“O homem jovem é um animal rebelde à dor.” Raymond Radiguet
Zeca Baleiro, 53, avisa logo de cara: “Ando bastante rebelde ultimamente”. “Mas, hoje, sou um rebelde estratégico, calculista. Como disse o poeta: ‘Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro’”, afirma, valendo-se dos versos de Belchior (1946-2017), presentes na música “Sujeito de Sorte”, lançada em 1976. Habilidoso em citar referências que navegam por universos aparentemente distintos, Baleiro acaba de colocar na praça “O Amor no Caos: Volume I”.
1 – Na primeira faixa do disco, “Todo Super-Homem”, você afirma em determinado verso que “todo rebelde tem seu dia de conivente”. A quantas andam seus níveis de rebeldia e conivência com o mundo atual?
Mesmo os rebeldes se omitem em certas situações, por uma questão de sobrevivência. Senão, não é só rebelde, é camicase também. Ando bastante rebelde ultimamente, mas, hoje, eu sou um rebelde estratégico, calculista. Como disse o poeta, “o ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.
2 – O disco se chama “O Amor No Caos”, mas não há nenhuma faixa com esse título. Por que decidiu batizar o disco com esse nome e o que o título revela sobre o conjunto dessa obra?
Quase sempre escolho o título do disco antes de gravá-lo. Depois vou pensando no conteúdo. Este é um disco que quer passar leveza musical, mas também despertar reflexões. Quando o batizei, me referia a um caos mais, digamos, cósmico. Mas pode ser associado ao momento social e político do país por extensão, um momento de grande tensão e incomunicabilidade. Acho que o amor, não necessariamente o amor romântico, mas o afeto, a delicadeza e a generosidade têm um poder transformador muito grande, que precisa ser praticado.
3 – É bastante comum em suas letras você misturar referências dos universos pop e cult, como na música “Ela Nunca Diz”. Qual a sua intenção com esse tipo de gesto e como é seu relacionamento com as redes sociais? O que elas trouxeram de positivo e negativo, em sua opinião? Já descobriu algum artista que as pessoas precisam ouvir melhor?
Não sei se tem uma intenção consciente, a canção nasceu de forma espontânea. Meu relacionamento com as redes sociais é só profissional, nunca posto coisas pessoais, familiares. O positivo delas, para os artistas, é a possibilidade de divulgar seus trabalhos mais agilmente. E o ruim é a invasão que rola, todo mundo se sente apto a falar de tudo, criticar tudo. Descobrir não, mas tenho acompanhado mais de perto alguns artistas, como Cynthia Luz e Rincon Sapiência, agora parceiros.
4 – O disco traz algumas participações. Como se deram os seus encontros com Ana A Duártti, Cynthia Luz e Rincon Sapiência?
A Cynthia me procurou e fiquei feliz com a parceria, já fizemos três canções. Ela é um talento. A Ana assinava Ana Amélia antes e é parceira de outros tempos, já havia feito parte da banda Mandabala, com a qual trabalhei no show “Vô Imbolá”. É uma grande cantora, fez backing pra Arrigo Barnabé e Orquestra Paulista de Soul. E o Rincon foi convidado por mim. Ele topou e fiquei feliz, sou fã.
5 – Como foi compor pela primeira vez com Paulinho Moska e voltar a compor com Frejat? Quais os pontos de maior identificação que você tem com eles?
Somos da mesma geração, embora mercadologicamente Frejat esteja inserido na geração 80, do rock Brasil. Mas são dois queridos amigos e a parceria era uma questão de tempo. Somos fãs do rock e da chamada MPB, isso é o que nos aproxima.
6 – Por falar em Frejat, você disse certa vez que todo poeta comete seus erros, ao falar do Cazuza, e citou o “segredos de liquidificador”. Olhando em retrospecto para a sua obra, qual o seu “segredos de liquidificador”?
Ah, tenho vários! (risos). Errar faz parte.
7 – A parceria com Frejat foi lançada como single e é uma balada com forte poder de apelo popular. Ao mesmo tempo, você não abre mão de uma certa sofisticação nas letras, como é o caso da derradeira “Outra Canção do Exílio”. Como vê o panorama atual da música brasileira? Continua com a ideia de que o brasileiro gosta mesmo é de música com coreografia? O que o levou a se tornar um compositor de sucessos populares?
