“E diante da boca do inferno; árida planície
e duas montanhas;
Sobre uma delas, uma forma fluente,
e outra
No tornear do outeiro; em aço rijo
O caminho como uma lenta espiral de parafuso,
O ângulo quase imperceptível,
de modo que o circuito parecia árduo de seguir;
E a forma fluente, despojada, Blake,” Ezra Pound
Os movimentos de luz são uma personagem à parte no espetáculo “Entre o céu e as serras”, e olha que concorrer com os bailarinos da “Companhia de Dança do Palácio das Artes” não é fácil. Estes se amalgamam e dissolvem, sem prejuízo para nenhuma das partes. Há uma relação de cumplicidade, como nos amantes das pinturas do austríaco Egon Schiele, unidos por uma força carnal e divina. A vida é símbolo. Os envolvidos nesse projeto ambicioso de recontar a história da criação das Minas Gerais entendem.
As cores, de terra batida, e as cantilenas místicas evocam a nossa origem barroca, a sensação de pertencimento. Somos puxados pra dentro. Por linhas tortas anunciam rios, baldeações, ouro, sangue. Não fica claro se a mão de Deus ou o contorno dos corpos: passa o movimento; elidem palavras de origem. O tempo atua de maneira direta na narrativa. A linguagem oscila. Da sensualidade. Do escárnio à religião. Da violência. Da tradicional família. Mas, sobretudo, há uma alegria. A dança típica remonta a memórias. Ao sono doce da lembrança.
O cenário acolhe os bailarinos. O figurino varia de acordo com o tom da parábola. Os movimentos, que são muitos e pequenos, nos dão a possibilidade de capturar o detalhe ou abarcar a cena por completo. Na procissão há espaço para o inusitado e o correto, o louco de tiques e a morena farta, buliçosa, carregando uma enorme vasilha d’água. Tudo o que não está disposto materialmente contribui para preencher o espetáculo. O uso da intuição, do lúdico, cabe ao espectador e aos do palco. Atua na íris, no arco. A chuva já caiu, mas o corpo ainda está molhado.
Raphael Vidigal
Fotos: Guto Muniz