*por Raphael Vidigal Aroeira
“Acho que deveríamos amar os jovens sábios e os velhos loucos.” Godard
A exemplo de Godard, Glauber Rocha não usava roteiro, ou melhor, fazia questão de exibir seu desprezo: “Cinema é audiovisual”, dizia. Não sem razão, o diretor brasileiro demonstraria todo seu incômodo com a necessidade de apontar um equivalente europeu para apresenta-lo, se não tivesse morrido precocemente há quatro décadas, aos 42 anos, vítima de uma septicemia. Uma das balizas do Cinema Novo de Glauber Rocha era a necessidade urgente de descolonização, urgência que ele transmitia melhor que ninguém. “A nossa cultura não é a ópera, é a macumba”. Glauber dizia muitas coisas, e conseguia ser ainda mais enfático quando filmava, a despeito das elaborações.
Como, por exemplo: “O Cinema Novo sou eu”. Também não estava errado em sua megalomania. “Barravento”, de 1962, já fincava as bandeiras do movimento, com um Antonio Pitanga indomável na pele de Firmino dos Santos, pescador e capoeirista que prega a consciência de classe. Glauber sabia excitar os atores, como pregava. O filme é todo rodado em Itapuã, na Bahia, aonde Glauber veio ao mundo, em Vitória da Conquista. Desde cedo, ele demonstrava o interesse pela sétima arte, negociando com a mãe as idas à igreja em troca de matinês cinematográficas. A “estética da fome” defendida pelo cineasta atingiria o auge em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964.
Ali, Othon Bastos surgia como o cangaceiro Corisco, e Maurício do Valle emprestava a pele ao icônico personagem Antônio das Mortes, um mercenário. Se existiam países capitalistas ricos e pobres e países socialistas ricos e pobres, Glauber refletia que o mundo não se dividia mais ideologicamente como no período da Guerra Fria. “O que existe é um mundo rico e um mundo pobre”, definia ele, ao apontar o centro da disputa que aparece em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Disputa que passava a se dar no campo da economia. Glauber não tergiversava ao afirmava que o seu filme, ao lado de “A Chinesa”, de 1967, de Godard, foram os principais impulsionadores do Maio de 68, quando a juventude francesa tomou as ruas para pregar valores progressistas.
Além de aproximar o cinema das questões comezinhas que afligiam a população brasileira, com suas misérias e precariedades que passavam bem na frente do nosso nariz e agora chegavam à tela, Glauber inovava na forma, seguindo o princípio do poeta russo Maiakovski, de que não existia revolução de conteúdo sem linguagem revolucionária, trocando em miúdos. A montagem, que ele comparava ao ritmo na música, era seu grande trunfo, e ele aspirava que ela fosse “irregular e agitada”, como sua própria personalidade vulcânica e incendiária. Suas elaborações adquiriam o tom de descarrego e desabafo. “O tema não importa, o que importa é o método”. Com “Terra em Transe”, de 1967, a “estética da fome” evoluía para a “estética da sublimação do sonho”.
No controverso “A Idade da Terra”, de 1980, o último filme de sua vida, Glauber balançava a estrutura dos mitos do cristianismo. De formação presbiteriana, era avesso ao poder totalitário, e elencava seus cristos em indígena, africano, europeu e brasileiro. Essa fase derradeira de sua existência foi marcada por ainda mais conflitos do que de costume. Exilado em Portugal, Glauber topou acenar favoravelmente para a ditatura militar distender o regime no Brasil, no que ficou conhecido como anistia ampla e irrestrita. Não só elogiou o general Golbery, como apertou a mão de Figueiredo. Ao contrário de Chile e Argentina, o Brasil escolheu não levar seus torturadores e estupradores ao tribunal. As consequências estão aí até hoje. Assim como as do Cinema Novo de Glauber.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.