*Raphael Vidigal Aroeira
“Eu sei, não me diga
Esquecer as promessas
E mantê-las vivas” Duda Machado
Nos primeiros encartes dos LPs de Jards Macalé, em que estreou como letrista, o nome do poeta comparecia misteriosamente desacompanhado. “Eu não prestei atenção, botaram só Duda e deixei pra lá. Depois eu disse, não, vamos botar Duda Machado”, explica o também tradutor, professor aposentado e literato. Nascido em Salvador, em 1944, Duda era da turma de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Rogério Duarte e outros baianos que hastearam a bandeira da Tropicália. Estudante de Ciências Sociais na Universidade Federal da Bahia, ele foi para o Rio de Janeiro tentar uma transferência do curso, que acabou não dando certo, quando conheceu Macalé.
Em 1969, na esteira do Ato Institucional Nº 5 que endureceu a ditadura no Brasil e dos protestos de Maio de 1968 que sacudiram a Europa com manifestações estudantis e sindicalistas, Duda dividiu a direção de um espetáculo de Gal Costa com Macalé, tomando conta da parte cênica, enquanto o amigo se incumbia do aspecto propriamente musical. A convivência os levou a comporem duas músicas para Gal, com vistas ao LP “Legal”, de 1970: “Hotel das Estrelas” e a bilíngue “The Archaic Lonely Star Blues”. No mesmo ano, Macalé colocou na praça o EP que deu o pontapé em sua carreira solo com uma nova remessa de expressivas criações da dupla: “Só Morto/Burning Night” (novamente conjugando português e inglês) e “Sem Essa”, que o músico gostava de dizer ter composto a melodia imaginando uma gravação do Rei Roberto Carlos.
“Só Morto (Burning Night)” (rock, 1969) – Duda Machado e Jards Macalé
A “Indesejada das gentes”, como diria Manuel Bandeira, é alçada ao título da intempestiva “Só Morto”. “A letra é pesada. Era a maneira que a gente tinha para falar naquela época de censura. Havia mortes, perseguições. E, nesse contexto, procurei inserir a luminosidade da natureza. A paisagem do Brasil é solar. Mas a realidade era sombria. Foi uma tentativa de juntar essas duas instâncias”, informa Duda Machado, que com sua pena afiada deu vazão a lances poéticos da estirpe de “espuma de sangue a brilhar”, “nessa manhã de louco o olho do morto reflete o fosso”, “esse sol tão forte é um sol de morte”. “Eu não pensava na interpretação, no estilo do Macalé, e isso que era ótimo, porque era surpreendente. Entregava as letras e via aquilo se transformar na música e na interpretação que ele fazia. O que me atraía era o aspecto fragmentário das letras, e a música do Macalé aparecia para mim inesperadamente. Ele tinha aquele violão extraordinário e aquela forma de cantar muito própria”, exalta Duda.
“Sem Essa” (balada, 1969) – Duda Machado e Jards Macalé
“Sem Essa” tampouco deixava por menos em suas ambiguidades, a despeito do romantismo que a envolvia. “É a despedida de um amor…”, resume Duda Machado. Macalé gostava tanto dos versos iniciais que com eles se apresentava em suas redes sociais: “Olha, não é nada disso/ Embora eu não saiba dizer mais nada”. O mesmo trecho chegou a integrar uma petição judicial, comprovando a força e elasticidade da poesia. Na capa do LP “Contrastes”, em que gravou “Sem Essa”, Macalé era enfocado pelas lentes de Ivan Cardoso beijando sua namorada da época, a atriz e escritora Ana Miranda. A relação não terminou bem, e, quando o álbum foi ser relançado em CD, Ana proibiu a utilização de sua imagem. A solução encontrada pelo músico foi realizar uma intervenção que o campo artístico de Hélio Oiticica e Lygia Clark certamente aplaudiria. Inspirado pelos versos “e fazer um álbum de fotografias pra depois queimar”, reproduzidos na capa e escritos por Duda para a dita canção, ele queimou um lado do negativo, mantendo da antiga amante apenas os lábios que se encostavam aos seus. A música virou trilha de novela da Globo e da Band nas vozes de Macalé e Zezé Motta.
“Hotel das Estrelas” (balada, 1970) – Duda Machado e Jards Macalé
“Hotel das Estrelas”, que, ao longo do tempo, ganhou regravações de Cida Moreira, Thaís Gulin, Léo Cavalcanti, Bellô Veloso e do próprio Macalé, nasceu da vontade de expressar “a visão de uma mulher”: “Dessa janela, sozinha/ Olhar a cidade me acalma/ Estrela vulgar a vagar/ Rio e também posso chorar”. “O restante da letra alude a uma época muito conturbada, que eram aqueles anos barra pesada de ditadura”, afirma Duda, que teve no cineasta Jean-Luc Godard uma de suas principais referências no campo da arte. “É uma letra fragmentária, parece que são cortes. E tomou toda uma densidade, com aquelas imagens misteriosas, sombrias, meio surreais”, comenta o poeta Duda Machado, ávido leitor do simbolista Arthur Rimbaud na juventude, corroborado por trechos como “sobre um pátio abandonado/ em doze quartos fechados/ profetas nos corredores/ mortos embaixo da escada”.
