*por Raphael Vidigal Aroeira
“Quem está cantando muito longe uma pequena cantiga?
De uma exígua moita,
sai de repente um bando de pássaros:
como um fogo de artifício todo de estrelas azuis.
(E o deserto está próximo.)” Cecília Meireles
O público mal conseguia enxergar a cantora, que decidiu se apresentar de costas. Essa foi a terceira vez que Nara Leão subiu ao palco, a primeira em que conseguiu cantar. A timidez impediu que o timbre preciso e a emissão quase silenciosa, de acordo com o tamanho de sua voz, chegassem aos ouvidos da plateia das vezes anteriores. Apesar da voz pequena, Nara, como apontava o sobrenome, era também Leão.
Musa. Nascida há 80 anos, no dia 19 de janeiro de 1942, em Vitória, no Espírito Santo, Nara se mudou com um ano de idade para o Rio de Janeiro, ao lado dos pais e da irmã Danuza, que se tornaria uma conhecida modelo e jornalista. Nara optou pelo caminho da música, aprendeu a tocar violão e, na Cidade Maravilhosa, abriu as portas do apartamento dos pais, em Copacabana, para a Bossa Nova. Logo, ela ficou conhecida como a musa do movimento que revolucionou a música brasileira com o violão de João Gilberto, as composições de Tom Jobim e a poesia de Vinicius de Moraes. Era uma época de otimismo com o país, do “amor, o sorriso e a flor”.
Samba. No entanto, uma decepção amorosa com o compositor Ronaldo Bôscoli, que a traiu com a cantora Maysa, levou Nara a conhecer o outro lado da vida. Antes mesmo de estrear em disco, ela rompeu com a bossa, chegou a dizer que aquela música a “dava sono”, e se inteirou do lado pobre e sofrido do Brasil. Foi assim que Nara abriu alas para que os compositores do morro, como Zé Kéti, Cartola e Nelson Cavaquinho, participassem de seu primeiro disco, em 1964, numa união com o asfalto que sintetizava as desigualdades do país de forma coesa. Os sambas tradicionais ganhavam uma batida de bossa nova, no estilo único de cantar e tocar de Nara. “Diz Que Fui Por Aí”, de Zé Kéti e Hortênsia Rocha, foi o grande sucesso do disco, que também trazia “O Sol Nascerá”, clássico de Cartola e Elton Medeiros, e “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho.
Protesto. No mesmo ano, ela estreou o espetáculo “Opinião”, o primeiro show de protesto contra a ditadura. Ao lado de Zé Kéti e João do Vale, Nara representava o Brasil e suas diferenças entre a classe média, a malandragem carioca que se virava pra sobreviver e os milhões de retirantes nordestinos que rumavam ao sul do país em busca de melhores oportunidades de vida.
Perseguida pelos militares, Nara se exilou com o marido, o cineasta Cacá Diegues, em Paris, onde finalmente cantou a bossa nova em disco, em 1971. Originalmente, o álbum havia sido concebido com os violões de Nara e da cantora e compositora Tuca, que à época morava em Paris, mas ele foi rearranjado por Roberto Menescal ao chegar ao Brasil. Os grandes estandartes da bossa nova, como “Insensatez”, “Samba de Uma Nota Só”, “Retrato em Branco e Preto”, “Corcovado”, “Garota de Ipanema” e “Chega de Saudade” aparecem no disco que traz Nara em uma divertida capa, olhando para o céu durante uma tempestade de neve.
Reveladora. Antes, em 1966, a cantora estourou em todo o país ao revelar um jovem compositor, até então desconhecido: Chico Buarque, autor da singela marcha “A Banda”. O sucesso foi tanto que a gravadora exigiu que Nara registrasse a música em seu próximo LP, mas ela já estava em outra. A cantora consentiu a seu modo, colocando a música ao lado de temas de forte apelo social, no LP “Manhã de Liberdade”.
Em 1967, Chico compôs “Com Açúcar, Com Afeto” a pedido de Nara, que solicitou uma música sobre uma mulher submissa, como a dos boleros derramados de antigamente. O fato de a interpretação de Nara ser contida gerou um efeito único sobre a canção, que também se tornou grande sucesso. Antenada, ela se juntou à turma da Tropicália e participou do histórico álbum “Tropicália ou Panis et Circensis”, cantando a faixa “Lindonéia”, de Gilberto Gil e Caetano Veloso. A partir daí, se especializou em revelar novos artistas, como Dominguinhos, Fagner e Sidney Miller, autor da delicada “O Circo”.
Pioneira. Em 1978, Nara se tornou a primeira cantora a dedicar um disco inteiro à obra de Roberto e Erasmo Carlos, para quem a crítica ainda torcia o nariz. O disco foi batizado de “E Que Tudo Mais Vá Pro Inferno”, que não deixava de ser uma resposta aos detratores, e vendeu tanto que ganhou uma versão em espanhol.
Mas o pioneirismo havia começado antes, quando ela também foi a primeira cantora a gravar um LP de duetos, em 1977, com “Os Meus Amigos São Um Barato”, ao lado de Gil, Caetano, Dominguinhos, Erasmo, Chico Buarque, Edu Lobo, João Donato, Tom Jobim, entre outros. A fórmula seria várias vezes repetida pela indústria fonográfica, mas Nara jamais voltaria a ela. Repetição era uma palavra que não cabia no dicionário de Nara, que se tornou uma artista símbolo da independência artística, reverenciada pela escolha sempre precisa do repertório.
Legado. Ao longo de uma intensa carreira que abrangeu mais de duas décadas, ela lançou 28 discos, um deles em dueto com Roberto Menescal, e “Quando o Carnaval Chegar”, com a trilha do filme em que atuou com Chico Buarque e Maria Bethânia. No infantil “Os Saltimbancos”, interpretou a manhosa Gata, com sua voz de ronronar. Nara Leão morreu aos 47 anos, em 1989, vítima de um tumor no cérebro, mas sua contribuição para a música brasileira vai muito além do tempo, principalmente pela modernidade que imprimiu à sua obra. Ou, como diriam os antigos, Nara deixou de ser moderna para se tornar eterna.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.