*por Raphael Vidigal Aroeira
“O meu prazer está, precisamente, na coisa pequena, na cena, no fragmento, na fotografia, na bolha de sabão…” Rubem Alves
Ao se sentir ansiosa ou agitada, Karen Ramos, 32, aproveita o final da tarde para observar os últimos raios de sol sobre as casas da rua, prédios, pessoas e objetos. “Acredito que toda cena pode se tornar mais bela a depender da luz que incide nela”, reflete Karen. Ela também não esconde a predileção pela iluminação. “Sabe aquela luz de fim da tarde, que deixa tudo mais aconchegante? Ela desperta a minha criatividade, curiosidade e me faz querer fotografar seus detalhes e variações”, declara Karen, que, desde pequena, ouvia histórias da infância enquanto folheava os álbuns fotográficos da família.
1 – Qual a sua primeira lembrança ligada à fotografia? Há uma imagem de alguma fotografia que tenha te marcado e, posteriormente, despertado o desejo de trabalhar com isso?
Eu cresci ouvindo as histórias sobre momentos da minha infância sendo contadas enquanto folheava os álbuns fotográficos criados pelos meus pais. Lembro que sempre fazia piada sobre o fato de várias fotos estarem mal enquadradas, mostrando apenas eu pequenininha no meio do quadro, e algumas fotos escuras, sendo possível ver apenas a sombra das pessoas. No entanto, quase não temos retratos das gerações passadas da família. Meus pais adquiriram uma máquina fotográfica popular com muito suor, pois sabiam o valor que esses registros teriam posteriormente, mas não tinha preocupação em aprender de fato a fotografar melhor, era tudo muito intuitivo e cumpria perfeitamente a função de registro das memórias do que vivemos.
2 – Como e quando começou a sua relação com a fotografia?
Eu só me interessei pela fotografia na adolescência, época em que usava uma câmera cybershot simples, que parcelei de 10x no cartão de crédito do meu pai, para fazer alguns autorretratos em meu quarto. Naquela época, mesmo sem saber os conceitos da fotografia, eu já me preocupava em planejar as imagens antes do clique. Eu pensava nas poses, nos ângulos, me arrumava pra me sentir bonita e organizava meu quarto antes das sessões. Gostava de criar imagens mais subjetivas, mostrando apenas alguns detalhes do rosto ou corpo e explorava as possibilidades para me diferenciar através dessas fotos. Era mais parecido com o que chamamos de fotos “conceituais” do que com o que conhecemos como “selfies”.
O processo de fotografar e o resultado das fotografias aumentava minha autoconfiança e autoestima, e eram sempre elogiadas pelas pessoas que viam. Certa vez, uma amiga da escola ficou surpresa ao ver minhas fotos e disse que eu podia ser fotógrafa. Eu nem sabia que isso poderia ser uma profissão, pois meu foco era prestar vestibular e me tornar Veterinária, mas hoje percebo que foi ela quem plantou a primeira sementinha dessa possibilidade na minha cabeça e acho que nem se lembra desse dia.
Anos depois, já atuando como fotógrafa, descobri que podia ajudar outras mulheres a melhorarem suas relações com seus corpos através dos retratos também. Inclusive, cheguei a retratar essa amiga em um momento de baixa autoestima e ajudá-la a se olhar com mais carinho. Fiquei contente, pois senti que ela estava confiando em meu olhar pela segunda vez na vida, sem nem saber o impacto que a sua fala lá atrás teve na minha autoestima.
3 – Quais são, na sua opinião, os principais desafios e incentivos de ser fotógrafo em Belo Horizonte?
O que observo no mercado é que as pessoas muitas vezes não têm noção do valor agregado ao serviço de fotografia de qualquer nicho, seja de eventos, ensaios ou autorais. Muitas vezes elas enxergam a fotografia apenas como um clique do momento feito com uma câmera bacana, para não ficar sem lembranças futuras ou para postar nas redes sociais, e não consideram o alto investimento em equipamentos e em conhecimento que precisamos ter para que nosso trabalho seja além do básico.
Como não existe uma regulamentação da profissão de fotógrafo, e pouquíssimos cursos superiores em fotografia (todos privados, inclusive), a profissão acaba sendo vista com uma certa informalidade. Grande parte dos profissionais que conheço não possuem nenhuma formação na área, são autodidatas e aprenderam praticando como assistente de outros profissionais. Isso é absolutamente comum e facilita o acesso de mais pessoas à profissão, mas com um grande número de profissionais disputando por clientes no mercado, no fim das contas só aqueles que têm mais habilidade com marketing e vendas conseguem pagar suas contas com o trabalho da fotografia.
4 – O que é essencial que uma fotografia tenha, na sua opinião? Há algum aspecto que você privilegia no seu trabalho? Luz, enquadramento, cenário, posição dos modelos?