“The Archaic Lonely Star Blues” (balada, 1970) – Duda Machado e Jards Macalé
Os versos derradeiros da balada surgem em inglês, invertendo a estratégia de “The Archaic Lonely Star Blues”, que tanto inicia quanto intercala o idioma estrangeiro ao longo da letra. A natureza existencial da composição se fia na própria poesia, descrita como “uma mina”. “Eu sei, não me diga/ Esquecer as promessas e mantê-las vivas”, ensina o poeta. Em 1977, Duda Machado publicou o seu primeiro livro, “Zil”, ainda influenciado pelos experimentos concretistas. O sucessor “Um Outro” só chegou em 1989, afirmando um estilo próprio, ligado à métrica e versificação, mais lírico e existencial. Os longos intervalos produtivos permaneceram entre “Margem de Uma Onda” (1997) e “Adivinhação da Leveza” (2011), o último já com o poeta residindo em Belo Horizonte. A enxuta produção foi reunida em 2024 na antologia “Poesia 1969-2021”, acrescida pela mais recente e inédita lavra, com edição da Círculo de Poemas e lançamento na Quixote Livraria & Café, um dos pontos prediletos de Duda na capital.
“Doente, Morena” (bolero, 1973) – Duda Machado e Gilberto Gil
O poeta Duda Machado foi tomado de espanto quando Elis Regina cantou os versos de “Doente, Morena” no álbum de 1973, escritos por ele e musicados por Gilberto Gil. “Foi uma surpresa. Elis era uma coisa de outro mundo, um negócio impressionante”, orgulha-se. A letra aborda um período difícil na vida de Duda, e flagra uma pessoa confinada, solitária, ansiando uma libertação. “Vem toda uma liberdade de imaginação, de uma pessoa que está naquela situação e sonha”, confirma o poeta, que encerra a saga meditativa com a singeleza de quem deseja ir à praia no próximo verão. A força do acontecimento reside justamente no fato de que se vivia “um período obscuro, sombrio”, como se reflete no trecho “mas ontem à noite, a mão sobre meus cabelos/ ela me disse: ‘meu bem, não tenha medo’”, recitados por Duda com delicadeza.
“Boneca Semiótica” (experimental, 1974) – Duda Machado, Chacal, Rogério Duarte e Jards Macalé
Em “Boneca Semiótica”, a teoria balizou a prática. A ideia de “criar uma música complexa, complicada” foi possível graças à brincadeira entre Duda Machado, Chacal, Jards Macalé e Rogério Duarte, responsável pelo batismo da empreitada, em que cada um dizia um verso, ao modo dos repentistas de antigamente, porém mirando o novo como conclamava o futurismo poético de Maiakovski. “A letra faz um diálogo com a teoria dos signos, tinha essa intenção desconcertante”, pontua Duda. De toda essa história, apenas um mambo feito por Duda e Macalé acabou nunca vindo à tona, apesar de ter sido gravado. “Essa música foi censurada”, lamenta o poeta, que não se lembra mais dos detalhes da composição. Em 1974, Macalé deu voz ao “Mambo da Cantareira”, sucesso impagável de Gordurinha. “Ele estava nessa pegada e trouxe a ideia do mambo”, diz Duda.
“Meu Doce Amor” (balada, 1977) – Duda Machado e Marina Lima
No final da década de 1970, Duda escreveu sua última letra de música. Gravada por Gal no álbum “Caras & Bocas”, a passional “Meu Doce Amor” ganhou melodia de Marina Lima, que na ocasião vivia um relacionamento afetivo com a baiana. “Eu mudei muito. Gostei muito de escrever as letras, mas, ao mesmo tempo, elas foram uma passagem para eu escrever os poemas, e, à medida que os escrevia, deixei as letras”, alinhava Duda. “Escrevo pouco, minha produção é pequena. Não penso em publicar mais, mas pode ser que aconteça, tomara, é bom, porque aí estarei produzindo”, relata com modéstia o conciso Duda, leitor de Drummond, João Cabral de Melo Neto, Dostoiévski, pelo qual ficou “completamente vidrado” na juventude, e do americano John Ashbery. Em 1998, Duda passou em um concurso para ser professor de teoria literária na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), cujo curso de Letras fica em Mariana, o que o trouxe a BH, e, ao mesmo tempo, o afastou do outrora agitado círculo de amigos.