Brasileiro é festivo, isso não muda. Mas o nivelamento por baixo da música brasileira não tem a ver com isso, mas com a falta de educação, musical inclusive. Não sei o que me levou ao sucesso popular, meu trabalho sempre foi visto como “alternativo”, só mudou quando eu gravei o disco. Foi um êxito comercial, uma surpresa pra mim.
8 – Quem são as suas grandes referências na música brasileira? O que o faz se aproximar tanto de Luiz Ayrão quanto de Jards Macalé?
Ouvi muito rádio na infância e na adolescência. Vem daí o meu gosto abrangente por música. O amor pela canção e o entendimento dela como fato histórico e sociológico, e não só artístico, é que me faz gostar de Ayrão e de Macalé, de Marcio Greyck e de Sergio Sampaio. São todos craques, cada qual a seu modo.
9 – “Dia Quente” é a canção que mais me encantou nesse novo trabalho. Como ela nasceu? Pode nos revelar o processo de composição dela? Ali você homenageia o Luiz Melodia. Qual a principal característica da obra dele e que marca ele deixou na música brasileira? Como foi o convívio entre vocês dois?
A letra é do parceiro e poeta Joãozinho Gomes, paraense radicado no Amapá, um craque. Dei só uns pequenos toques na letra, que é primorosa. Melô foi e é uma grande referência para mim. Um poeta e melodista especial, além de um baita crooner. Nos encontramos em alguns projetos, como o “Acústico MTV”, da Gal Costa, e o “Balaio do Sampaio”. Também dividimos um show em um aniversário do Sindicato dos Jornalistas em São Paulo, certa vez, e cantamos várias músicas juntos. O cara faz falta.
10 – A parceria com o Rincon Sapiência fala sobre o fenômeno dos justiceiros. Ela é baseada em algum episódio específico de linchamento? Como tem visto as novas propostas de segurança pública de governos eleitos em SP, RJ, MG e na esfera federal com o pacote do ex-juiz Sergio Moro e do presidente Bolsonaro, com facilitação para posse e porte de armas? E como foi que você e Rincon se encontraram para essa parceria?
O Rincon eu convidei, e ele topou prontamente e acrescentou seus versos. A música foi composta sobre o poema de outro parceiro, o Fernando Abreu, com quem já compus “Alma Nova” e “Guru da Galera”. Sim, o poema foi baseado em alguns casos de linchamento que ocorreram no Maranhão anos atrás, quando da rebelião no presídio de Pedrinhas. As novas propostas são só bravatas, os poderosos não estão nem aí para a segurança da população. A violência, a desordem e a pobreza são mantenedoras dos status dos poderosos, sempre foram. Sergio Moro é um juiz arrivista e jeca, posando de guardião da moral e da retidão. Um pateta, a serviço da sordidez desse atual governo. E o Bolsonaro é um retardado completo. O que esperar desse povo?
11 – Durante as últimas eleições, você divulgou um vídeo contra a candidatura de Bolsonaro, com uma paródia. O que acha desse novo governo e, na sua opinião, o que nos levou a isso?
O ódio ao PT, sobretudo.
12 – Qual a sua opinião sobre a prisão do ex-presidente Lula? O que esse seu novo disco tem a dizer de mais forte sobre o momento do país?
Quem me conhece de perto, sabe o quanto sou crítico de Lula e do PT. Erraram muito. Erraram onde não podiam errar. Mas não me parece admissível que ele esteja preso por corrupção passiva e lavagem de dinheiro por causa de um sítio mequetrefe e um triplex cafona, enquanto gangsteres da política nacional como Aécio Neves e o próprio Marcelo Odebrecht estão soltos por aí, desfrutando de suas fortunas roubadas. Não me resta dúvida de que sua prisão faz parte de um plano político da direita para ocupar o poder. O cenário é tão sem poesia que não consigo compor nada referente a este momento obscuro de nossa história.
13 – Porque escolheu a pintura do maranhense Jesus Santos para ilustrar a capa de seu novo álbum?
Há grandes artistas no Maranhão que o Brasil, e o próprio Maranhão, desconhecem. Acho que o disco pode ser um bom veículo da arte desses artistas neste tempo de grande poluição visual. O volume 2 também trará uma tela de outro pintor conterrâneo.
Raphael Vidigal
Fotos: Ilvia Zamboni/Divulgação