de Jards Macalé, a enigmática “Cachorro Babucho”. Segundo Macalé, uma prostituta passou por Franco e assim ou chamou no meio da rua: “Babucho!”. Mas ele nunca descobriu o significado da palavra. E eis o mistério.

“Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás” (rock, 1976) – Raul Seixas e Paulo Coelho
A longa saga descrita pela música de Raul Seixas e Paulo Coelho, lançada no disco do Maluco Beleza em 1976, faz um périplo pela história da humanidade e, claro, não poderia deixar passar um de seus fatos mais traumáticos. A Inquisição promovida pela Igreja Católica, que assassinava pessoas tidas como bruxas na fogueira, por desviarem do comportamento padrão da época. Uma das vítimas mais conhecidas das atrocidades foi a revolucionária francesa Joana D’Arc. Seixas destaca essa prática no verso: “Eu vi as bruxas pegando fogo pra pagarem seus pecados”.

“Bruxa Amarela” (rock, 1976) – Raul Seixas e Paulo Coelho
Feita especialmente para Rita Lee, essa parceria de Raul Seixas e Paulo Coelho foi gravada pela então vocalista da banda Tutti Frutti no disco lançado pela banda em 1976. Com a habitual verve fantasiosa e mística, os autores abrem as portas para esse mundo fantástico, em versos do calibre: “Duas horas da manhã eu abro a minha janela/E vejo a bruxa cruzando a grande lua amarela/E vou dormir quase em paz”. Em 1988, em seu penúltimo disco de carreira, Seixas registrou uma nova versão da música, modificando o título para “Check-up” e alterando versos pontuais.

“Vila do Sossego” (MPB, 1978) – Zé Ramalho
A estreia em disco solo de Zé Ramalho não poderia ser melhor. Ali, ele já enfileirava sucessos como “Chão de Giz”, “Avôhai”, “Bicho de Sete Cabeças” e “A Dança das Borboletas”, parceria com Alceu Valença que mereceu uma releitura inusitada do grupo de metal Sepultura. Também não passou despercebida a canção “Vila do Sossego”, mais uma obra de Zé Ramalho que fala de papiro e remonta ao passado para refletir sobre o presente, com sua estética medieval e mística. A música foi regravada por Elba Ramalho, Cássia Eller, Zeca Baleiro, entre outros, e permanece no imaginário popular do Brasil.

“Doce Vampiro” (balada, 1979) – Rita Lee
Irônica e naturalmente debochada, Rita Lee compôs um de seus grandes sucessos no auge de sua carreira-solo, ao lado do inseparável companheiro Roberto de Carvalho. “Papai Me Empresta O Carro”, música lançada em álbum que ainda revelou ao mundo sucessos do calibre de “Doce Vampiro”, “Mania de Você” e “Elvira Pagã”, acerta na pegada descontraída e liberal de Rita para abordar assuntos considerados tabu por certa fatia da sociedade, especialmente os relacionados à sexualidade. Mas, dentre todos esses, certamente o hit de maior sensualidade é “Doce Vampiro”, regravada em parceria com Milton Nascimento. A pegada sombria do arranjo adensa o clima.

“Kukukaya: Jogo da Asa da Bruxa” (MPB, 1979) – Cátia de França
Em 1979, a paraibana Cátia de França estreou com disco que já trazia um de seus maiores sucessos. “Kukukaya: Jogo da Asa da Bruxa” seria regravada em grupo por Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai. De acordo com a compositora da canção, ela a recolheu de quadrinhas de domínio público, e o termo que a intitula faz referência ao “pai de todos os ciganos”, que ela descobriu em uma revista de esoterismo. “No desafio do jogo da bruxa/Em noite de lua cheia/São quatro jogadores nesta mesa/Dando as cartas no jogo surdo da vida”, anunciam os primeiros versos.

