Francis Hime compôs, com Chico Buarque, música que fez Elis chorar

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Mas minha alma é como um piano precioso fechado a chave.” Tchekhov

Francis Victor Walter Hime, conhecido como Francis Hime, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 31 de agosto de 1939. Cantor, compositor, arranjador e pianista, Francis Hime começou seus estudos musicais aos seis anos de idade, com o piano. Na década de 1950, mudou-se para a Suíça, onde deu prosseguimento aos estudos. De volta ao Brasil, deparou-se com o início da Bossa Nova, movimento capitaneado por João Gilberto e Tom Jobim, e travou amizades com Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Baden Powell, Edu Lobo, Dori Caymmi, Wanda Sá, Marcos Valle e outros nomes ligados ao movimento. Francis também se tornou parceiro de Chico Buarque. Em 1969, ele se casou com a cantora Olívia Hime. Entre seus sucessos estão “Passaredo”, “Meu Caro Amigo”, “Atrás da Porta”, “Sem Mais Adeus”, “Língua de Trapo” e “Vai Passar”.

“Por Um Amor Maior” (samba-canção, 1965) – Francis Hime e Ruy Guerra
Elis Regina ainda não havia se configurado como a estrela-maior da MPB quando gravou, em 1965, o LP “Samba – Eu Canto Assim”. No repertório, prevaleciam nomes ligados à tradição, como Vinicius de Moraes, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Carlos Lyra e Dorival Caymmi. Das doze faixas, nada menos que quatro traziam a assinatura de Ruy Guerra. “Reza” e “Aleluia”, ambas com Edu Lobo, e “Último Canto” e “Por Um Amor Maior”, com Francis Hime. A última foi a que se destacou, recebendo, no ano seguinte, uma regravação cadenciada de Tito Madi, espécie de precursor da bossa nova. Também em 1966, Taiguara, um dos representantes da música de protesto do país, a reviveu no disco “1º Tempo: 5×0”, dividido com Claudette Soares e o Jongo Trio. Na abertura, Taiguara recita um poema que alude à ditadura militar.

“Atrás da Porta” (MPB, 1972) – Chico Buarque e Francis Hime
Sabemos que a música brasileira é pródiga em canções dolorosas, que o diga “Preciso Me Encontrar”, feita por Candeia quando o sambista, que também trabalhava como policial levou cinco tiros, sendo que dois atingiram a sua medula espinhal, e ficou paraplégico. Regravada por Cartola, a canção eternizou esse triste lamento: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar”. E como não se lembrar de “Atrás da Porta”, de Chico Buarque e Francis Hime, que levou Elis Regina às lágrimas durante a interpretação de versos de lascar o coração: “Quando olhaste bem nos olhos meus/ E teu olhar era de adeus/ Juro que não acreditei”. Foi lançada em 1972.

“Meu Caro Amigo” (choro, 1976) – Chico Buarque e Francis Hime
Em 1976, Francis Hime criou, com Chico Buarque, a célebre “Meu Caro Amigo”, carta em formato de música para o dramaturgo Augusto Boal, à época, exilado pela ditadura militar brasileira em Lisboa. A clássica canção foi rebobinada por Hime em 2019, numa celebração à libertação do ex-presidente Lula, um dos assuntos recorrentes nos e-mails trocados entre o pianista e Chico Buarque. “Falamos muito sobre política, às vezes de futebol. A gente não sabe o dia de amanhã, a situação do Brasil é preocupante, tememos algo que parecia impossível, que é a volta da ditadura, a censura já está instalada”, denuncia. Apesar dos pesares, a música voltou a reunir os dois velhos amigos, que não compunham juntos desde a política e emblemática “Vai Passar”, de 1984. A música “Meu Caro Amigo” ainda foi regravada por Paulinho da Viola.

“Passaredo” (MPB, 1976) – Chico Buarque e Francis Hime
Chico Buarque e Francis Hime compuseram, em 1976, uma ode aos pássaros brasileiros e, em última instância, à rica fauna do país. Interessante notar a influência indígena em muitas dessas nomenclaturas, como se observa, por exemplo, em uirapuru, saíra, inhambu, patativa, macuco, juriti, e muitos outros. Nesta letra repleta de lirismo, os autores não deixam de denunciar a presença destruidora do ser humano no contexto de preservação da natureza. “Toma cuidado/Que o homem vem aí”, alertam. A melodia segue, até esse instante, o ritmo do voo gracioso desses animais. Foi regravada por Adriana Calcanhotto.