Na minha criação, a luz é o principal elemento estético da fotografia. Adoro observar o movimento da luz solar durante o dia e perceber como ela transforma qualquer ambiente de acordo com sua posição e intensidade. A luz natural é capaz de me trazer presença plena para o momento em que estou vivendo. Sabe aquela luz de fim da tarde, que deixa tudo em que toca mais quentinho e aconchegante? Ela desperta a minha criatividade, curiosidade e me faz querer fotografar seus detalhes e variações. Amo fotografar a natureza, mas gosto mesmo é de como as pessoas e objetos se tornam mais belos quando estão integrados ou interagindo com ela, então considero a direção fotográfica e o enquadramento importantíssimos também.
5 – De que maneira você procura dar um viés ou tratamento artístico para seu trabalho?
Através da luz natural, principalmente. Observar as luzes e sombras que são formadas através delas me permite enxergar formas, texturas e belezas que em geral passariam despercebidas. Como em geral fotografo pessoas, gosto de usar a luz para transmitir sentimentos como alegria, nostalgia, mistério, sensualidade e aconchego.
6 – Quando você realiza fotografias autorais, que não têm um cliente contratando, o que te interessa fotografar? O que costuma te despertar o desejo de fotografar?
Me interesso em fotografar pessoas, natureza, texturas e formas embaladas pela luz. Em geral, ela é a primeira coisa que eu enxergo em uma cena, e o que me inspira e desperta o desejo de fotografar. Quando me sinto agitada ou ansiosa, gosto de sair no fim da tarde e observar os últimos raios de sol que incidem nas pessoas, na rua, nas casas, nos prédios e nos objetos. Acredito que toda cena pode se tornar mais bela a depender da luz que incide nela.
7 – As tecnologias virtuais impactaram de alguma forma o seu trabalho? Qual a relevância da fotografia artística e profissional num tempo em que todos “fotografam”?
Acredito que hoje muitos têm acesso aos equipamentos fotográficos para registrar momentos, mas não sabem fazer um uso consciente e intencional dele para criar boas fotografias. Recentemente, ministrei uma oficina de fotografia com celular para profissionais que desejam divulgar seu trabalho nas mídias digitais com qualidade e intencionalidade, e observei que a maioria das pessoas não sabiam usar as funções mais básicas das câmeras do celular, apenas apontavam pra cena e registravam sem pensar muito.
Isso não é errado, mas é muito diferente de uma fotografia profissional ou artística, que é criada com intencionalidade e técnica. É o olhar do fotógrafo que cria uma boa fotografia, muito antes do equipamento que está sendo utilizado, então não acredito que a popularização dos meios de fotografar substituam a importância do fotógrafo. Como fotógrafa, busco criar imagens que transmitam sensações e mensagens sobre minha forma de enxergar o mundo e as pessoas, que se identificam com esse olhar e querem ser vistas por ele. Uma selfie feita de um celular de última geração não vai substituir a experiência de se permitir ser observada e retratada por um olhar mais acolhedor, amoroso e poético sobre seu corpo e sua história.
8 – Em 2024, o que você pretende fotografar que ainda não fotografou?
Como eu retrato mulheres que têm inseguranças com seus corpos, durante o ensaio eu direciono 80% da minha energia com a direção fotográfica, pois preciso me conectar com ela para fazê-la se sentir confiante e ajudá-la a se soltar diante da câmera. Por isso me resta pouca energia para apenas contemplar a cena com calma e experimentar mais as possibilidades de enquadramentos, já que tudo acontece com muita intensidade. Meu desejo é continuar fotografando mulheres, pois é um universo que me interessa e inspira, mas gostaria de experimentar retratá-las de forma documental, em que não serei responsável por dirigir a cena, apenas registrá-la.
Também gostaria de registrar mais minha família e nossos momentos juntos. Há dois anos, minha avó faleceu e senti muito pesar por não tê-la fotografado em vida. Mas ainda não consegui colocar em prática esse desejo, pois esse processo foi bem dolorido e me levou a questionar a importância do meu trabalho. Agora que estou me curando da dor que a passagem dela desencadeou.
9 – O que é mais importante de ser “dito/mostrado” através da fotografia nos tempos atuais?
Sinto que precisamos captar mais a realidade como ela é, pensando nas memórias que teremos no futuro sobre estes momentos vividos. Atualmente as pessoas fotografam para postar nas redes sociais quase que em tempo real, e por lá queremos mostrar apenas os recortes belos e admiráveis da nossa realidade. Isso nos leva a querer higienizar ao máximo as cenas, escolhendo principalmente aquelas fotos em que estão em poses e cenários bonitos.
Ser fotografado espontaneamente gera uma grande preocupação nas pessoas, pois sabemos que aquela foto será imediatamente compartilhada em várias mídias mostrando quem somos e partes da nossa vida sem passar por nenhum filtro. Nas fotografias dos eventos de família que eu cresci vendo, as pessoas eram clicadas em poses engraçadas e espontâneas, e isso virava motivo de riso e diversão quando víamos os álbuns juntos. Mas sem que esses registros espontâneos sejam escolhidos para compor os álbuns de fotos do futuro, precisamos ter cuidado para não transformá-los em um compilado de fotografias impecáveis, pensadas milimetricamente para serem “apenas” bonitas.
Foto: Fred Magno