“Bicho de 7 Cabeças” (MPB, 1979) – Geraldo Azevedo, Zé Ramalho e Renato Rocha
No final da década de 1970, o pernambucano Geraldo Azevedo lançou a música “Bicho de 7 cabeças”, de sua autoria com o paraibano Zé Ramalho e Renato Rocha. Desde o início da década, a música brasileira sofria uma oxigenação com as criações que vinham do nordeste do país. Essa canção insurge de forma tão vigorosa que recebeu inúmeras regravações em diferentes períodos, sempre mantendo o poder de impacto proveniente de sua melodia e letra. Nesta obra, os ditados transcritos são aqueles que emergem dos momentos de raiva, desacordo, com o intuito de expressar exagero e inconsequência. Por isso o clima não poderia ser outro. “Não tem pé, nem cabeça” e “Bicho de 7 Cabeças” aparecem no decorrer desta simbólica peça.

“Clara Crocodilo” (experimental, 1980) – Arrigo Barnabé e Mário Lúcio Côrtes
Arrigo Barnabé tomou a cena de assalto dos anos 1980 com proposta completamente diferente àquela que tocava nas rádios e que reviveu a onda do rock nacional naquele período. Fundamentados em sólida formação musical – a maioria das vezes, erudita – grupos como “Rumo”, “Premeditando o Breque”, “Isca de Polícia” e, especialmente Arrigo e Itamar Assumpção inauguraram a vanguarda paulista, com proposta ousada estética e conceitualmente. O experimentalismo era o mote, e entre as influências mais fortes da música de Arrigo estavam a construção dodecafônica e as histórias em quadrinhos. Trocando em miúdos: sofisticado e popular convergiam. Assim ele criou ao lado de Mário Lúcio Côrtes a saga de “Clara Crocodilo”, além de peculiar estilo.

“Amanticida” (vanguarda, 1981) – Itamar Assumpção e Marta Rosa Amoroso
A atmosfera cinza e poluída da cidade de São Paulo foi o ambiente que influiu decisivamente na estética proposta pela chamada Vanguarda Paulista, surgida em meio aos anos 1980 que consagravam o colorido das bandas de rock nacionais. Numa linguagem que misturava quadrinhos, teatro, rap e música urbana, a palavra destilada com o veneno lento das horas era uma das armas de Itamar Assumpção e sua banda Isca de Polícia. Na parceria com Marta Rosa Amoroso, de 1981, cria-se uma história assustadora: “Fera, bruxa, madrasta, amanticida/Homem, mulher/Amada que mata amante”.

“Olhos de Jacaré” (vanguarda, 1982) – Carlos Rennó e Geraldo Espíndola
Tetê Espíndola sempre chamou a atenção pela voz finíssima e o alcance extremamente improvável de seus agudos. Desde o surgimento em território nacional cantou as lendas e motivos de seu povo pantaneiro, o que contribuiu ainda mais para a aura de misticismo em torno de sua figura. Também soube transitar, com habilidade, entre o universo rural e rústico em parcerias com Luhli e Lucina ao construtivismo urbano da música de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, sempre levando consigo as influências de um universo carregado pelo mistério. No ano de 1982, Tetê gravou emblemático disco em que aparecia, na capa, nua tomando banho de cachoeira. Dentre as preciosidades do repertório, “Olhos de Jacaré”, de Carlos Rennó e Geraldo Espíndola.

“Cuca” (infantil, 1982) – Geraldo Casé, Waltel Branco e Sylvan Paezzo
Angela Ro Ro encarnou uma das personagens mais conhecidas do folclore nacional no especial de TV da Globo, “Pirlimpimpim”, levado ao ar em 1982. A cantora de voz rouca e grave interpretou todos os trejeitos da famosa Cuca do Sítio do Pica-Pau Amarelo criada por Monteiro Lobato, uma bruxa que tem a forma animal de um jacaré, inclusive a estridente risada. A canção feita para a personagem ficou a cargo do trio Geraldo Casé, Waltel Branco e Sylvan Paezzo. A mesma personagem foi vivida por Cássia Eller. “Olha a minha fuça/Olha que boneca/Não existe bruxa/Mais charmosa”, canta Ro Ro.

