Dóris Monteiro foi símbolo de modernidade e da transição para a bossa

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Dizer algo, sobretudo dizer com beleza – ou com ternura, com saudade, com emoção –, significa, de alguma maneira, ressuscitar aquilo que não existe mais. Ou, ainda, trazer para perto o que está longe.” Carlos Rodrigues Brandão

“Quando canto e o público me aplaude, eu fico nas nuvens, eufórica. Minha vida se transforma. Independentemente dos problemas que tenha, ao entrar no palco, eu flutuo. A energia do público faz você cantar”, declara Dóris Monteiro, sem esconder a emoção. Natural do Rio de Janeiro, onde ainda mora, Adelina Dóris Monteiro logo adotou os sobrenomes como alcunha artística. Aos 6, 7 anos de idade, ela dizia que “queria ser ‘canteira’”. “Cantava brincando”, conta.

Um dia, quando entoava “Caminhemos”, sucesso na época, composição de Herivelto Martins, já com doze para 13 anos, Dóris foi ouvida por uma vizinha. “Estava cantando do meu jeito. E a dona Jurema disse: ‘Essa menina tem uma voz tão gostosinha’. Eu não me parecia com Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Marlene, as irmãs Batista e o vozeirão delas que era moda na época. Nada, a minha voz era pequena e suave. Já adorava Lúcio Alves e Dick Farney, cantava ‘Caminhemos’ porque era o estouro do momento”, recorda a intérprete.

“Conversa de Botequim” (samba, 1935) – Noel Rosa e Vadico
Noel Rosa levou a esposa Lindaura para o cinema, mas, no caminho, resolveu parar em uma leiteria para comer arroz-doce. Logo, Noel avistou um amigo e foi até ele papear. Lindaura ficou esperando, sem dinheiro para pagar a conta ou pegar o bonde, e o marido só apareceu quando ela já estava em casa, de madrugada, com a ajuda do garçom que conhecia Noel e pendurou o pedido da vez. Essas confusões eram frequentes na vida de Noel, um boêmio incorrigível. “Conversa de Botequim”, samba de 1935 em parceria com Vadico, é uma crônica bem nesse estilo: “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não seja requentada…”. Lançada pelo próprio Noel, a música ganhou uma regravação de Dóris Monteiro, no LP do ano 1971.

“De Conversa em Conversa” (samba, 1947) – Haroldo Barbosa e Lúcio Alves
Lúcio Alves, um dos ícones da música brasileira da chamada fase de transição entre os derramamentos do samba-canção e a suavidade da bossa nova compôs, quando tinha apenas 16 anos, uma melodia inicialmente intitulada “Não Sou Limão”, e foi dessa maneira que ela seria lançada no rádio, com o acompanhamento dos Namorados da Lua. Já com a voz de Isaurinha Garcia, a música com letra de Haroldo Barbosa teve o batismo trocado para “De Conversa em Conversa”, um samba descontraído sobre uma separação de amor. Ao lado de Dóris Monteiro, Lúcio Alves interpretou essa preciosidade de 1947, no Projeto Pixinguinha, que consagrou a dupla e seu estilo bossa-nova.

“Se Você Se Importasse” (samba-canção, 1951) – Peterpan
“Fui muito bem criada, mas com rigidez. O maior castigo era não poder ir à praia, nem me importava com as surras de chicote”, assume Dóris Monteiro. Em 1951, a pequena Dóris estourou o seu primeiro sucesso, “Se Você Se Importasse”, de autoria de Peterpan. A música que lançou Dóris ao estrelato ficou cinco meses em primeiro lugar. Logo em seguida aparecia um convite até ali inesperado na carreira da garota. O cineasta Alex Viany telefonou para Almirante na TV Tupi e expressou o desejo de contar com Dóris Monteiro em seu próximo filme. “Participei de oito filmes e ganhei o prêmio de melhor atriz por ‘Agulha no Palheiro’”, relembra a intérprete.

“Joga a Rede no Mar” (samba-canção, 1952) – Fernando César e Nazareno Brito
“Naquela época as músicas só falavam de desgraça, traição, miséria, abandono, choro, e vem o Fernando César com uma música que falava de felicidade”, conta Dóris Monteiro. “Infelizmente, o Fernando César não teve a mídia que merecia, era um autor maravilhoso, gravei um LP só com músicas dele”, lamenta e elogia. Mas a própria Dóris Monteiro desconfiou, a princípio, da capacidade do posterior pupilo, até ser convencida por Chacrinha. “Fui muitíssimo bem recebida e nunca mais largue os dois de lado, gravei, em pouco tempo, ‘Joga a Rede no Mar’, também do Fernando César em parceria com o Nazareno de Brito”, recorda Dóris, que se tornou amiga da esposa de Fernando César. “Joga a Rede no Mar” foi lançada, em 1952, por Luiz Cláudio.

