*por Raphael Vidigal Aroeira
“a noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim” Antonio Cicero
Marina Lima nasceu no Rio de Janeiro, no dia 17 de setembro de 1955. Cantora e compositora, Marina apareceu para a música brasileira no final da década de 1970, quando se tornou ícone da nova música pop com o disco “Simples Como o Fogo”. No álbum seguinte, Marina gravou “Nosso Estranho Amor”, com Caetano Veloso. O estouro veio em 1981, com “Certos Acordes”, que trazia as faixas “Charme do Mundo” e “Gata Todo Dia”. Em 1984, Marina lançou “Fullgás”, parceria com o irmão Antônio Cícero, seu principal letrista. Ela também regravou “Me Chama”, de Lobão, com enorme sucesso. Marina ficou conhecida pela elegância de suas canções, sempre unindo a modernidade pop à poesia da música popular brasileira. E “À Francesa”, de 1989, foi mais um hit.
“Garota de Ipanema” (samba-bossa, 1963) – Tom Jobim e Vinicius de Moraes
Aquele do Michael Jackson virando zumbi, do Freddie Mercury com roupas femininas ou, ainda, o do Raul Seixas cercado por relógios, são exemplos de casos onde as músicas podem ser mais lembradas pelas imagens do que pelos sons. “Thriller”, “I Want to Break Free” e “Tente Outra Vez” continuam sendo belas canções, mas fica difícil avaliar se o impacto seria o mesmo se não fosse pelos videoclipes. O primeiro clipe exibido pela MTV Brasil foi, justamente, o clássico de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, “Garota de Ipanema”, samba-bossa de 1963. Na época a música brasileira mais executada da história ganhou a interpretação de Marina Lima, em 1990. Ela havia registrado a canção um ano antes, para o repertório do LP “Próxima Parada”.
“Não Há Cabeça” (balada, 1979) – Angela Ro Ro
O fato de ter sido uma das pioneiras a adentrar o terreno prioritariamente masculino da composição musical é visto por Marina Lima com tranquilidade. “Na verdade, não me lembrava disso quando surgi, depois foi que me atentaram”. No LP de estreia, Marina gravou Dolores Duran, em polêmica versão funk do clássico “Solidão”, e Angela Ro Ro, ao colocar voz em “Não Há Cabeça”. “Gravei Dolores por sugestão do André Midani, um homem muito inteligente, que era o presidente da gravadora Warner, e a Ro Ro foi porque me apaixonei por aquela música”. E não se faz de rogada quanto à importância da intervenção: “Hoje há ótimas compositoras, abrimos caminhos”. Como diz o verso da música de Ro Ro: “Que bom que nunca vai haver talvez/ Pra quem tudo na vida/ Amou, disse e fez”. As duas interpretaram a balada em um dueto.
“Nosso Estranho Amor” (balada, 1980) – Caetano Veloso
Independente em relação ao estilo e declaradamente apaixonada pelo suingue presenciado em Seu Jorge – “fico louca com isso!” –, Marina deixou-se cair indolentemente nos braços tropicais e revolucionários de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil e Gal Costa. Todos he dedicaram músicas ou gravaram sucessos de sua autoria. Segundo Lobão, a laureada com “Nosso Estranho Amor”, de Caetano, teria sido “adotada pelo movimento”. “Pra mim foi muito importante, pois de certa maneira recebi aval e prestígio”. As “pontes”, nas próprias palavras, estabelecedoras da união, teriam sido “o reconhecimento de uma originalidade, só posso entender assim, por ambos os lados”, orgulha-se. Em 1980, ela lançou a bela balada “Nosso Estranho Amor”.
“O Gato” (infantil, 1980) – Toquinho e Vinicius de Moraes
Em 1980, os poemas de Vinicius de Moraes que abordavam a história bíblica da “Arca de Noé” ganharam a primeira versão em disco, com melodias de Toquinho. Vários artistas participaram desse trabalho – que teve a arte da capa feita por Elifas Andreato –, como Elis Regina, Milton Nascimento, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Marina Lima e o conjunto As Frenéticas. Ficou a cargo de Marina Lima a divertida cantiga “O Gato”, que brinca sobre as características deste animal ao mesmo tempo arredio e sensual. Marina, aliás, emprega sua voz insinuante para ressaltar essas qualidades. Em breve, ela voltaria ao mundo dos felinos com a balada “Gata Todo Dia”, um grande hit.