“Máscara” (samba-canção, 1977) – Francis Hime e Ruy Guerra
A cantora Márcia especializou-se em canções lancinantes de dor de cotovelo, e recebeu os aplausos do exigente Paulo Vanzolini quando gravou “Ronda”, que deu título a seu LP de 1977. Na capa, uma ilustração com o traço inconfundível do craque Elifas Andreato mostrava uma mulher abatida, de cigarro na mão, derramado lágrimas e acariciando uma rosa que se despetala. No repertório, também constava uma parceria de Ruy Guerra e Francis Hime: “Máscara”. A canção repetia o espírito das paixões dolorosas sempre bem-defendido pela intérprete. “Máscara que cobrindo o meu rosto/ Revelaste o coração/ Me dando razão e gosto/ Pra avançar na contramão”. A música também foi gravada por Francis Hime, no LP “Passaredo”, e, já em 1983, ganhou a voz de Olívia Hime.

“Pouco me Importa” (MPB, 1977) – Francis Hime e Ruy Guerra
A fértil parceria entre Ruy Guerra e Francis Hime rendeu ainda, em 1977, “Pouco me Importa”, que foi lançada no álbum “Passaredo”. Em 1985, Zezé Motta tomou para si os versos da canção ao fornecer a sua versão para o LP “Frágil Força”, adensando os seus contornos de ressentimento. “Ah, pouco me importa a maldição/ De ter perdido o teu amor/ Pouco me importa que essa porta/ Não me deixe mais entrar/ Porque eu te quero até o fim/ E sem pudor vou gritar/ Tudo o que o meu corpo guardou/ Pra teu prazer, pra meu penhor”. Zezé passava a integrar um seleto time de grandes cantoras que interpretaram a obra de Ruy Guerra, aliando-se a Elis Regina, Maria Bethânia, Angela Ro Ro.

“Trocando em Miúdos” (MPB, 1978) – Chico Buarque e Francis Hime
Típica canção de fim de caso, “Trocando em Miúdos” bebe na fonte de Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues, Maysa, Antônio Maria e outros compositores que escreveram os melhores capítulos da dor-de-cotovelo no Brasil. Parceria de Chico Buarque e Francis Hime, a música é dona de versos inesquecíveis, como: “Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim? / O resto é seu”. Noutro momento, cita o poeta chileno que escreveu os “Cem Sonetos de Amor”: “Devolva o Neruda que você me tomou/ E nunca leu”. Entre o ressentimento e a melancolia, “Trocando em Miúdos” se consagrou como clássico absoluto da canção popular brasileira. Lançada por Chico em 1978, ela foi regravada por Nara Leão, Maria Bethânia, Gal Costa, Emílio Santiago, Alcione e Zezé Motta.

“Pivete” (MPB, 1978) – Chico Buarque e Francis Hime
Da prolífica parceria entre Chico Buarque e Francis Hime, nasceu o samba de temática social “Pivete”, arregimentado instrumentalmente com todas as possibilidades da MPB. A música foi lançada por Chico Buarque em 1978, no disco que trazia apenas o seu nome na capa. Chico e Francis captam, com sua ótica sensível, a triste situação das crianças de ruas provocada pela imensa desigualdade social que formou o Brasil, e que insistia em permanecer como uma ferida aberta nos “anos de chumbo” da ditadura militar, a despeito do discurso oficial que festejava o tal “Milagre Econômico” para poucos. “No sinal fechado ele vende chiclete/ Capricha na flanela e se chama Pelé”, denunciam.

“Vai Passar” (samba, 1984) – Chico Buarque e Francis Hime
Um dos maiores clássicos de Chico Buarque só foi concluído no estúdio, em cima do laço da gravação. Chico estava envolvido com a peça “Dr. Getúlio”, de Dias Gomes e Ferreira Gullar, para a qual compunha a trilha sonora, quando começou a nascer o samba “Vai Passar”. A ideia inicial era dividir a canção com um grupo de compositores, na linha dos sambas-enredos, mas ela acabou no colo de Francis Hime, que a tomou para si com toda a capacidade melódica. Com versos de exaltação, “Vai Passar” é um prenúncio do fim da ditadura militar, e chegou à praça um ano antes da derrocada final do regime, em 1984. “O estandarte do sanatório geral vai passar…”. A música foi lançada por Chico.

“Samba Dolente” (MPB, 2019) – Francis Hime e Olívia Hime
O mais recente disco de Francis Hime, “Hoje”, nasceu de um sonho. Esta era uma prática comum do cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993), que costumava dormir nos sets de filmagem e, ao acordar, escrevia e desenhava as imagens que lhe tinham aparecido durante o sono, a fim de tirar ideias para suas obras. Mas, no caso de Francis Hime, foi tudo por acaso. “Isso nunca me tinha acontecido. Sonhei com uma música e, meio dormindo, gravei no celular para não perder”, conta. “Hoje” foi lançado em 2019, para festejar os 80 anos do compositor, e apresenta 12 inéditas, entre elas “Samba Dolente”, parceria com a esposa, Olívia Hime. A música é uma das mais inebriantes do repertório.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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