“Amendoim Torradinho” (valsa, 1955) – Henrique Beltrão
Quando Carmen Miranda brincou com o duplo sentido na carnavalesca “Eu Dei”, de 1937, ela teve que se valer dos versos de Ary Barroso. O mesmo aconteceu com a cantora portuguesa Vera Lúcia, primeira intérprete da lânguida e sensual “Amendoim Torradinho”, obra de Henrique Beltrão lançada por ela em 1955, e que depois ganhou as vozes de Ney Matogrosso, Angela Maria, Alcione, Dóris Monteiro e Ivon Curi, entre outros. O fato ainda era comum no ano em que Maria Bethânia gravou, “O Meu Amor”, de Chico Buarque, em 1978, até que uma nova geração de compositoras decidisse abordar o sexo com as próprias palavras, como Angela Ro Ro, Rita Lee, Vanessa da Mata, MC Carol e Karol Conká.

“Dó-ré-mi” (samba-canção, 1955) – Fernando César
“O Chacrinha queria que eu o conhecesse, e eu disse: ‘Como um sujeito que tem uma fábrica de sabão vai ter sensibilidade para escrever uma música delicada, amorosa?’. Esse era o estilo que eu gostava de cantar. Mal sabia eu, ainda bem que dei o braço a torcer e acreditei no Chacrinha”, admite a cantora. O encontro entre os três na casa do compositor trouxe para Dóris Monteiro, além do conhecimento de um compositor sensível e de diversos sucessos na carreira, uma amizade para a vida inteira com a esposa de Fernando César, Arlete. E em 1955, ela lançou, de Fernando César, o samba-canção “Dó-ré-mi”.

“Se É Por Falta de Adeus” (samba-canção, 1955) – Tom Jobim e Dolores Duran
Do outro lado do LP com “Joga a Rede no Mar”, havia outra preciosidade. “Se É Por Falta de Adeus”, com arranjo de Tom Jobim para a estreia de Dolores Duran como compositora. Dóris não estava para brincadeira, embora suas canções carregassem o espírito da felicidade. E como alegria pouca é bobagem, rapidamente ela conheceu outro compositor fundamental em sua trajetória: Billy Blanco, que sugeriu para a cantora gravar “alguma coisa mais jogadinha”, recorda. A princípio, Dóris ficou reticente. “Pois tudo que eu gravava era romântico, mas ele me convenceu, dizendo que ia ser ótimo ter algo mais saltitante na minha discografia. E foi mesmo!”, celebra a intérprete.

“Mocinho Bonito” (samba-bossa, 1956) – Billy Blanco
Em 1956, quando Dóris Monteiro gravou “Mocinho bonito”, Billy Blanco já era um compositor reconhecido e, inclusive, premiado. Recebera, um ano antes, o troféu ‘Disco de Ouro’ pela “Sinfonia do Rio de Janeiro”, com Tom Jobim, que inclusive serviria ao filme ‘Esse Rio Que Eu Amo’, de Carlos Hugo Christensen e também ao musical dirigido por Carlos Machado. Regravado por Isaurinha Garcia e vários outros, o samba balançado já característico de Billy Blanco versa sobre um personagem típico do Rio de Janeiro, entre a crítica e o deboche. O autor deixa explícito o quanto ainda vale o eterno ditado: as aparências enganam. Afinal: “Mocinho bonito/Perfeito improviso do falso grã-fino/No corpo é atleta, no crânio é menino/Que além do a, b, c, nada mais aprendeu”.

“A Banca do Distinto” (samba de gafieira, 1959) – Billy Blanco
“A Banca do Distinto” possui uma das histórias mais comentadas da música brasileira, afinal trata-se de episódio verídico. Dolores Duran se apresentava numa boate, e todas as noites um sujeito engomado que se recusava a ficar de frente para o palco a tratava por ‘neguinha’, exigindo que outros garçons fizessem o pedido da música que queria ouvir, afinal não se comunicava com pessoas da cor negra e se recusava a segurar embrulhos, exigindo que o mesmo garçom levasse o seu sanduíche até o carro. A resposta para o preconceito e a ignorância veio na forma de música, com a inteligência de Billy Blanco, que era definitivo: “O enfarte lhe pega, doutor/E acaba essa banca/A vaidade é assim, põe o bobo no alto/E retira a escada/Mas fica por perto esperando sentada/Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão/Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal/Todo mundo é igual quando a vida termina/Com terra em cima e na horizontal”. Certo é que Billy Blanco, Dolores Duran e a música permanecem. E Dóris Monteiro a regravou no ano de 1976.

“Palhaçada” (samba, 1961) – Haroldo Barbosa e Luiz Reis
Famoso pelas divisões rítmicas que influenciaram nomes como Zeca Pagodinho e Roberto Ribeiro, o carioca Miltinho é, sem dúvida, o grande intérprete de “Palhaçada”, samba da consagrada dupla Luiz Reis e Haroldo Barbosa, lançado em 1961. Sua voz anasalada e metálica caiu como luva para vestir os trejeitos do homem que compreende as necessidades de sua amada e se submete a vestir-se tal qual o grande artista do circo: “cara de palhaço, roupa de palhaço, até o fim”. A música ainda recebeu versões feitas por gente do porte de Elizeth Cardoso, Ivon Curi, Isaurinha Garcia e de Dóris Monteiro.