“Gata Todo Dia” (balada, 1981) – Marina Lima, Léo Jaime e Tavinho Paes
Marina Lima sempre conjugou modernidade com elegância. A contenção procurada em seus versos e melodias, baseados em uma estética pop nunca impediu o discurso avançado, libertário e inovador. Marina representa a mulher moderna, livre, leve, solta e “Gata todo dia”, como canta na balada lançada por ela em 1981, uma parceria com Léo Jaime e Tavinho Paes. Além de ser uma ode aos prazeres da mulher, explicita também como ela constantemente desafia os limites impostos pela sociedade machista do patriarcado. Marina se expõe sem concessões, sem favores, sem pedir licença, assumindo o lugar de direito. “Tomo banho é de lambida”; “Mando na minha cabeça”, afirma a gata.
“Charme do Mundo” (balada, 1981) – Marina Lima e Antonio Cicero
Candé Salles e Marina Lima começaram como amigos e depois namoraram. “Hoje, voltamos ao patamar da amizade”, brinca Salles. O sentimento de amor entre eles permanece. Uma prova é “Uma Garota Chamada Marina”, documentário que revela intimidades da cantora. “O que me encanta na Marina é a liberdade”, elogia Salles. “Uma vez li numa entrevista uma frase que nunca esqueci que dizia: ‘a música tem a capacidade de afagar e eternizar momentos e pessoas’. Quando penso nisso, a música da Marina me vem imediatamente à cabeça, ela realmente tem essa capacidade”, enaltece o documentarista. Em 1981, Marina lançou uma música com essas características: “Charme do Mundo”, parceria com Antonio Cicero, aportou no ótimo disco “Certos Acordes”.
“Noite e Dia” (balada, 1982) – Lobão e Júlio Barroso
Tímida e sensual, alternando altos e baixos na carreira como de seu temperamento escorregadio, Marina recebia os olhares de Lobão e Júlio Barroso, amigos e compositores que juntos, apaixonados pela mesma presa, dedicaram-lhe “Noite e Dia”. “Não sabia que a música era pra mim, mas sempre via os dois rindo muito nas festas, acho que eram dois ‘espadas’, no sentido de serem competidores e disputarem as mesmas mulheres. Não devem ter dito nada pra não me assustar”, declara Marina, aos risos. “Noite e Dia” foi lançada pela cantora em 1982 e compara, novamente, a homenageada a uma felina. Ainda de Lobão ela gravaria, com enorme sucesso, “Me Chama”.
“Mesmo Que Seja Eu” (rock, 1982) – Erasmo Carlos e Roberto Carlos
Sabe o clichê “antes só do que mal acompanhado”? Pode ser uma boa resposta ao eu lírico da canção de Erasmo Carlos. “Mesmo Que Seja Eu” é o relato de um homem sobre a vida, segundo ele solitária, de uma mulher. Talvez a intenção dele tenha sido se declarar um homem apaixonado e protetor e é nesse ponto que, muitas vezes, torna-se difícil identificar o abuso em um relacionamento: “Filosofia e poesia/ É o que dizia minha vó/ Antes mal acompanhada do que só/ Você precisa de um homem/ Pra chamar de seu/ Mesmo que esse homem seja eu/ Um homem pra chamar de seu/ Mesmo que seja eu”. A canção foi regravada por Marina Lima no LP “Fullgás”, onde ela habilmente reverteu o sentido original.
“Fullgás” (balada, 1984) – Marina Lima e Antonio Cícero
Fugindo de rótulos por necessidade, e não por provocação, assim é Marina, que declara ter se aprofundado em campos poéticos e melodiosos (inventou, por exemplo, a palavra “Fullgás”, numa das muitas canções com o irmão e poeta Antonio Cícero), para se “traduzir, existir, desvendar um lugar novo. Nisso todo mundo é igual, e é justamente aí que somos únicos”, filosofa, ressaltando verso da música “A Parte que me Cabe”. O estouro de “Fullgás”, que deu título ao disco de Marina lançado em 1984, mudou a sua trajetória na música brasileira, iniciada no mercado fonográfico em 1979. A partir dali, ela passou a ser reconhecida como um exemplo de cantora pop e super antenada.
“Me Chama” (balada, 1984) – Lobão
Lobão, “roqueiro, reacionário, traidor” e outros adjetivos que pulularam na internet nos últimos tempos tentam etiquetar o autor do eterno hit “Me Chama”. Fato é que, atualmente, Lobão dispensa as apresentações. As opiniões do músico se tornaram de tal modo ressoantes que ele criou um canal no YouTube, definido pelo próprio como “fofo”, em que, antes de tudo, “trata as pessoas com carinho”. “Tenho a diligência de responder todos que sintonizam o canal”, garante. Em 1984, muito antes das inúmeras polêmicas que viriam depois, ele gravou o maior hit da carreira. “Me Chama” ganhou gravação de Marina Lima no mesmo ano e até de João Gilberto, em versão que Lobão também reprovou por ter suprimido um verso que o Papa da Bossa Nova “não entendia direito”. Pois se tratava de “nem sempre se vê mágica no absurdo…”.
