Alaíde Costa canta músicas inéditas de Emicida, Erasmo Carlos e Ivan Lins

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
com nitidez de agulha
e presença de vespa.” João Cabral de Melo Neto

Certa vez, Alaíde Costa confidenciou-me: “Cantei com o coração”. É também em clima de confidência que a cantora dá voz às oito faixas inéditas que compõe o repertório de “O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim”, seu mais novo disco, feitas especialmente para ela por gente da tarimba de Ivan Lins, Guilherme Arantes, João Bosco, Joyce, Fátima Guedes e Erasmo Carlos, que se unem à geração de Emicida, Céu, Tim Bernardes, Francisco Bosco e até Nando Reis. Pois que não se enganem os incautos, o coração de Alaíde nada tem a ver com derramamentos. A intérprete preza pela elegância e contenção.

É desta maneira que ela entra em cena com “Turmalina Negra”, como se abrisse a cortina do baile, adornada pelos sopros desta canção de atmosfera noturna, composta por Céu e Diogo Poças. Carioca de dezembro de 1935, Alaíde sempre tangenciou a bossa nova, como uma espécie de estilista dentro do próprio movimento, o que a relegou a um lugar de sombras, assim como o parceiro Johnny Alf, muito por conta do racismo que ela incansavelmente denunciou. “Turmalina Negra” reverencia essa história, seja pelos versos, seja pela forma: “Pedra preciosa/ Turmalina negra/ Meu canto assiste/ A busca da delicadeza/ De um mundo melhor”, canta Alaíde Costa, perpetuando a sua luta.

Na sequência, “Nenhuma Ilusão” começa à capela. O arranjo é inebriante. Cabe lembrar que, em 1969, com pouco mais de 30 anos, Alaíde interpretou “Ilusão à Toa”, o grande sucesso de Johnny Alf, ao lado do compositor. Agora, aos 86, ela sublinha a canção de Fátima Guedes: “Se de longe eu te vi/ Saiba que esse exausto coração/ Sempre há de bater por você/ Neste samba-canção/ E ainda sonha com um beijo de paz/ Sem nenhuma ilusão”. Em “Tristonho”, Alaíde dá as cartas como compositora. Foi ao piano que a artista compôs duas parcerias com Vinicius de Moraes (1913-1980), “Amigo Amado” e “Tudo O Que É Meu”, na longínqua década de 1960, sob o luar daquela bossa.

Agora, ela empresta sua melodia aos versos de Nando Reis, o que resulta em “Tristonho”, canção soturna, tensa, sustentada pelo peso do contrabaixo: “Vou lhe dizer/ Jamais alguém tratou-me assim/ Com pontapés, má-fé/ Feriu meu coração/ Até zombou de mim/ E do meu amor”. Dor-de-cotovelo com direito a um alto grau etílico para superar a decepção. “Berceuse”, de Guilherme Arantes, surge como o ponto mais alto do disco. Como pressupõe o título em francês, trata-se de uma autêntica canção de ninar, cheia de singeleza, na medida certa para a voz profunda e precisa de Alaíde. E é tanta beleza que dói.

“Pessoa-Ilha” une Emicida e Ivan Lins, e se movimenta de dentro para fora. Agora, o álbum de Alaíde recebe contornos mais expansivos. O discurso mira o exterior, sem perder o requinte caro à intérprete, se fiando na tradição que Ivan construiu com Vítor Martins, em canções políticas e metafóricas do porte de “Abre Alas”, “Cartomante”, “Desesperas Jamais”, e etc. “Praga” é outro momento luminoso. Um bolero que une duas pontas das músicas de fim-de-caso: Erasmo Carlos e Tim Bernardes. O violão se destaca. E os versos ecoam pela voz dolorosa da cantora: “Depois de jogar no lixo/ Uma paixão tão verdadeira/ Já faz tempo eu fui embora/ Você gritava: ‘eu duvido’/ Ouve a minha praga agora/ Sussurrando em seu ouvido…”. É de dar inveja a Nora Ney.

“Aos Meus Pés”, além da assinatura de pai e filho, respectivamente João Bosco e Francisco Bosco, investe em um arranjo intricando que suscita a complexidade da letra, apesar de versar, à primeira vista, sobre um amor desfeito. A entrega da cantora demonstra essa submissão do eu-lírico. Alaíde quando canta sofre, mas nunca apela ao sentimentalismo. É essa mistura peculiar que a torna única dentro da canção popular brasileira. Não há paralelos entre seu estilo e o de outras contemporâneas, como Claudette Soares, Dóris Monteiro, Sylvinha Telles (1934-1966), Isaurinha Garcia, e etc.

Alaíde emerge durante a bossa nova, com a memória do samba-canção. Sua fineza nunca é estéril, não dispensa a dor. “Aurorear”, o foxtrote de Joyce e Emicida que encerra os trabalhos, cumpre o papel de resumir essa condição. Não por acaso contém o verso que batiza o álbum. Alaíde tem calos e templos.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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