“Samba de Verão” (samba-bossa, 1964) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Inspirado no estilo que consagrou duplas formadas por Vinicius e Tom e Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, “Samba de Verão” foi apresentada primeiramente justamente para Menescal, que não teve dúvidas e cravou: “Vai ser um estouro!”. Ele não estava errado. A música de Marcos Valle foi lançada, ainda sem letra, pelo grupo Os Catedráticos, de Eumir Deodato. Em 1964, recebeu letra de Paulo Sérgio Valle e a voz de Dóris Monteiro. Já Marcos Valle a registrou no LP “O Compositor e o Cantor”, o segundo da sua trajetória. Dois anos depois, este samba-bossa chegou ao sucesso em território norte-americano, graças à gravação de Walter Wanderley e seu trio. “Você viu só que amor/ Nunca vi coisa assim/ E passou nem parou/ Mas olhou só pra mim”.

“Mudando de Conversa” (samba, 1968) – Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho
“O Almirante me chamou na TV Tupi para gravar o programa ‘Ela & Ele’, com o Lúcio Alves. Eu disse que não tinha condições de fazer porque iria desmaiar quando visse aquele homem. Mas aí o Almirante disse que quem mandava era ele!”, recorda, aos risos, Dóris Monteiro. “Sempre tive verdadeira loucura pelo Lúcio Alves, achava que erraria a letra de tanta emoção. Mas o Lúcio, que naquela época já era ‘O’ Lúcio Alves, foi tão bacana, tão humilde. Disse que se sentia honrado em cantar comigo”, suspira. O programa, assim como a canção “Mudando de Conversa” (de Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho), logo elevaram a dupla à condição de “queridinhos” do nosso cenário nacional.

“Coqueiro Verde” (samba, 1970) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Carlos Drummond de Andrade a homenageou em poesia. Martinho da Vila, Erasmo Carlos, Rita Lee, Elton Medeiros, Paulo César Pinheiro, Carlinhos Vergueiro e Taiguara o fizeram em canções. Milton Nascimento se valeu de um delicado poema de Leila para criar a música “Um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”, título oriundo de frase da protagonista, que ajuda a entender um pouco de sua personalidade. Não bastasse isso, a histórica entrevista para “O Pasquim”, recheada de palavrões censurados e em que pregava, principalmente, o “amor livre” e a “liberdade sexual da mulher”, gerou uma enérgica reação do regime militar em vigência, e a censura prévia à imprensa ganhou, à boca pequena, o nome popular de “Decreto Leila Diniz”. Erasmo Carlos se vale de uma frase de Leila nesta entrevista para compor a letra de “Coqueiro Verde”, parceria com Roberto cantada por Dóris Monteiro.

“Com Mais de 30” (balada, 1970) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Um encontro decisivo na trajetória da cantora Claudya se deu com os irmãos Paulo Sérgio e Marcos Valle, autores daquele que talvez seja o maior sucesso de sua carreira, a música “Com Mais de 30”. “Os irmãos Valle têm uma participação fundamental na minha carreira, porque me deram uma música inédita pra gravar, que fez um grande sucesso e é lembrada até hoje pelo pessoal da mais nova geração, sendo muito moderna e conseguindo atravessar o tempo”, avalia Claudya. “Com Mais de 30” foi lançada em 1970, e recebeu regravações da própria Claudya no ano seguinte, e ainda de nomes como Dóris Monteiro, Miltinho, Jorginho Telles, Verônica Ferriani e também do autor Marcos Valle. A música segue como um hino atrelado à rebeldia juvenil.

“Até Quem Sabe” (MPB, 1973) – João Donato e Lysias Ênio
“Meu gosto sempre foi exclusivamente pela música, nunca me interessei por outras artes. Na música clássica eu admiro muito os impressionistas, Ravel, Debussy”, confessa o compositor cujas melodias clássicas – num sentido mais abrangente que a definição erudita – de “A Paz”, “Bananeira”, “A Rã”, “Café com Pão”, e outras, foram letradas por Gilberto Gil, Caetano Veloso e o irmão Lysias Enio. Com Lysias, João Donato compôs a belíssima “Até Quem Sabe”, uma canção de despedida lançada por Dóris Monteiro, em 1973, e regravada por Gal no disco “Cantar”, de 1974. E a música também foi gravada por Maysa.

“Bilhete” (MPB, 1980) – Ivan Lins e Vitor Martins
Ivan Lins e o parceiro Vitor Martins passavam o mês de dezembro em Teresópolis, na região serrana do Rio, e, há dias, tentavam compor uma canção sem sucesso. Diante da situação, Dona Carmelita, a empregada, sugeriu que eles fossem a uma benzedeira da região conhecida como Madalena. Lá, eles receberam alguns passes, e, no dia seguinte, a inspiração para “Bilhete” subitamente apareceu. A música foi lançada por Ivan Lins em 1980 que acredita que Vitor, autor da letra, estava tomado por uma entidade feminina. No ano seguinte, Dóris Monteiro concedeu sua versão para a música, regravada com enorme sucesso por Fafá de Belém em 1982, para o disco “Essencial”. A música acabou na trilha da novela “Sol de Verão”, da TV Globo.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]