“Ensaios de Amor” (balada pop, 1984) – Marina Lima e Ana Terra
Não é por acaso que as letras de Ana Terra parecem cartas de amor. Embora muita gente não saiba, é ela a mulher por trás de versos cantados na boca de Nana Caymmi, Milton Nascimento, Angela Ro Ro, e vários outros. Entre as mulheres que Ana admira aparece a cantora Marina Lima. “Com a Marina Lima tive uma parceria leve e gostosa. Ela foi até minha casa na Gávea com o violão e tocou a música, queria que eu fizesse na hora. Mas eu disse: ‘Não, querida. Grava aqui, que minha escrita é absolutamente a sós. Sei que muita gente trabalha junto, mas eu não sei’. E assim nasceu ‘Ensaios de amor’, que ela gravou no disco ‘Fullgás’, e o Emílio Santiago depois regravou”, recorda Ana Terra. O álbum trouxe outros sucessos de Marina Lima, como a música-título.
“Pra Começar” (balada, 1986) – Marina Lima e Antonio Cicero
“Pra Começar”, lançada em 1986, foi escolhida para fechar o mais recente álbum de Marina Lima, “Novas Famílias”, lançado em 2018. “Ela caía como luva para aquele momento dos anos 80 e cai para agora, em que o Brasil está cheio de gente que nem sabemos quem é, dizendo o que é certo e o que é errado e querendo retroceder os avanços que tivemos em nome de uma moral”, reclama a carioca. “Não acho que a música tem que ser política, mas a arte é, ela transforma a realidade”, afirma Marina. “Esse Brasil de hoje não reflete o que eu e muita gente esperamos dele. Eu prefiro ser forasteira e estar atuante a ficar escondida, faz parte da minha personalidade”, arremata Marina.
“Virgem” (balada, 1987) – Marina Lima e Antonio Cicero
Criado pelo educador Paulo Freire (1921-1997) na década de 70, o termo “empoderamento” voltou à baila nos anos 2000. De acordo com uma pesquisa do Google, o primeiro pico de buscas pela palavra aconteceu em junho de 2013, durante protestos que marcaram o Brasil. Em 2016, “empoderamento” ficou em primeiro lugar na lista das palavras mais procuradas. Na música brasileira, o empoderamento feminino não é novidade. Antes da expressão alcançar a fama atual, Rita Lee, Angela Ro Ro, Dona Ivone Lara, Marina Lima e outras esbanjavam atitude e coragem. Em 1987, por exemplo, Marina lançou a emblemática canção “Virgem”, outra parceria com seu irmão Antonio Cicero.
“Uma Noite e Meia” (pop, 1987) – Renato Rocketh
A mistura de gêneros, na concepção de Marina Lima, não deve passar somente pelo modelo da beleza grega ou da vergonha alheia, vigente e indigente. Alvo de críticas contumazes e ferozes da imprensa na época em que registrou a canção “Uma Noite e Meia”, segundo ela “uma precursora do axé”, de Renato Rocketh (muito em razão da passagem “todas de bundinha de fora”), a intérprete resolveu o embate abalizada pela profissão. “A mídia atreveu-se a julgar por um critério moral. Só que a arte avista discussões estéticas, não somos nem queremos ser moralistas”, afirma a cantora carioca. O próprio Renato Rocketh participa com Marina da faixa lançada no ano 1987.
“Preciso Dizer Que Te Amo” (balada, 1988) – Cazuza, Dé Palmeira e Bebel Gilberto
Interpretada por Cazuza no especial “Uma Prova de Amor”, exibido pela Rede Globo em 1989, a música teve o seu primeiro registro revelado no ano de 2004, quando o produtor Ezequiel Neves recuperou a fita cassete original. Lançada na coletânea “Preciso Dizer Que Te Amo”, a versão apresenta as vozes de Bebel Gilberto e Cazuza sob o acompanhamento do violão de Dé Palmeira. “E até o tempo passa arrastado/ Só pra eu ficar do teu lado”, sublinham os versos prenhes de paixão. Inicialmente, o refrão dizia: “É que eu preciso dizer que te amo/ Desentalar esse osso da minha garganta”, mas Dé Palmeira o achou muito “punk”, e Cazuza substituiu a expressão por “te ganhar ou perder sem engano”. A canção recebeu inúmeras regravações, com diferentes arranjos, mas mantendo o poder de identificação entre os românticos e apaixonados. Marina Lima, Leo Jaime, Bebel Gilberto e Cássia Eller foram alguns dos que deram voz a essa balada.