“Mistérios da Meia-Noite” (MPB, 1985) – Zé Ramalho
O interesse de Zé Ramalho por forças ocultas e sobrenaturais e o misticismo que envolve grande parte de sua obra recebeu uma atenção especial em seu segundo disco de carreira. Além do batismo, “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu”, ainda trazia na capa a atriz Xuxa Lopes no papel de vampira que tenta Deus e o personagem Zé do Caixão, vivido por José Mojica Marins, como diabo. O artista plástico Hélio Oiticica também comparecia no encarte do disco. Faixas como “Pelo Vinho e Pelo Pão” e “Jardim das Acácias”, com participação de Pepeu Gomes, retomavam essas temáticas espirituais e religiosas. Mas nenhuma é tão tenebrosa quanto a lancinante “Mistérios da Meia-Noite”, que, em 1985, tornou-se trilha-sonora da novela “Roque Santeiro”, da Rede Globo.

“O Rap da Bruxa” (rap, 1997) – Oswaldo Montenegro
No ano de 1997, o cantor e compositor carioca Oswaldo Montenegro voltou a flertar com as artes cênicas. Criador de trilhas sonoras para filmes, balés e peças teatrais, o músico foi responsável pelas canções do musical infantil “Vale Encantado”. Gigantes, fadas, anões e duendes compõe o repertório de personagens, mas a grande estrela da companhia é mesmo a assustadora bruxa que ganhou um rap só para ela. “O Rap da Bruxa” enumera um a um os horripilantes ingredientes jogados no caldeirão da megera: “Gota de sangue, xixi de morcego/Bola de ferro de quebrar vitrine”.

“Aprendiz de Feiticeiro” (vanguarda, 1999) – Itamar Assumpção
Tido e havido, com méritos, como um dos mais originais e criativos artistas da música brasileira, Itamar Assumpção experimentava no palco as facetas de cantor e ator com a mesma facilidade usada para distribuir sua obra. Compositor de mão cheia incumbiu a Cássia Eller o desafio de lançar a canção “Aprendiz de Feiticeiro”, em 1999. Na peça o autor busca retratar as desditas da existência com um olhar arguto e audacioso, misturando, como de seu feitio e da vanguarda paulista, sotaques, emblemas e territórios. Dois anos mais tarde, Cássia teria outra experiência com universo místico, ao regravar, para o especial do Sítio do Pica-Pau Amarelo, a música “A Cuca Te Pega”, também registrada por Angela Ro Ro. Com a voz capaz de encantos de outro mundo.

“Funérea” (vanguarda, 2001) – Rogério Skylab
Rogério Skylab já cansou de se declarar “um cadáver dentro da música brasileira”, frase que ele justifica com o fato de sua extensa obra jamais ter despertado o interesse de intérpretes relevantes. Sem aderir completamente a nenhum movimento ou gênero, mantendo uma postura crítica diante desse cenário, o músico admite pontos de identificação com uma vasta e diversificada gama de artistas, dentre eles Tom Zé e Décio Pignatari. Em 2001, Rogério Skylab lançou “Funérea”, de sua autoria, que diz: “Minha casa é um cemitério/ O meu pai, um morto-vivo/ Minha mãe é uma caveira/ Minha avó é uma bruxa”.

“O Homem Bruxa” (vanguarda, 2015) – André Abujamra
Filho do ator e apresentador de TV Antônio Abujamra, o multiartista André Abujamra sempre gostou de transitar por vielas igualmente provocadoras. A primeira banda da qual fez parte já trazia a contradição no nome: Os Mulheres Negras. Esse efeito é reproduzido no mais recente disco solo do músico. “O Homem Bruxa” reflete na faixa-título as ambições do protagonista. “Yo soy el hombre bruja/Yo soy un transformador/Transformo coisas feias/Em coisas lindas de valor”. Desta maneira, ao misturar, inclusive, idiomas, André muda a própria perspectiva sobre o mito milenar da bruxa, conferindo a ela poderes de luz.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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