‘Angela’ desperdiça boa história e talento dos atores com direção ineficiente

*por Raphael Vidigal

“Ao contrário de tudo que foi previsto, está chovendo dentro dos olhos da mulher com ar de Brigitte Bardot” Roberto Drummond

Um filme pode ser impressionante de muitas maneiras. No caso de “Angela”, que retrata o trágico assassinato da socialite Ângela Diniz pelo seu então namorado, o playboy Doca Street, em caso que mobilizou parte da sociedade brasileira, em especial as feministas da época, durante nossa infame ditadura militar, impressiona a capacidade de se desperdiçar uma boa história e um elenco de atores talentosos com uma direção ineficiente, que peca do princípio ao fim do longa-metragem, sem tempo para descanso ou de corrigir esse rumo.

Logo de cara, a escolha por um recorte narrativo que compreende apenas os últimos anos da vida da protagonista, do momento em que ela conhece seu algoz até ser morta covardemente, se mostra equivocada. Ângela fica presa à imagem de mulher depressiva em busca de saídas improváveis, quando os ecos de seu passado atribulado sugerem que ela foi muito mais do que isso. O mais grave é que a história simplesmente não anda, num imobilismo intragável.

Nada de relevante acontece até o desfecho fatal, o que é indesculpável para um filme que está longe de almejar ser conceitual ou inovador na linguagem, muito pelo contrário, é justamente na progressão dos acontecimentos narrativos que ele se baseia. Cenas de sexo se sucedem mecanicamente de maneira cada vez mais enfadonha, enquanto textos em forma de cartilha são colocados aqui e acolá na boca dos atores, largados à deriva pela direção de Hugo Prata, que, no ano 2016, se aventurou a filmar a trajetória de Elis Regina.

Para piorar, o longa força a barra ao aderir à legítima cartilha dos movimentos identitários, o que, no cinema, absolutamente não funciona, porque um tipo de pensamento contemporâneo é transportado aos anos 1970 na vã tentativa de afirmar a premência da história, que não precisaria deste recurso, e, ironicamente, graças a ele, fica incrivelmente deslocada e anacrônica. Outro deslize é buscar tecer uma imagem de pensadora injustiçada para a protagonista, às voltas com uma biografia escrita por ela, mas nunca publicada.

Sem um pensamento elaborado e intelectualizado, Ângela viveu na pele as consequências do brutal machismo brasileiro, porém, essa força da experiência passa ao largo da narrativa, em prol de uma pretensa postura consciente e ativista daquela que ficou conhecida como a “Pantera de Minas” ao celebrizar colunas sociais enquanto ainda era uma menina de “boa família” que mudou-se de Curvelo para a capital Belo Horizonte. A beleza estonteante serviu de esteio para sua ascensão na tradicionalíssima (e hipócrita, diga-se de passagem) sociedade mineira, que ela tão logo escandalizou com a sua postura libertária…

Tampouco se explora devidamente o peso desta cultura sobre uma mulher julgada pelo moralismo vigente que a cerca como fútil e promíscua, apenas por ter se desquitado e, para tanto, aberto mão da guarda dos três filhos, o que transforma sua crescente ansiedade e insegurança num doloroso instinto de reação. É óbvio que Ângela Diniz não precisava ser uma pensadora intelectualizada para entregar ao longa-metragem uma personagem complexa, cheia de nuances e camadas. Tal visão, um tanto elitista, responde por parte dos equívocos do filme. Em suma, não se aprofunda a personalidade de Ângela, que permanece superficial ao fim da projeção, que dura quase 2 horas.

O temperamento de uma mulher sem papas na língua, a liberalidade, um certo gosto pelo excesso, e suas extravagâncias premidas, sobretudo, pelo amor à própria liberdade, são reduzidas ao crime fatal. O filme que está ali tão somente para chegar à sua morte, e o faz numa letargia insuportável, a trata, ainda em vida, como um fantasma que aguarda esse destino trágico, quando, na realidade, o que não faltou na vida de Ângela Diniz, para o bem e para o mal, foram momentos repletos de paixão e intensidade, numa luta desigual que ela travava cotidianamente contra toda uma rede de opressões e sabotagens, e que, no final de sua breve e agitada existência, parecia ter minado suas forças.

Todas as contradições desta mulher que procurava os holofotes pelo prazer de aparecer e seduzir são escanteadas. Se, no início da vida, Ângela era comparada a estrelas do sensual cinema francês, durante o julgamento de seu assassino foi chamada, publicamente, de prostituta de luxo. A este julgamento moralista e cretino a que Ângela foi submetida durante a vida e após sua morte, o filme reage com uma nova postura moral, desta vez em favor da vítima, em detrimento do aspecto artístico, o que, ao invés de ampliar as possibilidades e o impacto da produção a reduz a espectro de tese panfletária.

A direção explicita todo seu descompasso na incapacidade de criar um clima para as cenas, que acontecem num vazio absoluto, como se os atores ainda estivessem ensaiando o texto. Quando pede música, ela não está lá; e quando seria desnecessária, toma a cena por completo. Sem mencionar os enquadramentos que, para além da falta de senso estético, geram confusão de perspectiva. Um exemplo: durante o diálogo entre Ângela e a melhor amiga na praia, há closes que excluem a interlocutora, mas eles não são capazes de proporcionarem uma sensação de intimidade, nem de aprofundamento da personagem, porque o que elas dizem soa, como no sexo, mecânico, falseado. O choque entre intenção e o que se conseguiu realizar fica evidente na telona…

Claro que os protagonistas sofrem mais. Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes são expostos, muitas vezes de forma constrangedora, chorando copiosamente ou alternando sentimentalismos de maneiras nada convincentes. No entanto, o espectador não se compadece deles, apenas nota o ridículo de cada situação. Talvez por terem papéis mais marginais à trama, Chris Couto, que vive a mãe de Ângela; e Gustavo Machado, na pele do lendário colunista social Ibrahim Sued, escapam do vexame completo a que os outros são relegados. Porque embora seja o centro das atenções, o ator não é o dono da história, ele depende primordialmente do texto e da direção, e, no caso de “Ângela”, o que se oferece aos intérpretes é de uma pobreza atroz, uma verdadeira armadilha…

Outro problema que parece afetar cada vez mais o atual cinema comercial brasileiro é o referencial das novelas, o que deve ser ainda mais gritante para quem vê de fora. O que significa dizer que o sentimentalismo conduz a trama, ancorado no maniqueísmo deste didatismo típico dos folhetins. Ao abordar o mesmo fato, a mesma história, o podcast “Praia dos Ossos”, de 2020, que inclusive mudou o paradigma do gênero, soube realçar o caráter de tragédia social da breve vida de Ângela Diniz, sem apelar à demagogia simplificadora do drama. O cinema nacional segue devendo uma produção à altura deste trauma do país, a partir da história de uma personagem que provocou sentimentos tão diversos em sua vida e até no momento de sua violenta morte.

Foto: Aline Arruda/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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