“À Francesa” (balada, 1989) – Antonio Cicero e Cláudio Zoli
Marina fecha o livro “Maneira de Ser”, nome da primeira canção composta pela intérprete de “À Francesa”, com uma ode à família, voltando-se para a receita de uísque ensinada pelo pai, os signos da mãe e dos irmãos. “Junto com os amigos formam os alicerces, as bases nas quais esparramamos a vida”. Na casa de Marina, a loucura do patriarca por Beethoven e música erudita fazia ecoar pelos corredores as composições curativas. Passeando pelas ruas da capital carioca, ela conheceu William Magalhães, filho do pianista da banda Black Rio, Oberdan, e adentrou ao silêncio de Debussy, a revoada de Villa-Lobos, o hino ao martírio de Chopin. “Essas coisas vão nos transformando no que somos, o resto é por nossa conta e risco”, aponta ela que, em 1989, lançou “À Francesa”, música de Antonio Cicero e Cláudio Zoli com enorme sucesso.
“Grávida” (MPB, 1991) – Arnaldo Antunes
Outra contribuição de Marina Lima para o universo feminista foi a música “Grávida”, música de Arnaldo Antunes gravada por ela em 1991. Nela, Marina revela outra faceta da mulher moderna, livre. O desejo da maternidade que não anula em nada as outras conquistas e os ambientes que esta mulher explora. Por isso a grávida da canção é capaz de gerir um filho como também “um terremoto, uma bomba, uma cor, uma locomotiva a vapor”. A capacidade geradora da mulher, seu senso de maternidade se aliança, desta maneira, às novas expectativas e perspectivas de um mundo moderno. Que talvez tenha começado quando Leila Diniz, grávida, expôs a barriga na praia em seu biquíni.
“Beija-Flor” (axé, 1993) – Xexéu e Zé Raimundo
“Música tem a ver com as nossas frequências e vivências. Essas pessoas, a Daniela Mercury, Gaby Amarantos, traduzem o país que elas conhecem, e que pode não ser perfeito, mas é o que existe, e de uma maneira muito bonita e simples”, avalia Marina Lima. Ivete Sangalo também detém a admiração da entrevistada. “Paro para assisti-la quando aparece na televisão, ela é uma força que me aproxima de um universo do qual não faço parte, distante, e dessa maneira consigo me conectar um pouco”. Da lavra do axé, Marina também registrou “Beija-Flor”, êxito do grupo Timbalada, de Xexéu e Zé Raimundo, lançada em 1993. A versão de Marina chegou à praça no ano 1995.
“Três” (balada, 2006) – Marina Lima e Antonio Cícero
“O instinto e a intuição são importantes, é matéria-prima. Mas é necessário aprimorar, burilar, inserir critérios artísticos”, teoriza Marina Lima. No disco “Clímax”, de 2011, ela se reuniu com Adriana Calcanhotto, parceira de “Não Me Venha Mais Com o Amor”, em virtude de “afinidades e vontade de repetir a dose”. A gaúcha regravou de Marina a canção “Três” no disco Maré, que foi originalmente lançada em 2006, no álbum “Lá nos Primórdios”. A canção é uma parceria de Marina com o irmão Antonio Cícero, e parte da premissa de um tango dividido em três partes, em que a história se desenrola lentamente. João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Stendhal estão entre os autores favoritos de Marina Lima, o que justifica a preferência pela concisão.
“Só Os Coxinhas” (2018) – Antonio Cícero e Marina Lima
Antonio Cícero é reconhecido como compositor, poeta, crítico literário, filósofo e escritor. Ao lado da irmã Marina Lima, ele assinou vários hits da música popular brasileira. Cícero é o autor das letras de “Fullgás”, “À Francesa” (com Cláudio Zoli) e “A Chave do Mundo”, dentre outras. Recém-empossado na Academia Brasileira de Letras, em 2017, o carioca surpreendeu à crítica um ano depois, ao explorar o ritmo do funk em uma nova parceria com Marina. “Só os Coxinhas”, lançada em 2018, fazia troça com o apelido pelo qual as pessoas defensoras das políticas de direita passaram a ser conhecidas após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, operado em 2016.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.