Orlando Drummond foi muito mais do que o icônico Seu Peru da “Escolinha”

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Mas por detrás do silêncio, ouço vozes, rumores, gritos.” Strindberg

Certa vez um músico me disse que não entendia como, na música, a imagem havia se tornado mais importante do que o som. Pois bem, Orlando Drummond – que morreu nesta terça (27), aos 101 anos – surgiu em uma época em que a imagem não tinha a menor relevância. Afeito a tiradas, Orlando Drummond gostava de dizer que começou a trabalhar no rádio em mil novecentos e não vem ao caso. O primeiro emprego de carteira-assinada foi como contrarregra nas rádios-novelas da Tupi, em que sua função era produzir sons de chuva, tique-taques de relógios e o barulho dos cascos de cavalo batendo contra a superfície. “Modéstia à parte, eu era muito bom nisso”, brincava.

Com o empurrãozinho de Paulo Gracindo, passou para a dublagem, logo abocanhando papeis de destaque, como o Sargento Garcia, de Zorro – ele chegou a conhecer pessoalmente o intérprete Henry Calvin, impressionado com seu trabalho – e Moe, o “chefe” de “Os Três Patetas”. A estreia se deu com “Os Três Mosqueteiros”. Não demorou para Orlando Drummond se tornar a voz de personagens que o consagraram, casos do marinheiro Popeye, de Alf, o ETeimoso e do Vingador da “Caverna do Dragão”. No reino animal, sua voz inegavelmente transmitia sabedoria: foi duas vezes escalado para dublar corujas, em Ursinho Puff e como o Arquimedes de “A Espada Era a Lei”, desenhos da Disney. E chegou a ser o galo que acordava os ouvintes da Tupi.

Mas o animal que ele mais gostava de dublar era o cachorro Scooby-Doo, que lhe garantiu a entrada no Livro dos Recordes pelos 35 anos de atuação. Reza a lenda, propagada pelo próprio Orlando Drummond, que a inspiração para a voz do medroso companheiro de Salsicha veio quando ele precisou espantar um ladrão que invadia a sua casa de recém-casado. Dado o espírito zombeteiro e criativo de Orlando Drummond, é impossível precisar onde começa a farsa e termina a arte. Na maturidade, o ator ainda se destacou ao dublar o temido Darth Sidious de “Guerra nas Estrelas: Episódio VI, o Retorno de Jedi”. A essa altura, ele já trazia na bagagem um casamento de décadas do qual se orgulhava tanto quanto do nome de sua esposa, Glória, e mais tantos anos de ponto-batido na Rede Globo.

Conservador, Orlando Drummond foi taxado de “fura-greve” em 1978, durante manifestações sindicais pelos direitos dos trabalhadores. Embora tenha participado como ator de “uma meia dúzia de filmes”, como dizia, em que trabalhou com os melhores da comédia – como Oscarito, Grande Otelo, Zé Trindade, Renato Aragão e Chico Anysio – Orlando Drummond só ficou conhecido do grande público de rosto e corpo ao receber o convite, de última hora, diga-se de passagem, para dar vida ao Seu Peru da “Escolinha do Professor Raimundo”. Como dublador, Orlando Drummond sabia, como ninguém, emprestar nuances à voz da personagem de acordo com suas características. Ele utilizava a voz poderosa, grave, a serviço da personagem, com uma incrível capacidade de modulações, por exemplo, tornando fanho o ETeimoso e rouco o marinheiro Popeye. Scooby-Doo era um tanto empolado.

Caracterizado de Seu Peru, criou um gay à moda da época, reproduzindo o estilo caricatural do carnavalesco Clóvis Bornay, figurinha carimbada nos bailes da elite carioca, que gravou marchinhas como “Eu Quero É Furunfar” e “Fla Gay”. Seu Peru caiu no gosto popular com a mania de arrastar o “R”, maneirismo de nossos radialistas, e as indiretas maliciosas, calcadas no duplo sentido. O sucesso junto ao público infantil ia ao encontro da figura exuberante, colorida, carismática. Seu Peru é fruto de um período em que cabia ao gay, ainda, apenas o lugar da piada e do exagero, sem contestações eficazes a esse respeito. É, também, um documento histórico sobre a sociedade brasileira e seus costumes, como, aliás, convém à arte. Mas Orlando Drummond, embora eternizado como esse homossexual espalhafatoso, foi muito mais do que a caricatura. A sua principal contribuição está na dublagem, ao abrir caminhos para uma série de profissionais talentosos. Talvez não tanto quanto ele.

Originalmente publicado no portal da Rádio Itatiaia em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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