O sol indiferente

“quando as serpentes paguem para ser serpentes
e o sol para ganhar seu pão recorra à greve–
quando o espinho olhe a rosa com suspeita
e o arco-íris faça seguro contra a neve” e. e. cummings

nude trio two cavorting one reclining e e cumings

O zumbido em redor da colmeia mesclava-se ao canto agudo dos filhotes de João de Barro à espera de alguns insetos. A arquitetura atingia o ápice na destruição dos dentes do castor. Das patas eram prisioneiros gravetos, mel e terra. Elementos líquidos, sólidos e poeirentos que agravavam a existência. As espécies não se cumprimentavam e nem havia tempo para a cortesia, afinal se é preciso alimentar os rebentos, construir casa, família, se proteger.

O sol indiferente tinha por princípio não discriminar nenhum deles. Pingos espessos como o resultado do néctar das flores abaixavam as asas dos bichos em amarelo e preto. Uma irritação nos olhos atingia o glóbulo e queimava as têmporas do animal dentuço. Fora o mormaço que tornava lento o voo do pardo progenitor: os filhos no isolamento barroco esperavam impunes. A chuva, igualmente justa, molhava todos.

No frio, então, se recolhem, de barriga cheia, à espera. A espera lenta, a espera calma, a gratuita e instintiva espera do tempo passar. Ao estourar da pinha o aviso é dado. Fujam daí, meus amigos. Fujam pelo clima. Aí vem vindo o fogo. Aí vem vindo: a vida. Preto e amarelo e patas e dentes e voo então se reduzem à luta pela sobrevivência, a impor-se sobre os vencidos, a constituir-se, a preencher: o vazio nítido: o sabor da água: o bolor do milho.

Enquanto de fora reflete o solene observador: será que elas têm consciência de que irão morrer? E uma mulher corteja um homem, planeja um filho: diz que é preciso trabalho, comida e estudo.

Aí vem vindo o fogo.

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Raphael Vidigal

Pinturas: “trio nu: duas pulando, uma reclinada”; e “Fantástico Pôr do Sol”, respectivamente, de e. e. cummings.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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